Palavra,
música e jogo: poéticas do cotidiano[1]
Maria Auxiliadora Cunha Grossi[2]
Como poderosos instrumentos dos atos da comunicação, as palavras transformam a própria prática da linguagem. Em diversas situações fazemos uso das palavras, muito embora nem sempre a gente perceba que são elas que determinam o modo como esta comunicação se dá. Elas são por nós utilizadas em ritos cotidianos, sociais, políticos, culturais e mesmo em forma de jogos, chegando aos limites da comunicação com o inconsciente, com o imaginário, como linguagem tecida de sonho, fantasia e memória.
Com muitas delas temos mais familiaridade devido a sua funcionalidade. São aquelas que nos levam a decifrar a vida e a percebê-la como conhecimento objetivo para a percepção da realidade. Outras, nos levam à percepção do mundo de forma diferenciada, pois trazem, em si, uma intensa elaboração em seus sentidos, em sua forma. As palavras representam realidades, mas elas se revelam também como realidade sonora, tátil, plástica na imaginação do sujeito.
As palavras são som e sentido. De fato, como podemos entender suas idéias somente pelo que elas trazem enquanto significado, somente no que elas revelam enquanto código, enquanto idéia a ser decifrada sem perceber a sua carga poética, a sua porção de sonho, o seu avesso? É como se a gente quisesse descascar, explicar, entender as idéias sem senti-las.
As palavras vêm travando diálogos significativos com outras linguagens. Para Arnaldo Antunes, poeta e ex-Titã, a poesia, expressão sublime e encantadora da palavra, está, cada vez mais, se ocupando de outros espaços de comunicação como: o computador, o vídeo, o poema-cartaz, os outdoors, as canções. A música para ser ouvida, as artes para serem vistas, a poesia para ser lida é apenas uma das formas de apreciação da arte que possuímos. Na verdade, diz ele, com a modernidade, as manifestações tendem a se misturar. Vemos a poesia nos jogos educativos e folclóricos, podemos também vê-la no teatro, na dança, em projeções a laser, enfim, a poesia vai utilizando outras mídias, outros meios de comunicação e expressão.
Assim, se esta relação da palavra com o som, a visualidade, a plasticidade, ocupa hoje um importante lugar nas manifestações culturais, devemos também pensá-la nos contextos educativos, já que neles circula um grande suporte de informações e de ações culturais e, obviamente, já que pela via da cultura, da arte, a palavra poderá ser uma trilha que nos conduzirá ao entendimento no processo de educar. Neste sentido, como podemos fazer com que a palavra, em diálogo com diferentes suportes, possa também ser inserida no contexto do trabalho com a escrita e a oralidade, na formação da sensibilidade de jovens e crianças, nos diferentes espaços de formação? Como fazer com que ela possa manter sua magia de maneira a senti-la não como um código a ser interpretado por si só, mas associada à música à sonoridade, à visualidade, à plasticidade que ela contém? Vamos pensar em algumas dessas ações que poderão resgatar a palavra e seus usos nestas ações educativas.
Retomando o trabalho de Arnaldo Antunes, por
exemplo, poderemos propor atividades com o seu sugestivo vídeo-poema, chamado Nome. Nele, muita coisa poderá ser discutida a
partir da idéia de que a poesia é intersemiótica. Ou seja, ela dialoga
com várias linguagens e seus signos. Neste vídeo-poema, percebemos que o poeta
cria muitos sentidos, unindo a poesia à visualidade, à imagem, à música. As
imagens, portanto, ajudam a criar novos significados através de recursos como a
repetição, a colagem e o jogo com as palavras. O poeta constrói e
desconstrói as palavras, o verso e assim lhes atribui um novo sentido. A
poesia, assim apresentada no vídeo, parece que foi jogada em um liquidificador
e misturada a uma porção de ingredientes que são imagens, sons e cores. Através
de associações e analogias, de sensações e impressões adquiridas a partir deste
jogo intersemiótico, percebemos que as palavras são poéticas, polissêmicas e
não simplesmente um “nome”.
Em um dos
trinta vídeo-poemas, denominado Nome Não, há um interessante jogo que
envolve os sons e as idéias, quando o poeta diz em seus versos que os nomes
dos bichos não são os bichos/ os bichos são: macaco, gato, peixe, cavalo, vaca,
elefante, baleia, galinha/ os nomes das cores não são as cores/ as cores são:
preto, azul, amarelo, verde, vermelho, marron/ os nomes dos sons não são os
sons/ os sons são/ só os bichos são bichos/ só as cores são cores/ só os sons
são/ sons são/ sons são/ nome não/ nome não/ nome não...
Percebemos,
neste vídeo-poema, um dinâmico jogo que parte da idéia de que os nomes dados às
coisas ou aos seres, por meio das palavras, são códigos que poderão ultrapassar
os limites do sentido referencial, usual e atingir o contexto subjetivo. Ou
seja, o nome das coisas não são as coisas em si, mas representam as coisas. De
fato, as palavras são representações, são símbolos que nos pegam de surpresa
quando as percebemos em seus mais inesperados sentidos. E isto só é possível
quando praticamos uma leitura ‘ao avesso’, uma leitura que subverte a sua ordem
aparente. A palavra aqui está revestida de associações que refinam com delicada
sutileza os significados e os significantes nela presentes, desvinculados de
seu sentido normativo, lógico.
Partindo,
assim, da idéia de que as palavras, muitas vezes, fazem parte de um jogo
sensorial, outros jogos podem ser propostos. Uma vez, sugeri a um grupo de
alunos que, depois de apreciado o vídeo-poema, várias palavras fossem escritas
aleatoriamente numa folha de papel. Depois, fomos separando em colunas:
palavras brancas (paz, nebulosa, vazio) palavras gostosas (sorvete, bolo,
lenga-lenga ), palavras sonoras (tambor, estrondo, paralelepípedo, pirula) e
assim sucessivamente. Observei, nestas respostas, que outras associações foram
feitas. Aquelas em que, por exemplo, o conceito de determinada palavra
estende-se ao significante (imagem acústica da palavra) e não somente ao
significado. É o caso de ser considerada como ‘gostosa’ a palavra lenga-lenga.
Na verdade, o que é considerado gostoso nesta palavra não diz respeito ao
sabor, mas ao seu som. Ou melhor, diz respeito ao sabor do som. Este tipo de
associação é tanto mais possível quanto mais a criança está em contato com a
palavra enquanto jogo, imagem, brincadeira. E os vídeo-poemas de Arnaldo
Antunes muito favorecem estas ricas associações.
O trabalho
com as palavras nos jogos de mesa é bastante fértil e gratificante também.
Partindo de jogos como Cara a Cara, Domingo Legal, Truco, Paciência, Fedor,
Mau-mau, Loto, Banco Imobiliário, Cai
não Cai, Dominó, entre outros, podemos criar interessantes situações de
aprendizado. Uma destas situações envolve o estudo de substantivos, de
adjetivos e de sílabas tônicas. Invertendo a lógica normativa da gramática e
objetivando entender o conceito, valorizando o sentido das palavras, propus
este jogo a seguir.
Vários
jogos de mesa foram trazidos para a sala de aula. Num primeiro momento, as
crianças se agruparam para jogar. Enquanto jogavam, pedi que fossem listando as
palavras-chave, ou seja, as palavras mais importantes que surgem do jogo. Os
jogadores vão estabelecendo uma comunicação entre eles que é propriamente a
linguagem do jogo. Cria-se uma situação de diálogo e interação bastante
interessante, pois já não é mais a linguagem do cotidiano que se comunica, mas
uma linguagem dos símbolos, dos gestos, do olhar. Este movimento é fundamental
ao jogo.
Depois de
jogados bons 100 minutos, passamos a selecionar as palavras listadas por eles e
agrupá-las de acordo com a tonicidade. E assim, fomos estabelecendo as
associações e as correspondências sonoras entre vogais tônicas e átonas. Depois
as agrupamos, buscando semelhanças em sua sonoridade. Exploramos bastante estas
palavras pela pronúncia, formando jogos rítmicos, combinando seus sons,
primeiro de duas a duas, depois de três a três palavras e assim,
sucessivamente. E então, selecionamos: sons finais (baixei, ganhei) sons com
eco, como eles mesmos disseram, (bode/bigode – ouro/tesouro) sons nasais (falo,
mando, canto/longo, longe, lambe) sons fortes (paixão/canção – ação/gozação)
sons abertos (olho/ molho/ monto) sons fechados (jogar/olhar) e assim por
diante.
Estas
classificações foram elaboradas pelos alunos, tendo em vista o próprio sentido
que atribuíam às palavras, pelo que elas traziam de sugestivo, de sensório, de
imagem. Falei a eles que estas rimas são chamadas de agudas, graves,
consoantes, toantes. Mas o que valeu mesmo foi este exercício de pronunciar a
palavra, de sentir o seu timbre, a sua cor, o seu ritmo, o seu eco. Foi assim
que eles perceberam uma carga maior da significação, perceberam a palavra e
seus recursos como elementos sensíveis e, conseqüentemente, ficaram mais à
vontade e com mais autonomia para a brincadeira.
Num segundo
momento, agora com o objetivo de perceber os nomes associados a um esquema
rítmico e musical, propus ao grupo que ouvisse a música Criança não trabalha
de Paulo Tatit e Arnaldo Antunes, observando o ritmo, as rimas, os refrões,
as divisões em estrofes. Ela diz assim: Lápis, caderno, chiclete, peão/ sol,
bicicleta, skate, calção/ esconderijo, avião, correria/ tambor, gritaria,
jardim, confusão/ bola, pelúcia, merenda, crayon/ banho de rio, banho de mar,
pula sela, bombom/ tanque de areia/ gnomo, sereia/ pirata, baleia, manteiga no
pão ... Criança não trabalha, criança
dá trabalho/ criança não trabalha, criança dá trabalho...
Observando
as sílabas tônicas das palavras (que formam as rimas agudas com as
oxítonas; as rimas graves, com as paroxítonas; as rimas esdrúxulas,
com as proparoxítonas), a forma do poema como um todo, as repetições, os refrões,
pedi que o grupo tentasse escrever versos, quadras com os substantivos e
adjetivos por eles listados durante o jogo.
Neste
processo, foi interessante perceber que, ao listarem os nomes, houve uma
associação espontânea entre a palavra e o seu significado, reforçada pelos
recursos sonoros e pela experiência do jogo. Selecionar as palavras significou,
na verdade, nomear a sua essência na ação de jogar. A palavra foi
re-significada no contexto da imaginação. Isto facilitou a compreensão e a
assimilação deste significado novo. Por outro lado, a composição, a combinação
que eles estabeleceram entre as palavras, fugiu do automatismo, adquiriu certa
independência sintática, principalmente em relação aos conectivos ou elementos
de ligação. Vemos isto nos versos: novela canção/poesia emoção/lembrança
coração. Em vez de a canção da novela/ a poesia da emoção/ a lembrança
do coração.
Todas estas
associações são possíveis porque nestas brincadeiras experimentamos, conhecemos
as palavras por meio dos sentidos, formamos uma idéia e as entendemos, como
disse Fayga Ostrower, pela condensação poética da experiência como via de
conhecimento da realidade. Assim, a palavra atua num cenário de imagens e
possibilidades. Isto, sem dizer que estudar substantivos e adjetivos ficou bem
mais divertido, porque nós tiramos o véu das palavras, nós as descobrimos, as
mostramos e as deciframos primeiro, sem dizer o que elas são, imediatamente.
Muitas outras formas de percepção da linguagem vão sendo reveladas pelos
jogadores; estas são somente algumas delas que tentei mostrar.
Vejamos
alguns textos que os alunos escreveram. O primeiro foi inspirado no jogo
chamado Cara a Cara , o segundo no Domingo Legal e, o outro, no Truco.
Rota Poética Poemoção Trucavez
Olho , molho, monto Domingo
legal Jogar,
já joguei
Conto, frente, lado Engraçado
sim Agora
é sua vez
Traz, faz, mas. Loucura,
amor
Diversão
pra mim Comer,
já comi
Agora
é sua vez
Azul,
sul, som, dom Roqueiro
metaleiro
Homem, mulher Vão adivinhar quem sou Truco já fiz
Bode, bigode Passageiro
do táxi Agora
é sua vez
Em que
táxi vou?
Cara a cara Roubar
feio, já roubei
Pé a mão Rua,
táxi , passageiro Agora
é sua vez
Chão com pão Sal,
amendoim, bombom
Paixão, canção Cabelo,
tesoura, cabeleireiro Passar
o monte, já passei
Sonho, ilusão Dança,
loucura, som Agora
é sua vez
Dama
já fiz
Desdobra, dobra Novela
canção Agora
é sua vez
Dedo, dado, lado Poesia
emoção
Falo, mando, canto Pensamento cabeça Trilha
já formei
Longo, longe, lambe Lembrança
coração Agora
é sua vez
Soprar
, já soprei
Agora
é sua vez
Ganhar,
já ganhei
E
você, coitado, já perdeu!!
Quando
aliamos a palavra e o som ao humor, também podemos obter bons resultados, como
nas brincadeiras com os limeriques – poemas de origem inglesa. Os
limeriques se compõem em estrofes de cinco versos rimados. São famosos
os de Edward Lear. Eles copiam sempre a mesma estrutura métrica, mantendo uma
correspondência rítmica. O primeiro verso informa quem é o protagonista, o
segundo indica a sua qualidade, o terceiro e quarto versos dizem o que ele está
fazendo e o quinto verso é reservado ao aparecimento de um epíteto final,
geralmente extravagante. Vejamos um limerique de Lear: Uma vez um médico de
Mococa/ queria tirar amígdalas da muriçoca/ o inseto se revoltou/ e o nariz
pinicou/ daquele amigdalítico doutor de Mococa.
Além
de propor uma pequena história, os limeriques se caracterizam pelo
humor, pelo nonsense, pelas situações maliciosas, engraçadas e absurdas. Tudo é
motivo para a criação de um limerique: um nariz muito grande, um
gordo elefante, uma criança mimada, uma vaca malhada, um fedelho pedante,
como dizem seus versos. Com um grupo de pessoas, podemos propor algumas
brincadeiras.
Começamos
pela leitura dos limeriques. Lê-los é sempre uma situação de novidade,
um desafio, uma nova descoberta, pelo que eles revelam de humor, de inusitado,
de brejeirice. Ler primeiro, quantas vezes forem necessárias, até chegar a decorá-los,
se for o caso. Vejamos alguns deles, escritos por Tatiana Belinky: 1) Um
cara chamado Mariz/ estava com dor no nariz/ vou jogá-lo fora/ falou- e na
hora/ fez isso e vive feliz. 2) Ao ver uma velha coroca/ fritando um
filé de minhoca/ o Zé minhocão/ falou pro irmão/ “não achas melhor ir pra
toca?” 3) De volta da festa de arromba/ soltando fumaça da tromba/ um
gordo elefante/ marchava importante/ pensando que era uma bomba. 4) Um
moço chamado Hipólito/ achou seu nome insólito/ pensou, repensou/ e o nome
mudou/ pra Tripodeglutifrutólito.
Sem seguir à risca a estrutura inglesa dos limeriques e buscando formas alternativas na estrutura, propus o seguinte para um grupo de alunos. Elaborei cinco perguntas – Quem? Fez o quê? Onde? Quando? Por quê? Sanfonei um papel sulfite e em cada face, no alto, escrevi estas perguntas. Foram formados grupos de cinco alunos, cada aluno escreveria um verso ao responder uma das perguntas e assim comporíamos a estrofe. Um aluno respondia a primeira pergunta – Quem?- dobrava a face do papel que continha esta pergunta, passava para o outro, sem que o outro visse a resposta dele, e o outro respondia a segunda – Fez o quê? -, e assim sucessivamente, até chegar à quinta pergunta, podendo fazer isso várias vezes até esgotar o espaço do papel. Quando todas as respostas estavam respondidas era a hora de lê-las para o grupo.
Fazendo estas leituras, a situação que se via era, muitas vezes, de uma seqüência desconexa das idéias contidas nos versos, mesmo porque mantemos as estruturas métricas com muita liberdade, sem ainda nos preocupar com a correspondência entre as rimas. Isto viria depois. E, sem querer limitar as possibilidades do absurdo, seguimos lendo. Vejamos alguns exemplos:
Sansão Joselito João
Andou
até Marte Jogou a casca da banana Pulou do prédio
Onde
a baleia perdeu a calda Na
barraca da praia No Japão
Quando
o sol perdeu seu brilho Quando
amanheceu Quando a
terra secou
Porque
anoiteceu e a lua adormeceu Porque
queria com o tio andar de navio Por
que passou o dia triste
Depois de lidas as estrofes, percebeu-se que os recursos sonoros e rítmicos estavam em desacordo, não havia métrica nem rima, porque a construção dos versos não era visualizada como um todo, senão na hora de lê-los. O grupo então, para tornar o texto mais elaborado em sua estrutura narrativa, rítmica e sonora, procedeu à reescrita dos limeriques, agora cuidando das rimas, que ora se faziam entre segundo, terceiro e quinto versos, ora entre segundo e terceiro ou entre o quarto e o quinto versos; enfim, de formas variadas. Esta combinação se dava tanto na organização sonora dos versos, quanto na repetição das palavras.
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Sansão Joselito João
Voou até Marte Comeu
rápido sua banana Pulou do prédio
Onde a baleia fez uma arte Na praia de Copacabana No Japão
E o sol perdeu seu brilho Quando amanheceu Quando a terra tremeu
Porque anoiteceu e a lua
teve um infarte Porque queria andar de
navio com o Dirceu Porque João estava
com tédio
O que eles não puderam, antes, imaginar, foi que, ao favorecer a estrutura rítmica e sonora dos versos, seu sentido também se altera. Se observarmos as histórias de Sansão, de Joselito e de João, elas se reformulam de um limerique a outro. Isto se deve também ao uso das rimas, de repetições, de aliterações. Estes recursos acabam contribuindo para que algumas ações inesperadas ocorram, para que certos fatos sejam esclarecidos, para que pessoas e objetos sejam nomeados, enfim, para que os sentidos no texto possam se renovar, possam fluir. Ao final, a leitura dos limeriques era feita pelo grupo. Em pouco tempo, as crianças se familiarizavam com as técnicas criadas, por serem simples e envolverem muitas possibilidades de composição.
Uma vez, a partir da pergunta que me fez um aluno, surgiu-me uma idéia. Ele leu os seguintes versos de Cecília Meireles: O lagarto parece uma folha/ verde e amarela. E, em seguida, me perguntou: Mas o poema é só isso? Eu disse que não, que aquele era um fragmento do poema chamado O Lagarto Medroso. Mas aproveitei para mostrar para o grupo que a poesia tem um grande poder de síntese, que ela pode ser a expressão de um momento fugaz, singular e que ela não tem um tamanho certo. Duas palavras já são suficientes para se fazer uma poesia, assim como o poema ‘Amor / Humor’ de Oswald de Andrade. Ele me perguntou novamente: Mas como o poeta com tantas idéias pode fazer um poema com duas palavras? Então eu lhe respondi que Stéphane Mallarmé, poeta francês, uma vez disse que poemas não se fazem com idéias mas com palavras. E aproveitei para mostrar quantas idéias podem existir em tão poucas palavras, propondo a leitura de alguns Hai-kais japoneses.
Partindo de uma frase poética breve, os Hai-kais tentam buscar uma expressão singular que possa resumir uma impressão, um conceito qualquer. A poesia japonesa não usa a rima, a reiteração, mas se utiliza de muitos jogos verbais, aliterações e paronomásias - palavras que pronunciamos da mesma forma mas que têm significados diferentes. Os Hai-kais expressam a brevidade da palavra, a economia verbal e a objetividade. É a correspondência entre o que dizem as palavras e o que vêem os olhos. É um tipo de poesia de extraordinária simplicidade, feita com três versos, com intensa pluralidade de reflexos e grande amor pela imagem exata e sólida.
Em experiências anteriores, pude perceber que os textos em versos que os alunos escreviam eram bastante extensos e muito prosaicos. Com os Hai-kais, pudemos reafirmar um novo conceito segundo o qual o sentido atribuído às palavras não dependeria diretamente da extensão do texto mas, antes, da expressão que se busca exprimir.
Assim, desenvolvi uma atividade da seguinte maneira. Primeiro, conversamos sobre os Hai-kais. Eles possuem uma estrutura de 5, 7 e 5 versos. Falei de alguns poetas japoneses mais conhecidos, como Matsuo Bashô, Teitamura, Teitoku. No Brasil, alguns poetas escreveram Hai-kais, como Paulo Leminsk, Alice Ruiz, Ângela Leite, entre outros. Vejamos alguns Hai-kais de poetas japoneses e brasileiros:
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Lua de estio: Hora do tigre: Em cima do
penhasco Caído na viagem
se lhe pões uma mangueira
névoa de primavera ali também
há outro meus sonhos na
planície
vira um leque também rajada hóspede da
lua dão voltas e mais
voltas
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À beira de um poço Por amor à luz Meio dia Voltando com amigos
sentei-me com um desejo: tanta mariposa tomba dormem ao sol o mesmo
caminho
não perder a sede na sombra da noite
menino e melancias é mais curto
Os quatro primeiros Hai-kais são de Matsuo Bashô; dos quatro segundos, os dois primeiros são de Ângela Leite e os outros dois de Alice Ruiz.
Em seguida, escandi um Hai-kai na lousa, contando as sílabas poéticas com eles: onde anda o luar/ nesta noite escura dentro/ do meu coração? Depois foram feitas leituras de vários Hai-kais, escritos em folhas de papel, passando pelas pessoas em círculo. Seguiram-se uns quarenta minutos de leitura ao som de músicas japonesas: Cantos em contos do Japão. Cada aluno escolheu um Hai-kai de que mais gostou e o transcreveu para um papel em letras grandes com lápis de cera, sem se identificar. Colamos os Hai-kais na parede da sala e fizemos um círculo novamente. A proposta era que descobrissem qual Hai-kai havia sido escolhido pelo colega. Este dizia um sinônimo, ou uma expressão sinônima, de uma palavra-chave contida no Hai-kai que ele escolheu; representava a palavra sem propriamente dizê-la. O grupo tentava descobrir o Hai-kai escolhido por meio dos sinônimos. Assim, o grupo ia falando das imagens contidas nos Hai-kais, não somente de forma pensada, mas também sentida.
Ao final, os alunos arriscaram a escrita de alguns Hai-kais. Eles não escreveram com a perfeição da métrica japonesa, mas empregaram palavras que podem ter representado ou resumido uma impressão, um conceito subjetivo. O objetivo, na verdade, era aprender a escandir versos, a contar as sílabas poéticas, introduzindo o aprendizado do ritmo. Outro objetivo era buscar a expressão de uma ‘imagem’ por meio da escrita breve e reflexiva das palavras, observando sua ambigüidade, assim como vimos nos Hai-kais. Transcrevo aqui alguns textos escritos por eles:
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Onde passa a luz A noite desce A
vida suprime O
pássaro voa alto
neste dia claro o dia cai o
sol, a vida dispara em
direção ao horizonte
fora de meu coração morres e não sabes mais a
pura ilusão ao
chegar, uma lágrima cai
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Surgiu Onde
andas vagalume Um grande medo
Aconteceu que
ilumina minha noite é como se
desculpam
morreu diante dos olhos dourados do tigre nem
sempre alegre seres
medíocres
Observamos que o Hai-kai número 3 foi construído com a métrica japonesa: 5,7,5 versos, o que não ocorre com os demais. Mas o que vale mesmo é brincar com o ritmo e as formações poéticas breves e instantâneas que subvertem o sentido das palavras. Vamos escandir o terceiro Hai-kai, lembrando que a última sílaba métrica de cada verso é sempre a última sílaba tônica da palavra.
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A/ vi / da/ su / pri/ me
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4 5 6
7
o / sol / a / vi / da/ dis/ pa / ra
1 2 3 4 5
a/
pu/ ra i / lu / são
Estes jogos e brincadeiras com as palavras, que envolvem a leitura sistemática de textos, aos poucos podem se transformar em outras práticas também interessantes, como, por exemplo, as de declamar textos poéticos, nos diferentes espaços da escola. Dizer textos na escola, não somente na sala de aula, socializa o processo da escrita de maneira mais imediata e faz com que a criança possa atingir, mais efetivamente, o sentido do texto. Esta prática também faz com que as funções da comunicação sejam amplamente possibilitadas: a comunicação do texto poético redimensiona a comunicação cotidiana da linguagem, faz com que as interlocuções educativas sejam revigoradas, refeitas, sejam restauradas em nome de uma atitude menos funcionalista, menos mecânica do ato de educar. Afinal, falar o texto, dizer o texto, é agir. E, assim pensando, como uma ação sobre a língua poderá produzir uma ação sobre o fazer?
Esta função sociabilizadora da comunicação poética no espaço escolar, por um lado poderá possibilitar um novo tipo de ‘escuta’ sensível e conseqüentemente novas e inventivas formas de expressão da oralidade. Uma vez abandonada, dentro do circuito escolar, a poesia acaba cedendo espaço, cada vez maior, à linguagem predominantemente conceitual do aprendizado. Tal linguagem suscita um tipo de escuta que exclui o sentido, a experiência subjetiva com a palavra, a expressão individual do sujeito
Assim, deslocando-se do espaço da sala de aula, muitas experiências de declamação de textos poéticos nasceram pelos diferentes espaços como as salas de professores, secretaria, cozinha, refeitório, corredores, laboratórios, almoxarifado e até nos microfones da secretaria, onde recados e chamados eram feitos durante todo o dia. E, a cada seção de declamação feita pelos alunos, outros declamadores como funcionários, pais, professores, iam-se agregando à proposta e se tornando também declamadores. Alguns grupos ainda permanecem, depois de muitos anos, declamando poesias em eventos e comemorações culturais pelas escolas e espaços de cultura. Esta foi uma experiência também desenvolvida em uma escola pública.
Criamos primeiro o que chamamos de Espaço Poético. Começamos então, selecionando uma grande variedade de textos de poetas brasileiros e estrangeiros a serem declamados. Para o público infantil e juvenil, inúmeros textos foram também selecionados pelos alunos.
Feita a seleção, passamos à leitura destes textos. À medida que iam sendo lidos, os alunos se familiarizavam com eles – ou pelo tema, pela melodia, pelo ritmo; ou pela força das palavras, que exigiam uma fala mais expressiva, mais gestual; ou pelo romantismo de alguns textos; ou, ainda, pelo fato de o texto escolhido apelar mais para atenção do ouvinte, chamar o ouvinte a um diálogo. Enfim, as razões da escolha iam desde o interesse pelos temas propriamente ditos até a relação afetiva emissor/texto, que, muitas vezes, tornava a fala quase que uma conversa, um diálogo com o ouvinte.
Um grupo de alunos optou por ler poemas infantis e também contar histórias para as crianças das séries iniciais. Alunos de 8a série contavam histórias e declamavam poemas na pré-escola, na 1a , 2a e 3a séries. Assim, o gosto pela leitura de poemas e narrativas infantis foi crescendo. Outras interlocuções iam sendo criadas: alunos de 7a série declamavam para os alunos de 8a; estes declamavam para as cozinheiras, para os professores, secretárias, funcionários; então, uma grande rede de declamadores, dentro da escola, foi-se formando.
Na verdade, ao ‘dizer’ a palavra, estamos desenvolvendo uma função comunicativa que requer não só a língua, mas também a contribuição de outras linguagens. O texto escrito se torna um outro texto quando é falado, quando é oralizado. A música da voz, a penetração do olhar, a força do gesto, criam uma espécie de comunicação socializada e convida o ouvinte a participar de uma nova realidade da linguagem. Ao pronunciar a palavra poética, criamos um novo estado de relação com a fala, com a linguagem e, conseqüentemente, com a forma de recepção; ao invés de ouvir simplesmente, passamos a escutar, passamos a melhor entender a relação entre palavra e mundo. Falar envolve toda a extensão de seu organismo em relação ao texto lido, ao território físico e às pessoas que estão escutando. Muitas vezes, o processo de comunicação entre sujeito e espaço é limitado por uma necessidade institucional de controle do sujeito e das atividades por ele desenvolvidas. Mas é um grande erro agir como se os homens fossem uma coisa e sua casa, sua cidade, sua tecnologia ou sua língua algo diferente.
Enfim, estas e outras experiências podem e devem se estender a uma série de outras novas experiências. A escola é um espaço de vida em grupo e pode propor práticas de comunicação interessantes às crianças e à comunidade como um todo, buscando novas soluções para o trabalho subjetivo e sensível com a língua. Deixar falar o ‘subsentido’, o subjetivo, visto numa perspectiva do ouvido que escuta por dentro o sentido das palavras, dos signos, do silêncio que decifra poeticamente as diferentes realidades, torna-se, a cada passo, um desafio e uma idéia a ser concretizada, suscitada nestas possibilidades de entender as palavras e suas ambigüidades, seus sentidos, nestes comportamentos de descoberta da linguagem.
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[1] Este texto é uma adaptação do texto original produzido para uma série de programas da TV Educativa do Rio de Janeiro, denominada A palavra reinventada: seus usos na educação. Programa 4: Bardos e Trovadores. Publicação eletrônica: www.tvebrasil.com.br/salto.
[2] Professora de Literatura e Língua Portuguesa na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia, mestre em Ciências da Informação pelo Departamento de Biblioteconomia ECA/USP.
Doutoranda em Linguagem e Educação pela Faculdade de Educação da USP.