Oralidade na LE e ensino formal – a trajetória de LUCAS

 

Vera Fernandes

Christine Nicolaides

 

  1. Introdução

Neste artigo descreveremos a trajetória de um aprendiz de inglês como LE, sob o foco da autonomia, em dois momentos de sua vida acadêmica: como aprendiz e como professor-estagiário.

Como aluno, LUCAS deixa uma marca principal – a de que tem aptidão e gosto pela língua inglesa, embora com muitas dificuldades de se adaptar ao meio acadêmico. Esses entraves variam desde sua forma de lidar com responsabilidades e tarefas que lhe são solicitadas pelo contexto de aprendizagem, até atitudes que o rotulam, sob o ponto de vista dos professores, como um aluno “rebelde”, que não possui um comportamento condizente com o de um aluno universitário. Apesar desse perfil, um tanto subversivo, no convívio com seus colegas e professores LUCAS transforma sua convicção inicial – não querer ser professor. O contexto parece tê-lo persuadido de que possuía características que poderiam transformá-lo em um bom professor. Além disso, LUCAS é um participante extremamente interessante no que diz respeito a aprendizado autônomo, em especial no que concerne à sua produção oral.  Ele aprendeu a falar inglês sozinho, sem auxílio de ninguém, ou de qualquer ambiente formal de aprendizagem.

Assim, quando chega o momento de enfrentar a sala de aula, como professor- estagiário, LUCAS demonstra interesse e motivação ao elaborar seus planos e faz frente a algumas dificuldades.

  1. Pressupostos teóricos

Quando percebemos autonomia como pano de fundo para a formação do aprendiz é preciso analisar sob que perspectiva ela melhor se situa no contexto educacional no qual estamos inseridos. Mesmo admitindo um conceito genérico como “a capacidade de encarregar-se de sua própria aprendizagem”, ela pode ser concebida em diferentes ângulos. Um deles é diferenciar liberdade de independência e de responsabilidade.

Esses são termos que costumam aparecer não só na área de Lingüística Aplicada, mas também, por exemplo, em  Educação, Filosofia, Sociologia, Antropologia e até mesmo em discussões do cotidiano. Embora seja complexa a delimitação entre esses e o próprio termo autonomia faz-se aqui necessária, para efeitos didáticos, uma reflexão sobre essas nuances.

Conforme Benson, em seu site What is autonomy[1], independência e autonomia podem aparecer como sinônimos. Essa afirmação se justifica já que o primeiro pode ser entendido como “Estado ou condição de quem ou do que é independente, de quem ou do que tem liberdade ou autonomia” (Aurélio, 1999:1099). Todavia, nem todos concordam com essa afirmação como é o caso da distinção trazida entre autonomia e independência nos PCN de língua materna (pág.38):

É importante ressaltar que a construção da autonomia não se confunde com atitudes de independência. O aluno pode ser independente para realizar uma série de atividades, enquanto seus recursos internos para se governar são ainda incipientes. A independência é uma manifestação importante para o desenvolvimento, mas não deve ser confundida com autonomia.

            Ainda, segundo os PCN de língua materna, autonomia refere-se à (pág. 31):

...capacidade de posicionar-se, elaborar projetos pessoais e participar enunciativa e cooperativamente de projetos coletivos, ter discernimento, organizar-se em função de metas eleitas, governar-se, participar da gestão de ações coletivas, estabelecer critérios e eleger princípios éticos, etc. Isto é, a autonomia fala de uma relação emancipada, íntegra com as diferentes dimensões da vida, o que envolve aspectos intelectuais, morais, afetivos e sociopolíticos.

Desta forma, defendemos que seja feita uma diferença entre autonomia e independência, em especial, na área de LA, considerando que o segundo termo refere-se mais a uma questão de atitude. Para que alguém se torne autônomo, a independência faz-se necessária; no entanto, para que seja autônomo, é preciso ainda que ele seja consciente do contexto social no qual está inserido, sendo, assim, influenciado  pelo meio, bem como sendo agente modificador de seu ambiente. Essa concepção relaciona-se, por sua vez, com o termo responsabilidade.

No que tange à responsabilidade, tomamos por pressuposto que, para se agir de forma autônoma, ou mesmo apenas independentemente, é imprescindível fazê-lo de maneira responsável, cujo conceito é aquele (Aurélio, 1999:1754) “que responde pelos próprios atos ou pelos de outrem; que responde legal ou moralmente pela vida, pelo bem-estar etc, de alguém; pessoa responsável (por alguma coisa ou por alguém)”. Conseqüentemente, autonomia implica também responsabilidade em modificar o meio social no qual se está inserido.

Estamos, a todo o momento, suscetíveis a aprender/adquirir novos conhecimentos e temos a escolha  de utilizá-los de forma responsável, ou não. Considerando-se, no entanto, que, para ser autônomo é preciso ser também responsável pelo que acontece conosco e em nosso contexto, responsabilidade e autonomia/independência mesmo não sendo sinônimos, estão interligados.

Scharle & Szabó (2000:4) são autoras que fazem uma relação entre autonomia e responsabilidade afirmando o seguinte:

Teoricamente, podemos definir autonomia como a liberdade e a habilidade de se gerenciar as próprias questões, que também dão o direito de se tomar decisões. Responsabilidade também pode ser entendida como ser encarregado de algo, mas com a implicação de lidar com as conseqüências de suas próprias ações. Autonomia e responsabilidade ambas requerem envolvimento ativo e parecem estar muito inter-relacionadas.  

E por último, e nem por isso menos importante, liberdade é um termo cujo conceito não aprofundaremos neste artigo, embora seja uma condição básica do ser humano. Mas se analisarmos suas definições, podemos ter duas interpretações básicas. A primeira, (Aurélio, 1999:1209) “Faculdade de cada um se decidir ou agir segundo a própria determinação”, parece sugerir que liberdade consiste em agir da melhor forma que convier sem necessariamente considerar o meio social ou as conseqüências de nossas ações. Já em uma segunda concepção, “Poder de agir, no seio de uma sociedade organizada, segundo a própria determinação, dentro dos limites impostos por normas definidas: liberdade civil; liberdade de imprensa; liberdade de ensino”, já são claras as constrições que devemos respeitar em função da sociedade em que participamos. Apesar de ambas interpretações estarem corretas, acreditamos que a segunda concepção é a mais adequada para a discussão aqui apresentada.

Admitindo que autonomia, então, envolve responsabilidade com o contexto social, podemos entendê-la como uma abordagem com implicações políticas. Sob esse viés, Pennycook (1997:45) afirma: “para tornar-se autor do próprio mundo, para tornar-se um aprendiz e usuário autônomo da língua, não é tanto uma questão de aprender como aprender quanto é uma questão de aprender como lutar por alternativas culturais”. Em uma definição também política, Caride (1984:100 apud Paiva e Freitas, 1994), um dos seguidores de Vygotsky, considera autonomia como: “a liberação dos indivíduos, para fazer deles agentes ativos, responsáveis críticos na edificação de sua própria cultura e de sua própria sociedade”. Sob esse mesmo prisma, Caride acrescenta ainda que “... autonomia é ajudar os homens a pensar, decidir e executar por eles mesmos”.

No entanto, mais importante do que distinguir entre autonomia, independência e liberdade, é trazer à baila a questão da interdependência, uma vez que ela considera o contexto social como fator de influência na aprendizagem de um indivíduo e sua interferência nesse mesmo contexto. Kohonen (1992:19 apud Benson 2001:14) defende a inclusão de interdependência no conceito de autonomia:

Decisões pessoais são tomadas necessariamente com respeito a normas sociais e morais, tradições e expectativas. A autonomia então inclui a noção de interdependência, que é ser responsável pela própria conduta no contexto social; estar apto a cooperar com outros e resolver conflitos de maneiras construtivas.

 

  1. Procedimentos metodológicos

Os dados utilizados para a escritura deste artigo provêm de duas fontes diferentes. Uma dessas fontes é uma tese de doutorado[2], cujo objetivo principal era descrever o desenvolvimento da aprendizagem autônoma de língua de quatro participantes, durante um ano letivo no curso de Letras. A outra fonte é um corpus gerado com base no mesmo participante – LUCAS – em momento posterior, mais especificamente, durante seu período de estágio, com a meta de servir para uma análise complementar, ou seja, criar condições para verificar seu desempenho e suas crenças como aprendiz e como professor.  

3.1  Participante e local estudados

LUCAS, 23 anos, ingressou no curso de Letras em 2000, optando pela língua inglesa como LE. Adquiriu competência lingüística, em especial, na oralidade, antes de ter freqüentado um ambiente formal de aprendizagem. É filho único e, não tendo com quem interagir, durante sua infância, passou grande parte de seu tempo assistindo a vídeos, com áudio em inglês, já que na época seu tio era proprietário de uma videolocadora. Pode ser considerado como um indivíduo bastante peculiar. Conforme mostraremos nos dados, ao mesmo tempo em que era rotulado como estranho, por alguns professores e vários colegas devido a seu comportamento, por outro lado, ele próprio e alguns colegas o consideravam como alguém que auxiliava no desenvolvimento da aprendizagem do grupo fora da sala de aula.

Os dados aqui apresentados foram gerados na sala de aula de Língua Inglesa III, em que LUCAS era aluno; no centro de aprendizagem autônoma de línguas da Universidade Católica de Pelotas – o CAAL, em que ele era bolsista de iniciação científica e por vezes também aprendiz e, finalmente, durante sua prática pedagógica, como estagiário, em curso de inglês ministrado para membros da Brigada Militar.

3.2  Geração de dados

Os dados foram gerados com base em:

ü      Questionário escrito respondido por LUCAS sobre assuntos estudados anteriormente em Lingüística Aplicada .

ü      Entrevistas orais com o participante sobre suas crenças relativas a ensino e a aprendizagem de línguas.

ü      Observação e filmagem de aulas de LUCAS como aluno e como professor-estagiário feitas pelas professoras-pesquisadoras.

ü      Sessões de visionamento, reuniões de LUCAS com alguns de seus colegas para assistirem a aulas de Língua Inglesa III de que participavam como alunos. Seus comentários eram gravados e transcritos.

ü      Observações e anotações das pesquisadoras sobre LUCAS como aprendiz e como estagiário.

ü      Weblogs enviados pelo participante à supervisora de estágio, após cada aula, com suas principais impressões.

ü      Relatório de estágio elaborado pelo participante, como requisito para a conclusão do curso.

 

  1. Análise dos dados

4.1  LUCAS em relação ao conceito de autonomia, enfocando liberdade, independência, responsabilidade e interdependência

            Pelo exame dos dados gerados de LUCAS, podemos dizer que, tanto como aprendiz como professor, ele apresenta o perfil de um indivíduo com um nível tão elevado de autoconfiança em relação ao seu conhecimento de língua inglesa, que chega a ser refratário aos benefícios oriundos do sistema acadêmico. É possível observar, por exemplo, que ele exercita pouca responsabilidade como aprendiz, conforme segue:

Transcrição 25 – Reunião 1 – 13/08/02

P1[3] - E tu achas, assim, que tu estás cumprindo teu papel como aprendiz...?

LUCAS – Ah, eu acho que cumpro assim. Eu cumpro assim, meio no sentido tradicional...

P1 – Tu cumpres o tradicional também?

LUCAS – É, porque, senão eu rodo.

 

Podem-se considerar duas possibilidades: ele não acredita que o sistema acadêmico possa ajudá-lo em seus objetivos a não ser o de formalizar-lhe uma profissão e/ou ele realmente acha que o papel do aprendiz é de apenas cumprir obrigações. De qualquer forma, o sistema, nessa situação, não parece ser suficiente no sentido de conseguir motivar o aprendiz a ponto de desafiá-lo a cumprir suas tarefas acadêmicas para aprimorar seus conhecimentos.

 Esse seu desestímulo pode ainda ser confirmado durante a primeira sessão de visionamento quando comenta uma das suas aulas:

Transcrição 26: sessão de visionamento 1 -  09/10/01 – aula gravada em 07/08/01

P1 – Que, que tá achando da aula?

LUCAS – Na hora ou olhando agora?

P1 – Olhando.

LUCAS – Ah, eu acho que tá meio chato. É. Ah e sinceramente, na hora eu nem tava prestando atenção na aula, tava prestando atenção na Maria.

 

LUCAS revela que a aula não estava tendo muita importância naquele momento. Ele prioriza a colega no lugar da atividade proposta pela professora.

Pelas anotações no diário da P1 verificamos que LUCAS, apesar de presente em duas das três aulas observadas, saiu da sala várias vezes, não tendo sido pontual para o início delas. Além disso, pouco participou das atividades propostas, como se percebe no exemplo abaixo,  em que os alunos estão, em sua maioria, engajados em um jogo sobre descrição de roupas dos colegas:

Transcrição 27: anotações de diário – aula 2 – 24/09/01

Lucas ficou para trás porque não havia feito sua descrição e não participou da atividade.

 

Sua falta de interação em sala de aula poderia ter sido justificada por, na época, LUCAS encontrar-se desmotivado, já que estava em um nível inadequado à sua competência lingüística em relação aos colegas.

A professora de Língua Inglesa III, por sua vez, tem uma opinião bastante negativa sobre LUCAS como aluno. Ela faz uma distinção clara entre a concepção do que pensa ser a diferença entre um aluno e um aprendiz: admite que LUCAS possa ter aprendido bem inglês, mas que não possui características adequadas aos preceitos que ela considera como “bom aluno”. Vejamos a fala da professora durante a reunião com a pesquisadora:

Transcrição 30: reunião com a professora de LUCAS - 02/10/01

P – Então, ele é uma pessoa, ele falta muito à aula, ele chega muito atrasado, durante a aula só ... . Quer dizer, na minha aula, como meu aluno, podemos falar do LUCAS como uma pessoa que sabe inglês, mas como aluno é péssimo.

P1 –  Como aluno...

P – Não colabora com colega nenhum... Não, má vontade pra colaborar, eu peço pra ele, ajuda esse grupo LUCAS, monitora aqui, explica aqui, chega atrasado.

P1 – Nem para a Maria?

P – Não, nem com a namorada, porque ela não tá sabendo nada. Eles tão ... e ele não tá ensinando ela.

P1 – Tu acha que ele busca outras coisas pra aprender a língua?

P – Eu acho que ele é muito egoísta, muito egocêntrico, só vê o umbigo dele, só gosta de música, rock pesado, e ele vive na Internet, com rock pesado, letra de música.

 

Assim como a questão da interdependência, já mencionada anteriormente, nesse momento vale trazer à tona a relação que Scharle & Szabó (2000:3) fazem entre responsabilidade e autonomia, argumentando que ambas concepções requerem envolvimento ativo e estão aparentemente muito ligadas entre si. As autoras entendem como aprendizes responsáveis aqueles que “aceitam a idéia de que seus próprios esforços são cruciais para progredir na aprendizagem e se comportam apropriadamente”. Ainda mais adiante, explicitam que “aprendizes responsáveis não precisam ser especialmente bons em trabalho de equipe, mas que estejam dispostos a cooperar com o professor e outros no grupo de aprendizagem para o benefício de todos”. Finalmente, as autoras afirmam que aprendizes responsáveis “conscientemente monitoram seu próprio progresso e esforçam-se para usar as oportunidades disponíveis para seu próprio benefício, incluindo atividades de sala de aula e tarefas de casa”.

Dentro da concepção de Scharle e Szabó, LUCAS, em consonância com a perspectiva da professora, não poderia ser considerado um aluno autônomo. A situação, no entanto, é mais complexa. Os excertos a seguir revelam que a visão do aluno é diferente daquela da professora sobre ele não estar disposto a colaborar com seus colegas.

Transcrição 31: reunião 3 - 14/09/01

P1 – E aí esse trabalhos tu fazes sozinho ou tu fazes em grupo ou em dupla?

LUCAS - Ah, quando é grupo eu faço, não até quando é, quando é opcional eu faço em grupo assim. Até pra dar uma força pro pessoal.

P1 – Hum, hum. Não porque tu aches que vais aprender alguma coisa?

LUCAS - Não, mas não custa nada assim dá uma mão pros outros assim. E depois assim pra testar minhas habilidades de transmitir conhecimento. Porque eu sou da opinião assim que o importante não ter o conhecimento, é transmitir o conhecimento que tem. E, eu costumo ensinar assim, porque é como eu falei antes, eu tenho o meu método, a minha maneira pouco ortodoxa, ortodoxa de ver as coisas.

 

Passando a analisar LUCAS sob o ângulo de professor-estagiário, vemos que seu perfil autoconfiante, a ponto de prescindir do sistema acadêmico, permanece o mesmo, como se constata na observação da supervisora de seu estágio[4]:

Transcrição da observação de aula ministrada em 19/10/2004

Aluno pergunta o que é deli. Ele diz que não sabe. Disfarçadamente, eu o chamo e digo o que é, mas ele não diz para o grupo. Vou perguntar o porquê. Outro pergunta o que é “cats and dogs boarding”. Ele hesita e diz que é buscar o animal em casa. Aí, eu não resisto, peço licença e explico o que é. Nitidamente, ele sequer olhou para o livro para ver o vocabulário. É autoconfiança excessiva.

 

O mesmo traço persiste no weblog que envia à P2 explicando seu comportamento:

Weblog enviado por LUCAS em 20/10/2004

Quanto às palavras “boarding” e “mini deli”, eu já havia procurado antes nos dicionários e não tinha encontrado nada. Portanto, decidi que iria falar o que eu havia entendido da frase. Eu acho que esse tipo de situação funciona em favor do processo de aprendizagem, pois os alunos tendem a achar que o professor possui as respostas para todos os problemas.

Não é á toa que as pessoas não conseguem aprender inglês, matemática ou qualquer outra disciplina. Elas acham que o professor vai fazer tudo por elas. Eu procuro basicamente fazer os alunos pensarem sobre o que estão fazendo e aprendendo, eu sei que parece óbvio, mas a maioria dos professores não faz isso.

 

            Sua justificativa, apesar de coerente com a atitude de um professor que estimula a autonomia, não é suficiente para  explicar sua falta de conhecimento sobre o conteúdo a ser ministrado em sua aula de estágio.

            Na verdade, esse comportamento de dispensar os ditames do sistema tem relação com sua resistência a planejar as aulas de estágio. Vejamos mais uma observação de P2:

Transcrição da observação de aula ministrada em 09/11/2004

Passam para o listening. Não acha o local no CD. Como sempre, ele não traz as coisas organizadas para a aula.

 

            P2 é ainda mais enfática quando expressa sua opinião geral sobre a mesma aula:

 

Parece que ele não entrou no estágio. Tenho a impressão de que encara como uma atividade momentânea, sem interesse. Não tem significado para ele, é absolutamente superficial. Só o corpo dele está ali, presente, o espírito, a inteligência, a atenção não estão. Percebo que é um tempo desperdiçado, simplesmente o cumprimento de um requisito necessário para a graduação, tempo esse que poderia ser muito mais bem aproveitado.

           

            É indiscutível que o professor deve ser capaz de tomar iniciativas no que diz respeito ao gerenciamento de sua sala de aula, levando em conta a realidade com a qual está lidando e exercendo sua autonomia. No entanto, no momento em que não se apercebe de suas próprias limitações, não prepara suas aulas, e considera seu método como a única alternativa viável para a aprendizagem de seus alunos, LUCAS, no papel de professor, acaba por prejudicar o processo de aprendizagem. Aqui, os conceitos de liberdade, independência e responsabilidade acabam por se confundir e não enfatizam a importante distinção apresentada neste artigo – liberdade e independência não significam fazer apenas aquilo que julgamos adequado e sim fazê-lo de acordo com as necessidades e constrições apresentadas pelo contexto.

A noção de interdependência também pode ser vista nos dados, em que uma discrepância entre a visão da professora de inglês de LUCAS e a sua própria percepção aparece. Apesar de a professora não o ver como colaborador no grupo, LUCAS não pensa da mesma maneira. Ele afirma sua habilidade para transmitir seu conhecimento. Essa habilidade, contudo, nem sempre é confirmada em sua práxis pedagógica, como veremos na próxima sessão.

 

4.2  LUCAS e a oralidade

LUCAS iniciou o curso já com uma boa competência lingüística, adquirida no contato com filmes, como ele mesmo explica:

Transcrição 33: reunião 2 - 29/08/01

LUCAS – É, que no caso é diferente assim. Eu fui bombardeado desde pequeno.

P1 – Foi bombardeado por quem?

LUCAS – Ah, pela TV assim. Ah, é que é uma história meio comprida assim. Tá, meu pai trabalhava na B., sabe? Ele era, ele é gerente aqui de vendas. E aí a, a B. deu um videocassete de presente pra ele ... É. Hã, e aí assim eu, eu desde pequeno assim passei, deixa eu ver,  eu passei  dos 5 até os 16 anos assistindo videocassete... É. Acho também que porque eu era filho único, então não tinha irmão pra... ficar comigo nada.

P1 – Tu não lia (legenda)? Tu estavas sendo alfabetizado em Português?

LUCAS – Não, eu acho que nem era alfabetizado na época. Mas eu me lembro assim, eu conseguia entender a história relativamente bem.

 

Por suas declarações, um dos motivos pelos quais LUCAS passava grande tempo assistindo a filmes e, conseqüentemente, exposto à língua-alvo, é porque era filho único e assim não tinha outras crianças para interagir. Dessa forma, ele aprendeu a língua sozinho e em um contexto sem outros indivíduos para praticá-la. Quando entrou em contato com o ensino formal da língua, LUCAS continuou utilizando a mesma estratégia para aprender – de forma solitária. Como conseqüência, parece que LUCAS apresentava dificuldade em interagir com seus colegas em sala de aula, conforme observado por sua professora de inglês. Para ele, essa nova forma de aprender, interagindo com outros, lhe é estranha.

Essa peculiaridade teve efeito em seu estágio, quando parece não conseguir verbalizar instruções básicas para o gerenciamento de uma aula. É o que se pode constatar nas palavras de P2:

Transcrição da observação de aula ministrada em 19/10/2004

Ele tem uma dificuldade de expressão, em português, muito grande. Fica tentando achar a maneira de dizer o que quer – é assim, ó, é quando a gente quer dizer, é o que se usa para dizer, é assim que se fala, quando fizerem o exercício, vão entender. Parece que compreende, mas não consegue ensinar, não acha as palavras que precisa para expressar o que pensa.

 

            Ainda, em uma aula subseqüente, P2 reforça essa idéia:

 

Transcrição da observação de aula ministrada em 09/11/2004

Encerrado o listening, passam ao exercício seguinte. Ele sempre fala ”dêem uma olhada no enunciado, para ver se conseguem entender”. E fica esperando que alguém se arrisque. Aí, confirma, completa ou corrige, conforme necessário.

...

Outra coisa estranha: ele não consegue responder a nenhuma pergunta feita oralmente pelos alunos, se não ler o que está escrito. Digo estranho, porque isso ocorre mesmo quando os alunos pronunciam a palavra corretamente. Não tenho uma explicação para isso, até porque em outros momentos, ele se arrisca, sem nenhum receio, até mesmo inventando significados, para sair de uma situação um pouco complicada.

 

            Não obstante os entraves que apresenta para se expressar oralmente, como professor, LUCAS acredita que a habilidade oral é fundamental na aquisição de uma língua. É o que ele manifesta em mais de uma ocasião:

Weblog enviado por LUCAS em 30/10/2004

Um método que está funcionando no trabalho de conversação é deixar os alunos descontraídos, porque assim eles se esquecem do medo na hora de falar e pronunciam melhor as frases.

 

Questionário escrito respondido por LUCAS em julho de 2004

Quais são os fatores principais na aprendizagem de uma LE?

O desenvolvimento da habilidade de comunicação oral é fundamental para a aprendizagem de uma LE, pois todas as outras habilidades irão nascer a partir da comunicação oral.

 

A aquisição da oralidade, segundo a concepção de LUCAS, não está diretamente vinculada à forma. Sua própria experiência ao adquirir o inglês foi pelo contato direto com o idioma. Isso influenciou sua crença sobre como uma LE é aprendida. Vejamos:

Questionário escrito respondido por LUCAS em julho de 2004

Como achas que uma LE é aprendida?

Eu acho que uma  língua estrangeira é aprendida através do contato com o idioma, não importa se esse contato é feito por meio de filmes, músicas, revistas, clubes de conversação, etc...

 

Ao relatar estágio essa crença se confirma. Ele declara:

Com relação ao estágio em pauta, os alunos estavam todos, em um maior ou menor grau, inconscientemente preocupados em aprender a língua e não em adquiri-la. Foi essa a razão que levou o professor a trabalhar da forma mais descontraída possível na sala de aula. O objetivo era fazer com que os alunos não se preocupassem tanto com a forma e tentassem adquirir a língua da mesma maneira que as crianças fazem.

 

            Em suma, a competência lingüística que LUCAS trouxe quando começou o curso, não o fez um “bom aluno”, segundo os preceitos do sistema acadêmico. Apresentou problemas na interação com seus colegas na universidade e, posteriormente, na sua expressão oral frente a seus alunos. Há evidência de que as experiências pessoais de aprendizagem do indivíduo estão diretamente relacionadas com suas crenças, quando colocadas em prática, quanto ao papel do professor.

  1. Considerações finais

De acordo com Vygotsky (1978), a cognição e o pensamento são moldados pela sociedade em que vivemos e desenvolvem-se como ferramentas para solução compartilhada de problemas, fazendo parte do processo de desenvolvimento dos indivíduos em um contexto organizado socialmente em torno de uma determinada atividade. Sua teoria enfatiza os processos ativo e interativo envolvidos na cognição, especialmente o papel que é desempenhado pelo diálogo e pela língua na instrução, opondo-se à idéia de que a cognição se baseia na reflexão apenas. O mecanismo central nessa visão interativa da cognição é o desenvolvimento do andaimento psicológico, para permitir a transferência de responsabilidade, compreensão e habilidades entre indivíduos, em uma velocidade compatível e incentivadora do desenvolvimento de autonomia em relação à habilidade que está sendo adquirida.

Analisando o caso de LUCAS sob uma perspectiva vygotskyana, parece que o fator interação social esteve ausente durante sua infância. É fato que LUCAS adquiriu competência lingüística em inglês ao interagir com filmes, se considerarmos como competência lingüística apenas a capacidade de compreender a língua e nela se expressar. Na abordagem vygotskyana o desenvolvimento humano está proximamente relacionado à prática social. A língua é vista como uma ação coordenada dos participantes com uma proposta social. A concepção de proficiência lingüística muda, de conhecimento metalingüístico e domínio do sistema, para o uso apropriado da língua no desempenho de ações no mundo. Assim, a aprendizagem acontece coletivamente, é co-construída por aqueles que dela participam por meio da interação. Pelos dados analisados, percebe-se que LUCAS carece dessa habilidade em desempenhar tarefas que exigem expressão oral desenvolta.

 

  1. Referências bibliográficas

 

HOLANDA FERREIRA, A. B.. Novo Aurélio - O dicionário da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999.  

KOHONEN, V. Experiential language learning: second language learning as cooperative learner education. In: D. Nunan (ed.) Collaborative language learning and teaching. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.

PAIVA, M. da G. & FREITAS, S. Vygotsky, Second Language Acquisition and Learner Autonomy: some Preliminary Considerations. In: LEFFA, V. (org.) Autonomy in Language Learning. Porto Alegre: UFRGS, 1994.

Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução aos parâmetros curriculares nacionais – Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997.

PENNYCOOK, A. Cultural Alternatives and Autonomy. In: BENSON, P. & VOLLER, P.. Autonomy and Independence in Language Learning. London: Longman, 1997.

SCHARLE, Á. & SZABÓ, A.. Learner Autonomy – A guide to developing learner responsibility. Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

VYGOTSKY, L. Mind in Society. The Development of Higher Psychological Processes. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1978.

 



[1] http://ec.hku.hk/autonomy/what.html

[2] A busca da aprendizagem autônoma de línguas no contexto acadêmico – UFRGS, 2003. Autor: Christine Nicolaides.

[3] P1 refere-se à pesquisadora Christine Nicolaides

[4] P2 – pesquisadora Vera Fernandes