O ENSINO DA LEITURA NOS ANOS INICIAIS EM ESCOLAS MUNICIPAIS DE PASSO FUNDO/RS

 

Silvia Maria Scartazzini

(Prefeitura Municipal de Passo Fundo / PPGEDU-UPF)

Adriana Dickel

(Universidade de Passo Fundo - UPF)

 

            O presente trabalho pretende contribuir com os estudos realizados a respeito do ensino/aprendizagem da língua portuguesa em classes de 2ª, 3ª e 4ª séries do ensino fundamental, trazendo para análise as concepções expressas por professores que atuam junto a essas classes na rede pública municipal de Passo Fundo e as relações que mantém com os enfoques sobre o ensino de língua portuguesa das últimas décadas. Tendo como base os dados coletados mediante a aplicação de um questionário, o trabalho focaliza as compreensões de leitura expressas pelos professores, confrontando-as com as referências contemporâneas que a tomam por objeto.

Como eixos de análise são considerados os seguintes aspectos: os gêneros textuais e o seu ensino e os saberes sobre texto necessários ao planejamento do trabalho pedagógico. Essa opção considerou o fato de as docentes mencionarem o trabalho com o texto em sala de aula como uma das maiores problemáticas enfrentadas em seu dia-a-dia, denunciando a dificuldade presente entre os estudantes de compreenderem o que lêem e estabelecerem relações entre os diferentes tipos de textos e as situações de comunicação nas quais estão inseridos. Além disso, parte-se do pressuposto de que os atos de comunicação ocorrem através de textos e o uso eficiente da língua relaciona-se ao fato de saber usá-los e compreendê-los nas diversas situações discursivas.

           

Aspectos que passam a ser considerados relevantes para o ensino da língua portuguesa segundo os enfoques contemporâneos

 

 Possivelmente, a necessidade de comunicação que se estabeleceu nas relações vivenciadas entre os homens tenha sido uma das grandes motivadoras para que essa espécie tivesse desenvolvido uma forma tão sofisticada de linguagem, capaz de representar, por meio de signos, o mundo e as relações que os seres humanos estabelecem entre si e com o mundo. A língua, que se efetiva na comunicação entre os sujeitos, teve durante muito tempo a fala como sua única forma de expressão. Através da criação social de códigos que constituíram a escrita, teve uma outra forma de expressão, que se realiza por meio de uma estrutura simbólica, pela qual ocorre a mediação entre os homens e a realidade através de signos construídos culturalmente.

A escrita, segundo Colomer e Camps (2002, p.16), permite uma memória coletiva e uma forma de comunicação que ultrapassa a existência física dos interlocutores, possibilitando um grande crescimento do saber e constituindo a base do desenvolvimento científico e cultural da humanidade. Diante dessa perspectiva, a importância atribuída para o ler e escrever tem relação direta com o contexto e os diferentes momentos históricos em que se produziu. Na atualidade, pelas especificidades das sociedades modernas, a alfabetização tornou-se uma necessidade de todos os seres humanos “para que sejam capazes de controlar um tal volume de informações simbólicas” e, através da escolarização obrigatória, um direito de todos os cidadãos de recebê-la em lugares organizados para esse fim, como a escola.

            Torna-se essencial, diante da tarefa atribuída socialmente à escola de ter a língua como objeto de ensino, que esta se comprometa verdadeiramente com a sua função de formar leitores e produtores de textos. Nesse sentido, assume grande importância que os enfoques pelos quais são tratados esses temas sejam amplamente discutidos pelos professores e que seja destinado à leitura de textos, à produção textual e à análise lingüística um lugar central dentro dos programas escolas e, sobretudo, que se concretizem nas salas de aula. Considerando que a abordagem teórico-metodológica sobre o ensino da língua portuguesa, mais especificamente, sobre as práticas de leitura na escola, é capaz de sustentar uma ação metodológica promotora de mudanças nesse âmbito de ensino, trataremos a seguir sobre a leitura e o seu ensino/aprendizagem em classes dos anos iniciais.

 

Resultados da pesquisa a serem considerados

 

            Através da organização das informações apresentadas pelos professores por meio dos questionários[1], nos foi possível realizar aproximações com o que compreendem e como pensam a leitura os professores que contribuíram com esta pesquisa.

            Diante do questionamento sobre quais os conteúdos de língua portuguesa que ensinam aos seus alunos, a leitura (65%) é um dos conteúdos mais citados, seguido pela compreensão e interpretação de textos.

            Ao indicar os materiais que servem de apoio para planejar as aulas de língua portuguesa os professores se referiram aos conhecimentos adquiridos no curso de formação, nos textos e em apostilas de estudos, nas coleções didático-pedagógicas e nas trocas entre colegas. Também situaram livros de literatura, livros didáticos, jornais e revistas. Ainda quanto aos suportes didáticos, cabe destacar que 68,7% dos professores que afirmaram utilizar o livro didático em suas aulas fazem-no em situações de leitura de textos e interpretação. 

            Ao responderem sobre a existência de conteúdos da língua portuguesa que sejam mais difíceis para os alunos aprender, 80% responderam afirmativamente e no que se refere à leitura, os professores anunciaram: a própria leitura, a compreensão do que lêem e a interpretação textual.

            Quanto à existência de conteúdos da língua portuguesa que sejam mais difíceis para ensinar, 57,4% responderam afirmativamente e com relação à leitura indicaram: ensinar a ler (leitura), a interpretação de textos e a oralidade. Quando os professores justificam a dificuldade em ensinar os conteúdos de língua portuguesa os aspectos por eles situados, referem-se às dificuldades dos alunos em compreender os conteúdos e fazer uso deles em situações concretas.

            As dificuldades dos alunos em aprender, segundo os professores, estão relacionadas a: aspectos pedagógicos - 13,4% (questões curriculares, metodológicas, qualificação dos professores), características da própria língua portuguesa - 16,3%, aspectos do contexto social dos alunos - 26,4%, aspectos relativos aos próprios alunos - 55,5% (quanto à leitura situa-se: falta de uso, intimidade e gosto pela leitura; pouca compreensão do que é lido; problemas de leitura relacionados a não estarem totalmente alfabetizados; falta de conhecimentos; falta de atenção e concentração; falta de estudo para memorização e fixação).

 

Elementos para reflexão e análise a respeito da leitura no cotidiano das salas de aula dos anos iniciais

 

A compreensão dos aspectos que envolvem a aprendizagem e o próprio ato de leitura realizado pelos sujeitos foi reconstruída nas últimas décadas. Assim, de um simples ato mecânico de decifração de signos gráficos, que obedecia a uma apropriação sucessiva das letras, das palavras, das frases até chegar aos textos, a leitura passa a ser percebida como uma ação inteligente que os sujeitos realizam.

Nesse novo enfoque, Colomer e Camps (2002, p.31) apresentam a leitura como

 

 

 [...] antes de tudo um ato de raciocínio, já que se trata de saber orientar uma série de raciocínios no sentido da construção de uma interpretação da mensagem escrita a partir da informação proporcionada pelo texto e pelos conhecimentos do leitor e, ao mesmo tempo, iniciar outra série de raciocínios para controlar o progresso dessa interpretação de tal forma que se possam detectar as possíveis incompreensões produzidas durante a leitura.

 

 

Portanto, a compreensão de um texto não está dada pela junção do significado das diferentes palavras que o vão compondo, mas pelas inferências que o sujeito vai realizando durante a leitura, possibilitando-lhe perceber significados que não estão dados na escrita literal do texto. Os professores referem-se reiteradamente ao fato de que os alunos lêem, mas normalmente não compreendem o que leram, e atribuem muitas vezes equivocadamente essa “dificuldade” à falta de vontade de pensar sobre o que foi lido, falta de prática da leitura, falta de leitura fora da escola por inexistência de material disponível, nível socioeconômico e cultural dos alunos.

 Ao tratar dos significados atribuídos pelos leitores às palavras, Smith (1999, p.69) ressalta o aspecto da ambigüidade da linguagem, visto que as diferenças de significado das palavras existem mesmo sem haver diferenças nas características físicas da linguagem; logo, cabe aos leitores apreenderem o significado que está além das palavras. Ao realizar essa afirmativa o autor considera que os leitores sempre possuem uma idéia prévia do tema que lhes será comunicado pelo texto a ser lido, o que lhes permite fazer previsões e ir descartando significados improváveis. Porém, se o leitor não tiver conhecimento algum sobre o tema que irá ler, provavelmente terá dificuldades para a compreensão do texto e, conseqüentemente, na leitura.

Quanto ao ato de leitura, Smith (1999, p.19-21) aponta dois tipos de informação que se fazem imprescindíveis ao realizá-lo: a informação visual e a informação não-visual. A informação visual é aquela recebida por meio dos olhos; assim, não é possível que um sujeito realize um ato de leitura sem que esteja olhando para um material impresso de forma que possa remeter determinada informação ao seu cérebro (não está sendo considerado aqui o método Braille). Entretanto, essa é uma das etapas do processo de leitura que se completa ao unir-se com as informações do tipo não-visual, que são a compreensão da linguagem, o conhecimento do assunto e uma certa habilidade em relação à leitura. Nesse aspecto, o autor acrescenta que, para realizar a leitura, existe uma certa quantidade de informações que se fazem necessárias, e as contribuições para essa quantidade total de informações necessárias podem vir “da frente dos olhos ou de trás dos mesmos”. Nesse sentido, acrescenta que, quanto mais informação não-visual o leitor tiver sobre o tema que está lendo, de menos informações visuais ele necessitará, ou, quanto menos informação não-visual o leitor tiver, maior terá de ser a apropriação visual no momento da leitura. Podemos considerar, diante desta compreensão teórica, os momentos didáticos que estão sendo destinados aos atos de leitura em sala de aula e até que ponto eles oferecem aos alunos a real possibilidade de avançar no seu processo de aprendizagem com relação a leitura, se como expressa a fala de um professor: utilizo a leitura de texto para iniciar um diálogo sobre o tema e partir para a compreensão e interpretação textual, temos com isso que a leitura passa apenas a ser mais uma das estratégias da organização didática utilizada nas aulas de língua portuguesa.

Segundo Heinemenn e Viehweger (apud Koch, 2002, p. 32-34), três grandes sistemas de conhecimentos contribuem para a compreensão: a) o conhecimento lingüístico, que abrange o conhecimento gramatical e lexical, onde ocorre a articulação som/sentido; b) o conhecimento enciclopédico, que é aquele que está disponível na memória dos sujeitos, é o seu conhecimento de mundo, que permite a construção de inferências, de hipóteses e de expectativas a respeito do que está sendo explorado no texto; c) o conhecimento sociointeracional que é o saber sobre as formas de inter-ação através da linguagem.

Estes conhecimentos que estão presentes na memória dos sujeitos são disponibilizados através de estratégias, ou seja, as formas como são disponibilizados pelos interlocutores está relacionada a outros conhecimentos, que, conforme Van Dijk (1996, p.23), estão organizados em modelos estratégicos, utilizados conforme as características, os objetivos e os conhecimentos de mundo do usuário da língua. As estratégias constituem parte do conhecimento geral, “elas representam o conhecimento procedural que possuímos” e permitem a combinação de informações de diversas fontes para que se efetive o processamento textual, seja na sua produção, seja na sua compreensão.

Van Dijk (1996, p.26) está assim afirmando que o uso do conhecimento pelos sujeitos em interação, diferentemente de acontecer de uma forma desorganizada, utiliza-se de critérios: “Presumiremos que o uso do conhecimento seja estratégico, que ele dependa dos objetivos dos usuários da língua, da quantidade de conhecimento disponível a partir do texto e do contexto, do nível de processamento ou do grau de coerência exigido para a compreensão”. 

Os argumentos dos autores acima nos permitem compreender que a escola tem como responsabilidade auxiliar os alunos a aumentar o seu acervo de conhecimentos e auxiliá-los na construção das estratégias necessárias para os atos de leitura e compreensão de textos, porém as referidas aprendizagens têm grande probabilidade de serem comprometidas se as estratégias e os suportes didáticos utilizados nas aulas não forem capaz de oferecer os recursos necessários aos alunos, como é o caso, da utilização reiterada da forma de organização metodológica dos livros didáticos, que para a sua elaboração consideram um aluno padrão, que não condiz com o tipo de aluno da maioria das escolas da atual realidade.

Na perspectiva da busca pela compreensão dos textos pelos sujeitos, Colomer e Camps (2002, p.39-42) apresentam quatro aspectos que devem ser considerados: a) o significado de um texto é possível de ser compreendido sem que o leitor precise recitá-lo; a leitura em voz alta necessita de uma compreensão anterior do texto, para que o leitor possa acrescentar os elementos de interpretação ao recitar o texto; b) os movimentos realizados com os olhos durante a leitura de um texto não ocorrem de forma linear e contínua, mas efetivam-se por saltos e com fixações mais ou menos longas dependendo da categoria das palavras que estão sendo lidas; c) os leitores mais experientes realizam menos fixações por conseguirem observar um campo mais amplo de elementos e reconhecerem as palavras com um único olhar, ao passo que os leitores principiantes têm um campo de visão mais reduzido e precisam fixar mais o olhar em cada palavra. Acrescenta-se a isso a compreensão de que se o texto a ser lido estiver organizado num todo com sentido a leitura estará facilitada[2]; d) o leitor competente usa de forma muito restrita os sinais gráficos impressos, apenas utiliza aquelas marcas que são realmente necessárias para confirmar a sua hipótese e fazer novas antecipações.

Essa preparação das crianças para realizarem antecipações que as venham ajudar na compreensão dos textos deve, segundo Chartier, Clesse e Hébrard (1996), ser realizada antes mesmo que elas sejam leitoras no sentido completo, da decodificação e interpretação. E, para que essa consciência de projetar o que será lido se construa nos leitores, as autoras sugerem que os professores explorem diferentes materiais de leitura e as habituem a fazer perguntas e inferências sobre aqueles materiais como: para que servem? Que tipos de informações podem conter? Um ponto que dificulta este tipo de atuação por parte dos professores pode ser encontrado nas informações que nos deram quando falavam dos portadores de textos que utilizam nas aulas e se restringem a livros didáticos e literatura infantil, temos com isso que entre os portadores de textos que são oferecidos aos alunos praticamente se retira à possibilidade das crianças de terem contato com diferentes tipos de gêneros textuais. O que não possibilita a elas interagir com o diferente e começar a identificar, inclusive pelos aspectos da apresentação do texto, a que gênero textual pertence aquele com que está tendo contato e que tipo de mensagem poderá ser ali encontrada.

Se fosse permitido às crianças avançarem no processo de antecipação, elas poderiam vir a buscar coerência entre as informações do material e seus conhecimentos do assunto, organizando redes conceituais que fossem compostas por novos campos lexicais, o que lhes permitiria interpretar dados em situações diferenciadas. Estariam as crianças, nesse processo, preparando-se para construir os significados das mensagens, em que se incluem: a hierarquização das informações, a agregação de novos elementos, a seleção de sentidos de palavras que possam ser adequados a determinado assunto, enfim, ir construindo o conjunto de idéias que compõem a mensagem contida no texto lido.

Temos, então, que as antecipações que os sujeitos realizam ao ler facilitam o processo de leitura e dependem, primeiro, do reconhecimento do significado do texto. Porém, para que essas previsões não sejam feitas aleatoriamente, também se faz necessário que, no decorrer da construção do processo de leitura, as crianças se apropriem dos conhecimentos relativos à escrita (combinações silábicas, morfemas, palavras, categorias gramaticais, sintaxe...). Dessa forma, a possibilidade de previsão, que se concretiza com o auxílio das informações não-visuais, amplia a visão do leitor. Ao contrário, se não houver informações disponíveis na sua mente, as informações visuais que ele deverá absorver serão maiores, o que condicionará a sua visão a um campo restrito, mais específico.

A esse fenômeno de estreitamento do campo de visão que ocorre quando o cérebro recebe um número elevado de informações que supera a sua capacidade de processamento Smith (1999) denomina de “visão túnel”. O autor apresenta algumas circunstâncias em que esse fenômeno ocorre, tais como: a tentativa de ler alguma coisa que não faça sentido; a falta de conhecimento prévio do tema; não uso do conhecimento não-visual, supondo que ler corretamente significa decodificar cada palavra, e hábitos equivocados de leitura, como ler muito devagar, procurar reter na memória detalhes, ler cada palavra corretamente antes de olhar para a próxima. O autor destaca que muitos adultos e professores ensinam esses maus hábitos às crianças por acreditarem que assim estão ajudando-as a serem boas leitoras.

As concepções que estão permeando o tipo de ensino referido acima compreendem que a relação existente entre a oralidade e a escrita está na tradução dos signos gráficos em signos orais e que será essa interpretação do sistema lingüístico que permitirá ao leitor inferir os significados. Está pressuposto nessa pedagogia que os conhecimentos estão fora dos sujeitos e que a sua apropriação se dá numa relação passiva por meio daquilo que será ensinado pelo professor. Um dos grandes problemas dessa concepção está em desconsiderar a pré-história de vida dos alunos e em transformar a leitura numa habilidade específica, que tem seu início com a escolarização, sem relação com o processo de desenvolvimento das crianças. E quando a pré–história e a própria realidade cotidiana da vida dos alunos é desconsiderada ela se torna, na forma de expressão acusatória de alguns professores, um impedimento para as aprendizagens, como pode ser observado: A relação dos alunos no seu cotidiano, onde muitas vezes a linguagem oral se diferencia da escrita, é o que dificulta ao aluno o  ato de ler e interpretar as ações que estão sendo realizadas em determinados fatos dos textos.

Nos últimos anos os avanços na compreensão do desenvolvimento humano e os novos enfoques dados aos usos da língua nos permitem olhar a aquisição da leitura como integrante de processos gerais de representação humana da realidade. O reconhecimento das funções psicológicas superiores como um todo dialético que interfere nas aprendizagens humanas leva-nos à compreensão de que o desenvolvimento da leitura ocorre durante o processo que se inicia junto com a vida social dos sujeitos.  Nesse sentido, problemas de aprendizagem antes explicados por dificuldade em habilidades de percepção ou problemas de memória, entre outros, passam a ter uma nova explicação que se estrutura em campos conceituais, visto que os equívocos demonstrados pelas crianças têm suporte em hipóteses que elas realizam sobre a leitura e os aspectos que a compõem. Tais hipóteses precisam ser compreendidas pelos professores para que possam vir a fazer intervenções didáticas adequadas.

Ao estabelecer alguns pressupostos a serem considerados sobre a melhor maneira de ensinar a leitura, Colomer e Camps (2002, p.62) consideram que é melhor praticar a leitura em sua globalidade significativa do que decompô-la em partes. O exercício de leitura em partes somente terá significado se for uma atividade consciente do leitor por meio do qual ele consegue diferenciar a relação entre a tarefa do ler por partes e o conjunto da atividade leitora. O que temos encontrado nas falas dos professores -  alunos encontram dificuldades na leitura e na escrita por não estarem totalmente alfabetizados - demonstra a compreensão de que ensinar a leitura parece ser uma atividade da primeira série. Nas séries seguintes, a referência a atos de leitura relaciona-se a ler para responder perguntas de compreensão e interpretação nos momentos da aula em que se trabalha língua portuguesa. Quando se trata de áreas do conhecimento, como história, ciências e outras, os textos são tomados como portador de conteúdos. Não se trata, portanto, de práticas que venham a auxiliar no domínio da capacidade leitora. 

 Seguindo em sua argumentação, Colomer e Camps (2002) apresentam algumas condições para se ensinar leitura, entre as quais assume importância a valorização dos conceitos que os alunos possuem ao chegar à escola e a sua progressiva reconstrução, o que pressupõe que, ao realizar o planejamento de suas intervenções didáticas, o professor considere a realidade cognitiva dos alunos. A isso se pode acrescentar que “muito antes de saber ler um texto, as crianças são capazes de tratar o mesmo em função de certas características formais específicas” (Ferreiro e Teberosky, 1999, p.66), ou seja, as crianças têm idéias sobre as características que um texto escrito deve possuir para poder ser lido. Continuando com as considerações sobre o ensino da leitura temos ainda, segundo Colomer e Camps, a necessidade de proporcionar as crianças uma relação de familiaridade com o mundo da escrita através do contar histórias, do explorar situações de uso familiar de materiais escritos, da apresentação de materiais diversificados de leitura e do desenvolvimento da consciência metalingüística, que, no caso da leitura, permitirá ao aluno concentrar-se na linguagem como um objeto em si mesmo, não em seu uso como forma de construir significados no interior de um texto. No caso da consciência metalingüística é importante considerar que não é apenas o fato de os alunos realizarem a leitura, como diz um professor a leitura poderia ajudar a sanar essas dificuldades (referindo-se a pontuação), que eles terão um melhor desempenho lingüístico, e sim, com a realização de atividades epilingüística e metalingüísticas específicas que esta consciência poderá vir a se construir.

As considerações expostas nos levam à conclusão de que se tornar leitor está diretamente relacionado com o ato de ler, o que se contrapõe à idéia de que aprender a ler é anterior e diferente de ler. O que se pode questionar nesse sentido é onde está o princípio da leitura? Do que necessita uma criança para realizar as suas primeiras leituras? Essas perguntas, que Smith (1999, p.114) diz serem as mais importantes quando se reflete sobre a leitura, normalmente são aquelas para as quais menos se buscam respostas. Entretanto, a sua compreensão daria a pista teórica indispensável para os educadores ocupados em ensinar leitura. Às questões o autor responde dizendo que são necessários dois insights fundamentais antes que qualquer criança comece a aprender a ler: “a linguagem escrita faz sentido e a linguagem escrita é diferente da fala”.

No primeiro insight, o autor entende que o leitor compreendeu que os traços que formam a linguagem escrita possuem significados, fazem sentido e que há uma razão para distinguir uns dos outros. A escrita não é algo arbitrário, e as suas diferenças devem ser consideradas por serem necessárias à representação escrita significativa. E ao enunciar que a linguagem escrita é diferente da fala, está mostrando que esses dois tipos de linguagem apresentam diferenças em suas modalidades, ou seja, as pessoas falam de formas diferentes dependendo de com quem estão falado, do que estão falando, sobre o que estão falando e em que situações estão falando. Da mesma maneira, na escrita existem diferenças de vocabulário, de organização, de complexidade e de formalidade. A linguagem escrita e a linguagem falada diferem também pelo fato de as necessidades que se apresentam às pessoas que falam a seus ouvintes serem diferentes daquelas colocadas aos escritores e leitores. 

Smith (1999) situa claramente em sua compreensão a respeito da construção da leitura que as crianças aprendem a ler encontrando o sentido da linguagem escrita; elas se empenham, inicialmente, em encontrar sentido na linguagem escrita, aprendendo, assim, a ler, não o processo inverso, no qual iriam aprender a ler para encontrar sentido na linguagem escrita. Temos, com isso, que a capacidade de ler ultrapassa, de forma considerável, a capacidade de decifrar e que o trabalho sobre a compreensão da escrita deve começar mesmo que as aprendizagens do código não tenham se efetivado e continuar durante o processo de construção dessas aprendizagens. Entretanto, para a efetivação desse tipo de trabalho, os professores devem ter a compreensão do processo de aquisição da leitura como pressuposto prioritário ao ato de ensinar, para, assim, poderem tomar decisões sobre os materiais e métodos a serem utilizados nas aulas de leitura.

Mesmo que tenhamos feito uma abordagem específica da leitura até este momento, devemos ter consciência de que estas duas formas de expressão, leitura e escrita, não ocorrem separadamente e que, inclusive, existem princípios comuns que são utilizados pelas crianças em suas hipóteses iniciais nas aprendizagens das duas formas de comunicação. Existe entre a leitura e a escrita uma relação muito estreita, visto que aquilo que a criança aprende sobre leitura estará ajudando-a a ser uma escritora; da mesma forma, serão importantes os conhecimentos sobre a escrita para o desenvolvimento da leitura.

 

Referências

 

CHARTIER, Anne-Marie; CLESSE, Chirstiane; HÉRBRARD, Jean. Ler e escrever: entrando no mundo da escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.

 

COLOMER, Teresa; CAMPS, Anna. Ensinar a ler, ensinar a compreender. Porto Alegre: Artmed, 2002.

 

DIJK, Teun Adrianus Van. (Organização e apresentação de Ingedore V. Koch) Cognição, discurso e interação. São Paulo: Contexto, 1996.

 

FERREIRO, Emília; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

 

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. O texto e a construção dos sentidos. 6. ed. rev. e ampl. São Paulo: Contexto, 2002.

 

LERNER, Delia. Ler e escrever na escola: o real, o possível e o necessário. Porto Alegre: Artmed, 2002

 

SMITH, Franck. Leitura significativa. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

 

 



[1] Foram cobertos integralmente na coleta de dados todos os estabelecimentos de ensino com oferta de 2ª, 3ª e 4ª séries da rede municipal de Passo Fundo. Em 2004, o número de docentes responsáveis pelas classes era de 163 e todos receberam o questionário no início do mês de julho; do total entregue, obtivemos um retorno de 115 questionários, o que representa um percentual de 70,5% de retorno.

[2] Smith explica a capacidade de captação em um único olhar conforme exista significado no texto a ser lido. Exemplifica da seguinte forma: letras sem ordem (HIETDPLMWA) quatro ou cinco; palavras não relacionadas (LIMPAR SELA CAVALO SEMPRE NOITE), aproximadamente duas palavras – 10 a 12 letras; uma frase significativa (A GEADA DANIFICA AS PLANTAS), quatro ou cinco palavras, aproximadamente 25 letras. (SMITH, 1999, p. 23-35).