A HETEROGENEIDADE TIPOLÓGICA DA REDAÇÃO DE VESTIBULAR

 

Vanilda Salton Köche[1]

Cinara Ferreira Pavani[2]

                                                                       Odete Maria Benetti Boff[3]

 

RESUMO: Este artigo mostra os resultados da pesquisa A redação do vestibular como gênero textual, realizada na Universidade de Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos. O estudo analisa a heterogeneidade tipológica presente na redação de vestibular. Apresentam-se, inicialmente, algumas considerações teóricas sobre a redação de vestibular, os gêneros textuais e as tipologias de seqüências. Em seguida, são mostrados dados quantitativos referentes à presença de seqüências tipológicas nas dissertações analisadas. E, por fim, realiza-se uma análise ilustrativa de uma dissertação produzida por um candidato no Vestibular Verão/2004.

 

INTRODUÇÃO

 

            Nem sempre se desenvolve na escola uma metodologia voltada para a discursividade, que pressupõe a construção de diferentes gêneros textuais, usados em distintas situações de interação verbal. Geralmente, é repassada aos alunos uma estrutura tradicional de redação, com o propósito de atender às supostas exigências da seleção para o ingresso na Universidade, através do Concurso Vestibular.

            Nesse sentido, para Meurer (1996), o ensino das modalidades tradicionais é deficiente, entre outras razões, porque não se preocupa com o conjunto de variáveis sócio-cognitivas implicadas no uso da linguagem humana e, além disso,  não dá conta dos gêneros textuais que os indivíduos utilizam nas mais diversas situações de interação.

            Trata-se de entender a língua numa perspectiva sócio-interacionista, na qual a sua função não é apenas de comunicação, mas, antes de tudo, de meio de interação social entre os indivíduos. O ensino de língua, portanto, deve partir de atividades lingüísticas situadas e não desvinculadas de seus usuários.

            Nessa perspectiva de trabalho, este artigo apresenta os resultados da pesquisa A redação de vestibular como gênero textual, desenvolvida na Universidade de Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos, que tem por objetivo investigar a redação do vestibular, no que se refere às diferentes tipologias que a constituem enquanto gênero textual. Para tal, inicialmente, apresenta-se a fundamentação teórica; em seguida, a metodologia e os resultados.

 

 


1 A REDAÇÃO DE VESTIBULAR

 

      Na prova de redação do vestibular da UCS, é solicitada ao candidato a produção de um texto dissertativo. Para Delforce, a dissertação busca construir uma opinião de modo progressivo, demonstrando o que se pensa e como se pensa (1992). Para se referir ao  mundo real, são usados como recurso de argumentação os conceitos amplos, de modelos genéricos. Segundo Travaglia, nessa tipologia, busca-se essencialmente o refletir, o explicar, o avaliar, o conceituar, o expor idéias para dar a conhecer, para fazer saber (1991, p. 50).

      A redação de vestibular é escrita a partir de uma situação comunicativa específica, que pressupõe a interação entre dois sujeitos. Segundo Pilar, os vestibulandos escrevem o texto porque ele constitui a prova de redação para o ingresso no Ensino Superior, e os avaliadores que compõem a banca o lêem para classificar os alunos que almejam a uma vaga na Universidade (2002, p. 161). Assim, esse gênero textual tem como função social avaliar a competência do candidato no uso da linguagem numa determinada situação de interação, atendendo a propósitos de pelo menos duas partes: vestibulandos e banca avaliadora.

            Nessa perspectiva, a redação de vestibular não pode ser vista simplesmente como um  texto dissertativo, narrativo ou descritivo. De acordo com Pilar, faz-se necessário avançar nessa concepção e considerá-la como um gênero, através do qual os vestibulandos devem negociar significados com sua audiência-alvo no contexto específico do concurso vestibular (2002, p. 161).

            Como gênero, a redação de vestibular caracteriza-se pela diversidade tipológica. Flores a define como um gênero híbrido, já que nele (co)habitam diferentes perspectivas que se manifestam em sua plenitude concreta no exercício da linguagem feita pelo sujeito em sua relação com o outro, sendo inadmissível uma abordagem meramente lingüístico-tipológica. Segundo o autor, não podemos considerar um tipo como “puro”, pois há uma heterogeneidade de seqüências relacionadas para formar uma unidade significativa  (2003, p. 95-96).

            Uma abordagem na perspectiva dos gêneros textuais pode tornar clara a constituição da redação de vestibular enquanto uso discursivo da língua.

 

2 OS GÊNEROS TEXTUAIS E AS SEQÜÊNCIAS TIPOLÓGICAS

 

            É através dos gêneros que se dá toda atividade discursiva, o que mostra a sua multiplicidade. Bakhtin afirma que “se não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível” (1992, p. 302). Os gêneros exercem uma função primordial no processo de interlocução, uma vez que a língua é entendida como uma atividade social, histórica e cognitiva e privilegia-se a natureza funcional e interativa,  e não o aspecto formal e estrutural da língua.

            Para Bakthin, os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis de enunciados produzidos pelas mais diversas esferas da atividade humana (1992, p. 127). Enquanto os gêneros são até certo ponto estáveis, os textos que os materializam são variados e maleáveis. Por sua vez, Bronckart afirma que  os textos são produto da linguagem em funcionamento permanente nas formações sociais: em função de seus objetivos, interesses e questões específicas, essas formações elaboram diferentes espécies de textos, que apresentam características relativamente constantes e ficam disponíveis no intertexto como modelos indexados para os contemporâneos e as gerações posteriores (1999, p. 137).

            Marcuschi qualifica os gêneros como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos. Surgem das necessidades e atividades sócio-culturais e na relação com inovações tecnológicas, que motivam a explosão de novos gêneros e novas formas de comunicação, quer na oralidade, quer na escrita (2002, p. 19). Entre elas, destacamos as teleconferências, os telegramas, as telemensagens, as cartas eletrônicas, os chats e outros. Os gêneros textuais são o resultado do contexto cultural em que se originam e se desenvolvem.

            Marcuschi coloca que os gêneros contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do dia-a-dia (2002, p. 19-23). Eles podem se expressar em diversas designações, podendo-se mesmo dizer que são ilimitados. Os gêneros textuais, segundo o autor, são os textos encontrados na vida diária e que apresentam padrões sócio-comunicativos caracterizados pela composição funcional, objetivo enunciativo e estilo realizados na integração de forças históricas, sociais e institucionais.

            De modo geral, o gênero é heterogêneo, uma vez que pode conter diferentes seqüências tipológicas em sua estruturação. Por exemplo, a redação de vestibular pode apresentar uma seqüência narrativa, uma argumentação, uma descrição, uma predição, uma explicação ou uma injunção. Assim, embora a redação do vestibular, em geral, tenha um caráter dissertativo, pode conter diferentes seqüências tipológicas que se apresentam a serviço da dissertação.

            Já a tipologia textual, de acordo com Marcuschi, designa uma espécie de seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística predominante de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, relações lógicas). Quando se classifica um certo texto como narrativo, descritivo ou dissertativo, não se está determinando o gênero, mas uma tipologia textual predominante. Em geral, os tipos textuais abrangem a narração, a argumentação, a exposição, a descrição e a injunção (2002, p. 22).

      O texto argumentativo estrutura-se a partir de uma sucessão de quatro fases: fase de premissa (dados), em que há uma constatação de partida; fase de apresentação dos argumentos, ou seja, de elementos que orientam para uma conclusão (regras gerais, justificativas, ilustrações etc); fase da apresentação de contra-argumentos, em que se colocam restrições relacionadas à orientação argumentativa  e que podem ser ratificados ou refutados por exemplos, justificativas, etc; fase de conclusão (ou de nova tese) que resume e integra os efeitos dos argumentos e contra-argumentos (BRONCKART,  1999, p. 226-227). A estrutura canônica, no entanto, pode ser alterada, invertendo-se a ordem.

A descrição é a verbalização de um processo de observação, de um olhar sobre o objeto. Na descrição, segundo Travaglia (1991), o autor do texto se coloca na perspectiva do espaço em seu conhecer. Isso o leva a caracterizar e dizer como é o objeto descrito, escolhendo as informações apropriadas para esse fim.

Conforme Adam (1987) e Petitjean (1989), a seqüência descritiva comporta três fases principais: a fase de ancoragem, na qual é introduzido o tema-título da descrição; a fase da aspectualização, em que os aspectos do tema-título são enumerados e a fase do relacionamento, na qual estabelecem-se associações entre o tema-título e outros elementos (metáforas, comparações etc).

A seqüência narrativa caracteriza-se pelo contar o que aconteceu, relatando os fatos, os acontecimentos. Conforme aponta Bronckart (1999), há diferentes modelos de seqüência narrativa, e o modelo mais comum é constituído de três fases: situação inicial, na qual se apresenta um determinado estado de coisas (equilíbrio); a transformação, em que o estado de coisas inicial é alterado, criando-se uma tensão e a situação final, que descreve o equilíbrio advindo da resolução das tensões.

De acordo com Travaglia, na injunção, o objetivo é incitar à realização de uma situação (ação, fato, fenômeno, estado, evento, etc.), requerendo-a ou desejando-a, ensinando ou não como realizá-la. Nesse caso, a informação é sempre algo a ser feito e/ou como ser feito. Cabe ao interlocutor realizar aquilo que se requer, ou se determina seja feito, aquilo que se deseja que seja feito ou aconteça, em um momento posterior ao da enunciação (1991, p. 50). São classificados como injuntivos as receitas, os manuais e as instruções de uso e montagem, os textos de orientação (leis de trânsito), os textos doutrinários, as propagandas.

Na predição, o locutor/enunciador faz uma antecipação pelo dizer de situações cuja realização terá ocorrência posterior ao tempo da enunciação, sendo pois uma previsão, um anúncio antecipado (TRAVAGLIA, 1991, p. 60-61).  As formas verbais têm sempre valor de futuro, visto ocorrer uma predição de coisas que estão por acontecer. Há certos tipos de textos que normalmente são preditivos ou contém partes preditivas, como os horóscopos, as profecias, os boletins meteorológicos, as previsões em geral, os prenúncios de eventos, comportamentos e situações.

Na explicação, o produtor responde a um problema da ordem do saber, a partir da investigação de uma evidência, ou seja, de um fenômeno normal que se torna objeto de investigação. O texto explicativo também pode partir de um paradoxo que se refere a algo aparentemente incompatível com o sistema estabelecido de explicação do mundo. O raciocínio explicativo, segundo Bronckart,  apresenta-se pelas seguintes fases: a constatação inicial, que introduz um fenômeno não contestável); a problematização, em que é explicitada uma questão da ordem do porquê ou do como; a resolução, que responde à questão colocada; a conclusão-avaliação, que formula e completa a constatação inicial (1999, p. 229).

 

3 METODOLOGIA

 

            Este estudo tem um enfoque quantitativo e qualitativo-interpretativo; descreve e analisa a redação de vestibular enquanto gênero textual. O corpus constitui-se por setenta e cinco redações dos candidatos do Concurso Vestibular Verão/2004, da Universidade de Caxias do Sul. O critério para a escolha das redações levou em conta a nota obtida pelo candidato, de 10 a 12 pontos. Esses valores equivalem às notas mais altas atribuídas pela UCS na avaliação da prova de redação.

 

4 RESULTADOS

 

            Apresentamos a seguir os dados quantitativos obtidos na pesquisa e, na seqüência, a análise qualitativa-interpretativa.

 

TABELA: Seqüências tipológicas a serviço da dissertação

 

SEQÜÊNCIAS TIPOLÓGICAS

     FREQ.                                               %

01- Seqüências injuntivas

02- Seqüências descritivas

03- Seqüências narrativas

04- Seqüências preditivas

05- Seqüências explicativas

TOTAL

        57                                              42,86%

        51                                              38,35%

        14                                              10,53%

        10                                                7,52%

        01                                                0,75%

      133                                                100% 

           

            Constatamos, na tabela, que a seqüência tipológica mais utilizada pelos vestibulandos foi a injuntiva, com um percentual de 42,86% de ocorrências nas 75 redações analisadas. Em segundo lugar, com 38, 35%, está a seqüência descritiva. A seguir, a seqüência narrativa, com 10,53% e a preditiva, com 7,52%. A seqüência explicativa foi a menos empregada, com 0,75%.  Verifica-se que os vestibulados valem-se de diferentes seqüências tipológicas para dar consistência à sua redação de vestibular, ou seja, usam essas seqüências a serviço da dissertação, contribuindo para a argumentatividade do discurso.

            O uso predominante da injunção (42,86%) nas redações talvez possa ser justificado pela natureza argumentativa do texto exigido no Concurso Vestibular, uma vez que essa tipologia textual, segundo Travaglia (1991), tem por objetivo incitar à realização de uma situação. Ao usar a seqüência injuntiva, o vestibulando procura convencer o interlocutor a realizar algo referente à idéia defendida no texto.

            O significativo emprego da seqüência descritiva (38,35%) revela a intenção do vestibulando em conduzir o leitor no seu percurso argumentativo. Guedes ressalta que a descrição dá um rumo ao leitor; coloca-o em algum lugar e indica o caminho pelo qual ele vai andar,  na direção que o leve a sentir o que se quer que ele sinta enquanto lê o texto  (2002, p. 179).

            A seqüência narrativa (10,53%) foi pouco empregada. Esse resultado surpreende, uma vez que essa tipologia dá consistência argumentativa à dissertação, através de pequenos relatos, exemplos, dentre outros. Pode ser que isso tenha ocorrido em função da  abordagem das tipologias textuais na escola, geralmente, ensinadas de forma estanque. No entanto, sabe-se que um texto pode mesclar diferentes tipologias.

            O baixo emprego das seqüencias preditivas (7,52%) e explicativas (0,75%), por sua vez, parece estar relacionado ao fato de que elas não são, em geral, abordadas no Ensino Fundamental e Médio. Cabe ressaltar que o candidato convive com a seqüência explicativa durante toda a sua formação escolar, pois ela está presente nos livros didáticos de todas as áreas. No entanto, não se verifica o uso dessa seqüência em sua dissertação.

           


O gráfico que segue ilustra o emprego das seqüências tipológicas nas redações de vestibular analisadas:

 


6 UMA ANÁLISE ILUSTRATIVA

 

O texto a ser analisado foi produzido no Concurso Vestibular/Verão 2004. A proposta da redação apresentada para o candidato foi a produção de uma dissertação a partir do seguinte tema: Cantando em versos ou enrolando-se na bandeira, o brasileiro tem demonstrado sua paixão pelo Brasil. Na sua opinião, o amor à Pátria depende das formas de demonstrá-lo publicamente?

 

 

01.

02.

03.

04.

05.

06.

07.

08.

09.

10.

11.

12.

13.

14.

15.

16.

17.

18.

19.

20.

21.

22.

23.

24.

25.

26.

27.

28.

29.

 

Falso Patriotismo

 

O amor à pátria depende muito mais do sentimento de cada indivíduo em relação à mesma do que das demonstrações públicas referentes a ele. Na verdade, pelo menos no caso do Brasil, elas parecem de uma forma forçada, dando uma nítida idéia de artificialidade.

Todos viram Romário, atacante da Seleção Brasileira, enrolar-se na bandeira nacional quando a quarta Copa do Mundo foi conquistada, em noventa e quatro (narração). Foi um belo ato de patriotismo! Pena que falso, pois, longe das câmeras, é de se duvidar que o jogador aja da mesma maneira. É difícil de acreditar que o tal Romário, como a maioria dos brasileiros, preocupa-se com o que é melhor para o país na hora de escolher entre um produto importando e um nacional, por exemplo. Mesmo levando em consideração iguais preços e qualidade, não o fariam, pois a população do Brasil ainda sofre do mal de que o que vem de fora é melhor. Australianos e norte-americanos são exemplos de sociedades que, dificilmente, compram produtos importados, com o receio de prejudicar a economia local (descrição). E será que se, em noventa e quatro, a Seleção saísse derrotada, o povo aplaudiria mesmo assim? Isso aconteceu, de fato, com um time europeu, com Copa posterior, devido à bela representação que fizeram do país, no evento internacional (narração). Isso, sim, é patriotismo, e, no entanto, é difícil imaginar os brasileiros agindo de tal forma.

Os atos públicos de amor à pátria não significam nada se não estiverem associados a um sentimento positivo em relação ao país. A atitude de enrolar-se na bandeira, por si somente, não tem nenhum fundamento de patriotismo. Pelo contrário, é até um desrespeito à mesma. A Austrália e os Estados Unidos, antes mencionados, também fazem grandes demonstrações de valorização das suas nações – provavelmente maiores que as brasileiras. Elas são baseadas em um patriotismo sólido e comum a todos os cidadãos.

Há de exigir-se da população brasileira que tenha atitudes que realmente valorizem o país (injunção). A verdade é que aplaudir a nação, mesmo derrotada, é um ato muito mais nobre que se envolver na bandeira da pátria.

 

 

A redação de vestibular analisada é uma dissertação, pois propõe a reflexão sobre o tema proposto a partir de uma seqüência de base argumentativa. Embora se verifique a predominância dessa seqüência, o texto analisado é heterogêneo do ponto de vista tipológico, pois apresenta também a inserção das seqüências narrativa, descritiva e injuntiva, formando uma unidade de significação.

            O candidato apresentou a sua tese já no primeiro parágrafo (l. 01 a 04), afirmando que o amor à pátria depende muito mais do sentimento de cada indivíduo em relação à mesma do que das demonstrações públicas referentes a ele. Essa afirmação constitui a primeira fase do texto argumentativo, ou seja, o ponto de partida para a construção de sua opinião a respeito da questão abordada.

No segundo parágrafo (l. 05 a 21), temos a predominância da seqüência narrativa, a serviço da argumentação, isto é, o candidato usa um argumento de provas concretas, narrando um fato, para dar consistência ao texto: Todos viram Romário, atacante da Seleção Brasileira, enrolar-se na bandeira nacional quando a quarta Copa do Mundo foi conquistada, em noventa e quatro. O autor faz dupla referência a um acontecimento do mundo real, a Copa do Mundo. Num primeiro momento, o vestibulando relata a atitude do jogador Romário em relação à bandeira brasileira. O fato ocorre num tempo específico: mil novecentos e noventa e quatro. Um dos traços lingüísticos predominantes na seqüência narrativa pode ser exemplificado pelo verbo enrolou-se, demarcador de uma ação. O candidato também relaciona uma possível derrota da seleção com a atitude de um povo europeu na copa anterior: aplaudir uma equipe esportiva, mesmo saindo derrotada de sua participação.

Ainda no segundo parágrafo, o autor insere uma seqüência descritiva, como mais um argumento de provas concretas, para referir a postura de australianos e norte-americanos em torno da valorização dos produtos de seus países de origem: australianos e norte-americanos são exemplos de sociedades que, dificilmente, compram produtos importados, com o receio de prejudicar a economia local. Essa seqüência mostra elementos sobre os australianos e norte-americanos, para exemplificar o que caracteriza o verdadeiro patriotismo. Em seguida, o vestibulando indaga se, em noventa e quatro, a seleção saísse derrotada, o povo brasileiro aplaudiria da mesma forma. Para responder a essa questão, ele insere uma seqüência narrativa, apontando que isso aconteceu, de fato, com um time europeu, com Copa posterior, devido à bela representação que fizeram do país, no evento internacional. O autor conclui o parágrafo afirmando que essa atitude revela o verdadeiro patriotismo.

O candidato elege as seqüências narrativas e descritivas para evidenciar que não é suficiente demonstrar publicamente o amor à Pátria. Por isso, confronta o seu pensamento a eventos esportivos, especialmente à Copa do Mundo e à economia. No que tange ao esporte, ele vincula a atitude de Romário diante da vitória com a imagem do Brasil. No que se refere à economia, posiciona-se favoravelmente à valorização dos produtos nacionais.

            A tese é sustentada pelo forte argumento, presente no terceiro parágrafo (l. 22 a 29), de que os atos públicos de amor à Pátria não significam nada se não estiverem associados a um sentimento positivo em relação ao país. Esse parágrafo é constituído por uma seqüência argumentativa, na qual o vestibulando retoma as idéias anteriores para formular sua opinião a respeito do tema. Ele reforça a idéia de que países, como a Austrália e os Estados Unidos, mostram um patriotismo mais sólido. O fato de Romário enrolar-se na bandeira, por si só, não constitui um ato de patriotismo, podendo ser até um desrespeito.

            No quarto parágrafo (l. 30 a 33), de conclusão, o vestibulando faz uso de uma seqüência injuntiva: há de exigir-se da população brasileira que tenha atitudes que realmente valorizem o país.  A presença de uma injunção no parágrafo conclusivo revela um desejo de mudança da situação analisada no texto, e incita à realização de uma atitude. Segundo Travaglia (1991), cabe ao interlocutor realizar aquilo que se requer; no caso em análise,  atitudes da população brasileira que valorizem o país.

            Portanto, no texto em questão, observa-se a presença de seqüências do tipo argumentativo, narrativo, descritivo e injuntivo. O autor faz a passagem entre as seqüências,  tecendo-as e relacionando-as, na intenção de conduzir o leitor a uma reflexão desejada e a uma tomada de posição sobre o tema em questão.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A redação de vestibular é um gênero discursivo tipologicamente heterogêneo, e não um mero texto dissertativo. A análise mostrou que os vestibulandos utilizam diferentes seqüências tipológicas no seu texto. Essas seqüências são inseridas para dar consistência ao discurso do ponto de vista argumentativo.

Constatou-se o emprego de seqüências injuntivas, descritivas, narrativas, preditivas e explicativas nas redações analisadas. A seqüência mais utilizada pelos candidatos foi a injuntiva, que incita à realização de uma situação. Talvez, essa seqüência tenha sido a mais usada em função da natureza do texto argumentativo, que visa a adesão do leitor em relação a uma idéia.

Em segundo lugar, a seqüência mais utilizada foi a descritiva, revelando a intenção do candidato em mostrar à banca avaliadora aonde ele quer chegar. O reduzido emprego das seqüências narrativa, preditiva e explicativa talvez evidencie a necessidade de um trabalho mais exaustivo na escola com relação à função que elas podem exercer no gênero redação de vestibular.

Assim, o ensino de redação requer do professor um entendimento de que os gêneros, em geral, são constituídos de diferentes seqüências tipológicas. Nesse sentido, espera-se poder  contribuir para a prática pedagógica voltada ao ensino da redação de vestibular.

 

BIBLIOGRAFIA

ADAM, J. M. Types de séquence textuelles élémentaires. Pratiques, n. 56, 1987.

BAKHTIN, Mikhail (VOLOCHINOV, V.N.). Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BALTAR, Marcos Antônio Rocha. A competência discursiva através dos gêneros textuais: uma experiência com o jornal de sala de aula. 2003. 141 f. Tese (Doutorado em Teorias do texto e do discurso) - Curso de Pós-graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

BRONCKART, Jean-Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos. São Paulo: EDUC, 2003.

DELFORCE, Bernard. La dissertation et la recherche des idées ou: le retour de         l'inventio. Pratiques75, p. 3-16, sep. 1992.

FLORES, Valdir do Nascimento & SILVA, Carmen Luci da Costa. O texto dissertativo em debate: uma análise de redações de vestibular. In: Redação instrumental. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2003. p. 89-109.

GUEDES, Paulo Coimbra. Da redação escolar ao texto: um manual de redação. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONISIO, Angela Paiva; MACHADO, Anna Rachel. Gêneros textuais & ensino. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002, p. 19-36.

MEURER, José Luiz. Gêneros textuais e o ensino de português. Informativo do PET de Letras/UFSC, Florianópolis, ano 1, n. 3, set. 1996.

PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: Ensino Médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999.

PETITJEAN, A. Les tipologies textuelles. Pratiques 62, juin 1989, p. 86-125.

PILAR, Jandira. A redação de vestibular. Santa Maria: Pallotti, 2001.

SANTOS, Márcia M. Cappellano dos. O texto explicativo. Caxias do Sul: EDUCS, 1998.

SILVEIRA, Rosa Maria Hessel. Leitura e produção textual: novas idéias numa velha escola. Em aberto, Brasília, n. 52, p. 39-52, out./dez. 1991.

TRAVAGLIA, Luiz Carlos. Um estudo textual-discursivo do verbo no português do Brasil. 1991. 330 f. Tese (Doutorado em Lingüística) – Curso de Pós-Graduação em Letras, Universidade Estadual de Campinas,  Campinas.

 

 

 



[1]Professora da Universidade de Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos – e-mail: vskoche@ucs.br

[2]Professora da Universidade de Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos – e-mail: cfpavani@ucs.br

[3]Professora da Universidade de Caxias do Sul, Campus Universitário da Região dos Vinhedos – e-mail: odeteboff@verlag.com.br