O ENSINO DA NORMA PADRÃO A PARTIR DOS TEXTOS DA IMPRENSA

 

Tadeu Luciano Siqueira Andrade

UNEB – CAMPUS IV

 

Introdução

Com o avanço dos estudos da ciência da linguagem, muitas reflexões surgiram acerca do ensino da língua materna, no nosso caso, a língua portuguesa. As teorias lingüísticas, surgidas na contemporaneidade, propiciaram profundas transformações no ensino da língua. Os pontos gramaticais passaram a ser tratados em um contexto mais amplo, o texto, na sua estrutura e na sua diversidade.

Nessa perspectiva, não se aboliu o ensino da gramática, mas iniciaram-se uma análise e reflexão sobre a língua. Esta deixou de ser um bloco homogêneo, um sistema abstrato de regras, passando a ser analisada em situação de uso, seja oral ou escrita em contextos diversos.

Se o aluno, ao chegar à escola, domina as estruturas complexas da língua, tem uma competência enciclopédica, o que ensinar nas aulas de língua portuguesa?

Um ponto que deve direcionar o ensino da língua portuguesa: Nós não ensinamos a língua portuguesa, e sim uma modalidade desta língua: a norma padrão.

Em meio a toda essa problemática, outra pergunta nos cabe fazer: Por que ensinar a norma padrão?

Se a língua é uma atividade social, é através dela que o homem interage no processo histórico, tornando-se agente deste processo, devemos garantir ao aluno o acesso à norma lingüística, considerada de prestígio, sem emitirmos juízos de valor a qualquer variante lingüística, estimulando, nas aulas de Língua Portuguesa, um conhecimento cada vez melhor de todas as variantes para que o aluno possa fazer suas escolhas. A linguagem não existe, a não ser na interação lingüística, isto é, no uso.

 

O Ensino da norma padrão

 

É necessário questionarmos os dois conceitos de norma dentro dos estudos da língua. Norma como um conjunto de possibilidades de uso adequado a cada situação sociocomunicativa, e norma no sentido normativo, regra que prescreve o modelo de algo que deve ser seguido. A norma não é apenas um conjunto de formas lingüísticas, é também um conjunto de valores sociais. Daí, a valorização dos grupos através da linguagem. Um padrão lingüístico proposto fora da observação dos usos, não constitui o padrão real da língua. Existe uma norma lingüística no sentido amplo, normalidade, da qual não podemos fugir, e norma lingüística no sentido estrito, o de normatividade. A primeira está em questão o uso. A segunda é a norma “desejável” por questões histórico-sociais. Está em questão o bom uso da língua do ponto de vista social. Dessa forma, há a norma de uso e a norma social. Cabe ao usuário saber usar e empregá-la.

As aulas de Língua Portuguesa devem consistir em ensinar a norma padrão, incentivando o aluno à leitura e à escrita do texto para que o aluno seja inserido no mundo letrado através das relações discursivas, além do foco dos propósitos da gramática normativa. Não cabe à escola ignorar o conhecimento das estruturas complexas que o sistema lingüístico oferece ao aluno, nem substituir a norma coloquial pela padrão, mas oportunizar-lhe o domínio das diversas modalidades da língua portuguesa.

Assim as perguntas como, por que e o que ensinar devem ser respondidas considerando a relação de pertinência de determinado conteúdo no desempenho lingüístico do aluno. Não estamos aniquilando o ensino da norma padrão, mas partindo dele como paradigma para a reflexão a respeito da língua, tendo como base o seu uso e a funcionabilidade em situações concretas.

De nada adianta, exigirmos dos alunos a memorização de listas, regras e nomenclaturas a serem aplicadas às frases que, do ponto de vista do uso, nada interferem nas habilidades sociocomunicativas, devemos, portanto, contextualizar a gramática para o aluno perceber que a língua se corporifica no texto, e não em frases soltas. As unidades da língua precisam ser analisadas com relação ao texto em que ocorrem, uma vez que neste é a unidade maior de funcionamento da língua. Assim o aluno entenderá que não há separação entre texto e gramática. Um não existe sem o outro.

O texto é uma unidade discursiva, um conjunto de sentenças que:

a. obedece às normas da língua;

b. é um ato comunicativo;

c. exerce uma função social e lingüística;

d. nele, entrecruzam os dois aspectos: o funcionalismo e o formalismo.

 

Baseados nos argumentos já citados, desenvolvemos um estudo acerca da norma padrão do português, partindo dos textos veiculados na imprensa, considerando a diversidade de textos com a qual a sociedade se depara. Este estudo teve como objetivo, a partir de textos, coletados por alunos de uma escola da rede pública da Bahia, uma análise de alguns “desvios” que podem implicar a compreensão e produção textual.

Segundo Bagno (2004), a imprensa, embora seja de caráter padrão, mostra-se permeável a todas as formas lingüísticas características do português culto brasileiro, conforme os exemplos colhidos pelo autor em textos de circulação nacional. Analisando os exemplos citados por Bagno, percebemos que tais “desvios” não acarretam a natureza do texto como também a compreensão dos enunciados.

Andrade (2005), analisando alguns textos jornalísticos, constatou que algumas normas prescritas pela gramática tradicional nem sempre coincidem com as normas de uso do texto escrito, como por exemplo, o uso do pronome oblíquo, pontuação, concordância entre outros. Tal estudo culminou com a publicação da obra Sintaxe do Português: da Norma para Uso que nos leva a uma reanálise do ensino da gramática na escola.

 

Bases de Análise

 

A descrição e análise dos textos assentam-se em nos seguintes pressupostos:

(i) as relações sintáticas no texto – coesão

(ii) adequação vocabular – seleção lexical

(iii) lei da pertinência.

Nas relações sintáticas, observamos se os processos de coesão textual foram suficientes para dar legibilidade ao texto. Na seleção lexical, analisamos o uso devido do léxico adequado à situação de uso, aplicando a lei da pertinência (cf. MAINGUENAU, 2001), analisando se os processos, usados pelo redator, estão relacionados ao gênero textual, à situação comunicativa e ao contexto da enunciação.

Não se trata, pois, de emitir juízos de valor acerca do texto, mas, a partir deles, refletirmos sobre o uso da norma padrão em textos diversos.

 

 Texto 01.

A eleição para a Diretoria Executiva colegiada e seus respectivos suplentes da APLB-Sindicato acontece em setembro e o sadio clima de embate eleitoral vai começar a mobilizar a categoria. A inscrição das chapas deverá ser feita no prazo de 10 (dez dias).

APLB-SINDICATO nº 284 – julho/ 2005

 

Texto 02

Litoral Norte é foco de esquistossomose

Os trabalhadores, que tomam conta das casas na ausência dos donos (caseiros) costumam defecar à margem dos rios e lagoas e tomar banho nos córregos tem se tornado cada vez mais perigoso nessa região.

Tribuna da Bahia – quinta-feira, 6 de novembro de 2003.

 

Texto 03

A atual Miguel Calmon originou-se da fazenda Canabrava que pertencia ao mestre-de-campo e desbravador das terras, sogro do VI Conde da Ponte, que aqui a adquiriu em Seis Marias. 

Primeira Página, 21 de fevereiro de 2004.

 

 

Texto 04

Para o coronel Valter Leite, está comprovado, nos autos do processo, a ligação desses policiais com atividades de segurança e fuga do próprio Ravengar e seus parceiros.

A Tarde, 2/4/2004

Texto 05

No dia 20 de novembro de 1695 morre em Alagoas depois de heróica batalha, Zumbi dos Palmares, expoente líder da luta dos escravos por liberdade. Portanto, faz 308 anos que ele morreu lutando pela supressão do racismo e igualdade de direitos em nosso país.

Panfleto – consciência negra – APLB-Sindicato – novembro de 2003.

 

Texto 06

Em 1998, apesar das divergências do marqueteiro Duda Mendonça, (“não posso fazer milagre”). Arraes resolve enfrentar Jarbas Vasconcelos (PMDB). Em novembro, Arraes recomeça sua viagens ao interior, visitando Buenos Aires.

Diário de Pernambuco, 14 de agosto de 2005.

Texto 07

Nos colocamos à sua disposição para quaisquer esclarecimentos que o senhor julgue necessários.

Veja 1725 p. 48 07/11/01

Texto 08

(...) a família Grassi que logo ao abrir fizeram uma festa e no dia seguinte começaram a en-sinar como tocar os instrumentos. Eles pensavam que dava tempo para formar os oito músicos para a festa de 31 de dezembro de 1877.

Expressão, Jan. 2004

 

Texto 09

Desde 1995 o desempenho nas aulas de História dos alunos da escola Municipal Equador melhorou.

Época

Texto 10

Chega no Recife a mais completa mostra de pinturas de Albert Eckhout.

Istoé, 11/02/2002

 

Análise dos textos

 

No texto 01, há uma mistura de tempos verbais. O redator inicia o texto, focalizando um tempo futuro, conforme a data do jornal – julho 2005, o fato ocorrerá em setembro, embora use o tempo presente. Em seguida, usa o futuro através da perífrase vai começar e da forma deverá – futuro do presente. No que se refere ao uso do tempo futuro verbal, comprovamos a preferência do presente ou da perífrase, substituindo o futuro do presente. No texto 02, há uma ambigüidade sintática causada pela distância entre o aposto e o termo fundamental, como também dois termos de natureza explicativa para um único termo: donos são caseiros ou caseiros são trabalhadores? Ainda, encontra-se, neste texto, no que se refere à correlação das orações, não há um encaixamento, por exemplo,... defecar à margem dos rios e lagoas e tomar banho  nos córregos tem se tornado cada vez mais perigoso. O uso do conectivo e não foi suficiente para estabelecer a vinculação sintático-semântica entre as orações.

No que se refere à impropriedade lexical, o texto 03 apresenta tal impropriedade quando o redator usa o termo Seis Marias. Ativando a competência enciclopédica, a partir do contexto da enunciação, percebe-se que se trata do item lexical sesmaria (sistema de distribuição de terras na época das capitanias hereditárias no Brasil).

O texto 04 apresenta um problema de concordância: está comprovado (...) a ligação. Analisando o texto, conclui-se que esta concordância deu-se através dos termos que foram intercalados entre o sujeito e o predicativo: está comprovado, nos autos do processo, a ligação.

No texto 05, encontra-se um problema causado pelo acúmulo de informações referindo-se a uma palavra de regência diferente: pela supressão do racismo e igualdade. Esse problema, de natureza sintática, compromete o sentido do texto.  Se o discurso é uma forma de ação (cf. MAINGUENAU, op. cit), houve uma ação entre os interlocutores? Considerando o texto e o contexto, não, uma vez que Zumbi lutou pela igualdade de direitos e pela supressão do racismo. No texto 06, o problema da concordância não implica o sentido do texto, mas, considerando a lei de informatividade e os papéis sociais do texto, no casso, Arraes, nota-se uma incoerência: Buenos Aires não é interior, considerando o texto e também o processo de campanha de Arraes pelo interior de Pernambuco.

O texto 07, fragmento de um ofício escrito na norma padrão, leva-nos a um questionamento: o uso do pronome oblíquo no início da oração. Embora haja uma oscilação entre as regras do uso do pronome, uma é consensual entre os gramáticos: não é adequado o uso do pronome oblíquo no início da oração. Estudos de Ataliba Castilo (1999), acerca do uso do pronome oblíquo no português do Brasil, dizem que o Português do Brasil é proclítico. Mas como o pronome é um complemento do verbo não deveria vir depois dele?

No texto 08, um elemento no singular é retomado por uma forma verbal no plural: família (...) fizeram.  Há duas explicações para essa concordância:

O sentido plural do termo família – aspecto semântico, e distanciamento entre o sujeito (família) e o verbo – aspecto sintático (ANDRADE, 2005: 126). Não há uma relação entre os as orações que formam o texto, graças à ausência da pontuação, conforme o fragmento que logo ao abrir fizeram.  Segundo Oliveira (2000: 94), ao pontuar, atenua-se ou quebra-se o vínculo sintático entre os constituintes textuais. Ainda na pontuação, encontra-se, no texto 09, um termo deslocado sem o uso da vírgula, o que comprova que as regras da pontuação não apresentam estabilidade entre a norma gramatical e norma de uso.

No texto 10, encontra-se um traço do conservadorismo do português brasileiro, segundo os estudos já citados de Castilo, a preposição em com verbos de movimentos.

 

Resultados das análises

 

Os textos analisados apresentaram os diversos usos do português, em que as normas padrão e vernacular se entremearam na macrossintaxe textual. Essas variações, na sua maioria, não impediram a compreensão do texto. Os textos 2, 3 e 5 desviaram o sentido não por problemas apenas de natureza sintática, mas também semântica, como a ambigüidade, a inadequação vocabular ao gênero textual e o problema de relação entre os constituintes oracionais, implicando na argumentação e compreensão do texto.

O redator, ao escrever o seu texto, precisa selecionar os elementos necessários à compreensão dos enunciados para que seus argumentos tornem-se claros e precisos. Deve, pois, usar uma linguagem simples e de fácil entendimento. A norma padrão é, sem dúvida, necessária e fundamental ponto de referência e comunicabilidade na medida que permite ao usuário de uma língua um código comum para se expressar e ser seguido e entendido por todos com a finalidade de facilitar as formas de expressão, pois língua é conhecimento e regras também, sem dúvida.

Os textos da imprensa possibilitam um contato direto com os usos lingüísticos nas diversas modalidades, especialmente a padrão. O que não se deve é determinar o uso lingüístico sem que haja uma explicação para tal, conforme nos diz o Manual de Redação do Jornal do Commmercio – Recife – PE. 15 de outubro de 2005:

·         magérrimo: superlativo de ‘magro’, muito combatido pelos gramáticos. Não use. Use ‘magríssimo’.

·         Um dos que – com a construção “um. Dos que (e semelhante como ‘um daqueles que’ e ‘um dos que’) o mais lógico é fazer o verbo concordar com o plural.

 

Considerando o exposto e a influência da mídia na sociedade brasileira, por que determinar não use? Podemos determinar o uso de uma determinada forma lingüística? E se o usuário optasse pela forma “macérrimo” em vez de magérrimo e magríssimo? No caso da concordância, se o usuário optasse pela forma verbal no singular para dar ênfase ao sujeito individual, estaria errado?

É necessário que se mostrem as várias possibilidades de uso de que o usuário dispõe no sistema lingüístico, para que ele faça suas escolhas adequadas à tipologia textual, à enunciação, ao contexto de produção como também ao seu interlocutor. Com certeza, no texto, podemos encontrar a exemplificação dos fatos gramaticais, como por exemplo, a concordância, a escolha dos itens lexicais, o arranjo das estruturas, a seleção dos verbos e tempos verbais, a mistura de sujeitos discursivos entre outros. A partir daí, traçar-se nova metodologia que focalize a língua em uso.

 

Considerações finais

 

Voltemos ao ponto de partida!

 

Lembrando que o ensino de Língua Portuguesa é mesmo um tema inesgotável, argumentamos a importância de o professor ensinar a norma padrão, mostrando que esta é uma das variedades da língua, sem julgar uma modalidade superior ou inferior em detrimento das demais. Observamos também a necessidade do uso dos diversos gêneros textuais.

Devemos, portanto, ensinar a norma padrão aos nossos alunos? Tomemos como ponto de partida os textos de comunicação porque achamos estes mais adequados aos processos lingüísticos. Nas análises,  encontramos várias estruturas que convergem para um mesmo ponto, o texto por ser este uma seqüência dotada de sentido e sintaticamente completa. Notamos também uma pluralidade de usos lingüísticos que nos apontam para uma língua diferente da que é descrita na gramática tradicional. Cada uso apresenta uma estrutura própria, motivada pelas circunstâncias pragmático-discursivas.

Retomando Mattos e Silva (1998), dizemos:

Entre as formas usadas nos textos circulados na sociedade, o professor precisará distinguir as estruturalmente menos salientes e socialmente menos estigmatizadas para, sem colocar as segundas em um patamar de inferioridade, selecionar as primeiras para que se treine o uso formal e o uso informal da língua de seus alunos. Assim, o aluno terá acesso à norma culta sem bloqueios e aprenderá a língua, usando-a. Acreditarmos que respondemos à pergunta inicial.

 

 

 

Referências

ANDRADE, Tadeu Luciano Siqueira. Sintaxe do Português: Da Norma para o Uso. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia. 2005.

BAGNO, Marcos, STUBBS, Michael e GAGNÉ, Gilles. Língua Materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola, 2003.

BECHARA, Evanildo. Ensino de Gramática: Opressão? Liberdade. São Paulo: Ática, 2001.

CASTILHO, Ataliba. O Português do Brasil. In: IlARI, Rodolfo. Lingüística Românica. São Paulo: Ática, 1992. p. 237 – 269

CUNHA, Maria Angélica Furtado da, OLIVEIRA, Mariângela Rios e MARTELOTTA, Mário. Lingüística funcional: teoria e prática. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

MAINGUENAOU, Dominique. Análise de textos de comunicação. Trad. De Cecília Perez e Décio Rocha. São Paulo: Cortez, 2001.

MATTOS E SILVA, Rosa Virginia. Contradições no ensino de português: a língua que se fala x a língua que se ensina. São Paulo/Salvador: Contexto/EDUFBa. 1995.

NEVES, Maria Helena Moura: Que gramática estudar na escola? Norma e uso na Língua Portuguesa. São Paulo: Contexto, 2001.