GÊNEROS TEXTUAIS: UMA PERSPECTIVA DE ANÁLISE

 

COLAÇO, Silvania Faccin[1]

 

RESUMO

A concepção de língua como um processo de interação social traz a necessidade de se estudarem os gêneros textuais no seu contexto comunicativo. Nessa concepção, este estudo apresenta uma abordagem qualitativa de Análise Crítica do Discurso do gênero textual, à luz dos estudos de Bakhtin, (2000), Martin (1993), Kress (1999), Marcuschi (2002), Bazerman (2004) e Miller (1984). Considerando os gêneros textuais como a noção comunicativa básica, pode-se dizer que ninguém se expressa numa língua a não ser por gêneros textuais e em condições reais de uso. Assim, as línguas realizam um extenso contínuo de gêneros, que revelam as competências comunicativas de seus falantes. Neste trabalho, o gênero textual em foco exige várias competências do leitor, como pensar, desenvolver o raciocínio lógico e o conhecimento de estratégias de argumentação, tanto na recepção como na produção do gênero. Acredita-se que uma proposta centrada no texto, num domínio social e político, representa um avanço no estudo da linguagem, pois linguagem sempre acontece como texto que ocorre em uma forma genérica particular. O objetivo deste estudo é realizar um levantamento das recorrências estáveis e das práticas sociais realizadas pelo texto publicado na seção Ponto de Vista, da Revista Veja. Inicialmente, são apontados os mecanismos lingüísticos presentes no texto selecionado, que o caracterizam como um gênero específico, de acordo com suas recorrências estáveis; posteriormente, são investigados os fatores socioculturais de produção e recepção do texto; após, é realizada uma análise dos argumentos usados para evidenciar o ponto de vista do autor; e, por último, faz-se uma relação entre o gênero e a seção da revista. Espera-se, assim, contribuir com os estudos referentes a gêneros textuais, intensificando as propostas de ensino baseadas nessa perspectiva.

Palavras-chave: gênero textual – linguagem – interação social

 

 

INTRODUÇÃO

 

O ensino da língua é um tipo de ação que transcende o meramente interno ao sistema e vai além da atividade comunicativa e informacional, chegando aos contextos reais da vida cotidiana. É preciso considerar que língua envolve sujeitos, história, situação e sociedade, num conjunto de práticas sociais, que se manifestam por gêneros textuais, constituindo um material lingüístico concreto.

A preocupação com a definição de gêneros textuais já ocorreu em Platão e Aristóteles, como gêneros literários, mas apenas nos limites da literatura. Atualmente, o estudo de gêneros textuais considera todas as manifestações lingüísticas (orais e escritas), marcadas pela especificidade de uma esfera de comunicação, que os elabora. Gênero textual é uma entidade complexa, por isso não pode ser definido somente pela língua, mas de acordo com seu papel na sociedade, a fim de mostrar o funcionamento desta. Nessa concepção, surgem os estudos de Mikhail Bakhtin (1986), que faz reflexões acerca da linguagem, principalmente quanto aos gêneros discursivos, considerando-os tipos particulares de enunciados que se diferenciam de outros tipos de enunciados, com os quais têm em comum a natureza lingüística.

            Este estudo apresenta uma abordagem qualitativa de análise do discurso no estudo do gênero textual, à luz da teoria de Bakhtin, (2000). A abordagem aqui utilizada uma abordagem teórica sobre gênero baseia-se na Análise Crítica do Discurso. É feito um levantamento das recorrências estáveis e das práticas sociais realizadas pelo texto publicado na seção Ponto de Vista, da Revista Veja, procurando descrever o texto presente nessa coluna. Para tal, inicialmente, apresenta-se textual, com suporte em Bakhtin (2000), Martin (1993), Kress (1999), Bazerman (2004), Miller (1984) e Marcuschi (2002).  Posteriormente, apresenta-se uma análise exemplificativa de um texto do corpus selecionado para a pesquisa.

Escolheu-se a temática voltada para a Educação no Brasil, justificada pelo interesse da pesquisadora, que trabalha no contexto universitário e na formação de professores. A seção selecionada se deve ao fato de ser formadora de opinião, o que requer uma análise pelos estudiosos da área. Foram selecionados dez textos, do período de julho/2004 a junho/2005, sendo que neste trabalho é apresentado um exemplo. 

Com o objetivo de analisar o gênero textual, inicialmente, são verificadas as recorrências estáveis do texto, apontando os elementos lingüísticos que contribuem para a organização dessas recorrências, caracterizando-o como um gênero específico; posteriormente, são investigados os fatores socioculturais de produção e recepção do texto; após é feita uma análise do ponto de vista do autor, identificando sua visão sobre a Educação no Brasil; e, por último, efetua-se a relação entre o gênero e a seção da revista.

 

1 GÊNEROS TEXTUAIS

 

A concepção de língua presente neste estudo é de uma prática sócio-comunicativa, que se manifesta e se realiza por gêneros textuais orais e escritos e que se estrutura com determinadas formas. Uma categoria teórica precisa ser esclarecida nessa concepção: gênero textual. Este estudo parte da noção de gênero proposta por Bakhtin (2000, p.279), que define gêneros do discurso como “tipos relativamente estáveis de enunciados”. O autor considera que existe um número infinito e inesgotável de gêneros discursivos, de acordo com as práticas sociais das diversas esferas da atividade humana: crônicas, contos, cartas, receitas, diálogos, convites, etc. Afirma, ainda, que esses gêneros vão se modificando de acordo com as necessidades de uso. Embora Bakhtin use a terminologia ‘gênero discursivo’, nesta investigação será usada a expressão ‘gênero textual’, que está sendo a mais corrente nos estudos lingüísticos em geral.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

O mesmo autor ainda afirma que “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (Bakhtin, 2000, p.282). Isso vale dizer que gêneros não são apenas organizações lingüísticas, são também organizações sociocomunicativas, pois são peças da organização social e podem variar de uma cultura para outra. Por isso, é preciso analisar a cultura em que o texto é produzido. De acordo com a idéia de que gênero é uma peça da sociedade, o que define um gênero é sua situação social de uso, ou seja, sua função.

Miller (1984) define gênero na perspectiva retórica, isto é, na interação de usos do discurso e não apenas como um padrão de forma. Nessa concepção, a autora propõe que se aprende um gênero de acordo com os objetivos que precisam ser cumpridos (p. 165). Assim, percebe-se que o conceito de gênero em Miller é fundado na ação, na interação social dos indivíduos.

A noção de gênero apresenta um certo contraste entre Kress e Martin/Rothery. Para Kress (1999, p. 22), “gênero é um termo útil para entender o que os textos fazem e como eles fazem”, numa concepção de que os textos têm uma função na sociedade, representando relações de poder, enquanto Martin & Rothery (1993) preocupam-se mais com a estrutura organizada que caracteriza cada gênero, isto é, as recorrências dos tipos de registro.

            Faz-se necessário destacar que as pessoas podem consumir todos os gêneros, mas não precisam produzi-los, nem há necessidade de os usuários conhecerem os pressupostos teóricos que descrevem os gêneros. Assim como as formas da língua, os gêneros do discurso introduzem-se na experiência de linguagem e na consciência do indivíduo conjuntamente e sem rompimento de suas relações.

Todo texto, como uma unidade de análise, tem, além do produtor, um destinatário, um contexto de produção, portanto uma origem social. No estudo de gêneros, pode-se ver quais os atores que participam, em que circunstâncias, quem está autorizado a produzi-los, como se organiza a sociedade e em que suportes estes gêneros se realizam. As diversas formas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções do destinatário são as particularidades constitutivas que determinam a diversidade dos gêneros do discurso. Na concepção de gênero proposta por Kress (1999), vê-se que a linguagem reflete e constrói certas relações de poder e autoridade, interessando quem tem o poder de iniciar ou de completar o enunciado e como as relações de poder são realizadas lingüisticamente. Assim, ele vê na aprendizagem a partir dos gêneros um dispositivo para analisar a sociedade, na sua pluralidade.

Bazerman (2004) também apresenta uma noção abrangente de gênero textual, pois ultrapassa os aspectos formais da recorrência textual e invoca o contexto dos usos reais da língua, preocupando-se com o estudo da circulação dos discursos. O autor apresenta uma visão de gênero no seu conjunto de produção e recepção e não somente no seu aspecto individual. Mais importantes do que as características textuais fixas de cada gênero, são os usos e os papéis dos indivíduos que se utilizam dos gêneros textuais para sua interação social.

Marcuschi (2002, p. 21) apresenta um estudo em relação aos suportes de texto, que são o lugar físico, com um formato específico, que serve de base para a fixação do gênero. É preciso esclarecer que há uma relação estreita entre o gênero e o suporte, por isso é preciso ver qual a influência do suporte em cada gênero. O suporte não é neutro e o gênero não fica indiferente ao suporte. Dependendo do suporte em que o gênero é apresentado, este muda de feição e de função, exemplo disso é uma declaração de amor ser publicada em um outdoor, numa mensagem eletrônica, ou numa folha de papel.

Ao enfocar gênero, é preciso deixar claro que os textos são produzidos para cumprir alguma função social, seguindo as convenções de uma determinada cultura, como produto das relações entre os interlocutores, com formas e estruturas da língua envolvidas na produção do gênero, bem como as relações de poder que entram na produção e na manutenção da forma genérica. Não se pode desconsiderar, ainda, o fato de que os gêneros passam por modificações através dos tempos, por exemplo, uma entrevista de emprego em 1922 é diferente de uma entrevista de emprego hoje (Kress, 1999, p. 28).

Um trabalho com gêneros textuais na escola é um projeto pedagógico e político motivado pela possibilidade de permitir um maior e mais justo acesso à sociedade, pois a liberdade de escolha na área cultural, social, política e ética depende do acesso para as formas de escrever qualquer gênero em sua sociedade (Kress, 1999, p. 28). Verifica-se que, se a escola não trabalhar os gêneros orais e escritos que circulam no meio sócio-cultural, haverá predomínio da classe dominante, na concepção de que os gêneros são resultados de fatores sociais. Os gêneros de prestígio, usados por grupos culturais dominantes, precisam ser ensinados de uma maneira crítica e reflexiva, desvendando a ideologia social, política e econômica, competências de letramento que precisam ser trabalhadas na escola. A liberdade de escolha é legítima, mas não acontecerá sem que existam opções, pois só se pode escolher aquilo que se conhece.

            Kress (1999, p. 36) vê o gênero como um processo social. Com isso, percebe-se a visão de que gênero é processo, pois é um evento que sofre modificações resultantes de seu uso pelos participantes na sociedade; e é social, porque é construído de sujeitos sociais para outros sujeitos também sociais, inseridos num contexto da sociedade.

Um aspecto que também deve ser considerado é quanto à distinção de tipo e gênero textual. A língua é tida como uma forma de ação social e, neste contexto, “os gêneros textuais se constituem como ações sociodiscursivas para agir sobre o mundo e dizer o mundo, constituindo-o de algum modo’’ (Marcuschi, 2002, p. 22). Todo texto realiza um gênero; todo gênero é um processo de textualização; todo gênero tem tipos textuais, isto é, seqüências narrativas, expositivas, etc. Marcuschi distingue os termos da seguinte forma: “tipo textual designa uma espécie de construção teórica definida pela natureza lingüística de sua composição” (2002, p. 22). Assim, os tipos textuais abrangem as seguintes categorias: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção, enquanto os gêneros são infinitos, pois são os textos materializados no uso social: telefonema, sermão, carta, reportagem, notícia, horóscopo, conferência, resenha, etc. Em suma, diz-se que os gêneros textuais fundam-se em critérios externos (sociocomunicativos e discursivos), enquanto os tipos textuais fundam-se em critérios internos (lingüísticos e formais).

Outra noção proposta pelo mesmo autor refere-se aos domínios discursivos, que designam uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana em que os textos circulam: jurídico, jornalístico, religioso, etc. O mesmo autor diferencia texto de discurso, considerando texto como “uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual” e discurso como “aquilo que um texto produz ao se manifestar em alguma instância discursiva”. Assim, verifica-se que o discurso se realiza nos textos e os textos realizam discursos. Destaca-se que nem sempre os textos são puros, muitas vezes apresentam um gênero híbrido (um gênero em outro) ou um tipo textual com seqüências tipológicas heterogêneas, mas relacionadas entre si.

 

2 ANÁLISE DO GÊNERO

 

Este estudo centra-se nos textos produzidos na seção Ponto de Vista, por Cláudio de Moura Castro, economista cuja temática é a “educação no Brasil”. É importante verificar as características do texto na perspectiva do gênero textual, isto é, na situação sóciocomunicativa de produção e recepção do texto.

 

2.1 A revista VEJA

A revista VEJA é a maior revista brasileira e uma das maiores revistas de informação do mundo. VEJA pertence à Editora Abril e, atualmente, possui uma tiragem que gira em torno de 1.250.000 exemplares. Trata-se de uma revista semanal de informação, um  modelo inspirado na revista americana Time. É a primeira no gênero lançada no Brasil, onde imperavam no mercado editorial as revistas semanais ilustradas, com grandes fotos e textos curtos. VEJA está subdividida em editorias: Brasil, que faz basicamente a cobertura das atividades políticas; Internacional, que trata de assuntos referentes à política mundial e a assuntos internos de outros países; Economia e Negócios; Artes e Espetáculos, que cobre cinema, televisão, literatura, teatro, exposições etc; Geral, que trata de Ciência e Tecnologia, Educação, Saúde, Estilo, Moda, Comportamento etc. Há seções como Radar, com notas exclusivas; Veja essa, onde figuram as frases mais marcantes e inusitadas da semana; Gente, com notas sociais; Cartas; outras seções de notas, como Holofote e Contexto; e o Guia, de serviços.

A revista também conta com a colaboração de alguns articulistas fixos. O economista Claudio de Moura Castro, o administrador Stephen Kanitz e a escritora Lya Luft se revezam na coluna Ponto de Vista. O economista Gustavo Franco e o cientista político Sérgio Abranches alternam-se na coluna Em foco. Diogo Mainardi tem uma coluna semanal com o seu nome, no caderno de Artes e Espetáculos. A coluna Ensaio encerra a revista e é assinada pelo jornalista Roberto Pompeu de Toledo, Editor Especial de VEJA.

 

2.2 A seção Ponto de Vista:

Os textos publicados na seção em estudo são escritos por três comentaristas: a escritora Lya Luft, que escreve quinzenalmente, divide espaço com os colaboradores Claudio de Moura Castro e Stephen Kanitz, que escrevem a cada três edições. Este estudo centra-se nos textos produzidos pelo economista Cláudio de Moura Castro, que publicou, no período em análise, aproximadamente um texto por mês e escreve para VEJA desde 22/09/1982. Os temas são escolhidos pelos próprios colaboradores e nem sempre retratam o ponto de vista da revista, pois são opinativos.

A seção Ponto de Vista traz um texto em duas colunas, com a foto do autor no canto superior direito; na parte superior da página, o nome da seção e o autor do texto; no centro, uma passagem em negrito, com uma ilustração referente ao tema; na parte inferior, encontra-se o nome do autor, sua área de atuação e seu e-mail.

É característica recorrente do gênero iniciar o texto com uma passagem narrativa sobre a situação atual do Brasil, geralmente com verbos no presente ou pretérito perfeito do indicativo e depois mudar para a seqüência dissertativa, manifestando uma opinião, que é defendida por argumentos ao longo do texto.

 

2.3 O colunista Cláudio de Moura Castro

Quem escreve sobre o assunto é um economista, na posição de comentarista regular da revista Veja, na seção Ponto de Vista, com a publicação de um texto por mês. 

Cláudio de Moura Castro escreve para a VEJA desde 22/09/1982. Segundo o próprio autor (Castro, 2005), ele escolhe suas temáticas ao sabor da imaginação e do momento presente, sempre dentro dos temas que tem trabalhado profissionalmente como pesquisador na área da educação, sem se preocupar com as outras temáticas da revista. O colunista procura traduzir idéias fortes e importantes que se desenvolveram no mundo da ciência para uma linguagem acessível, mas não simplista. Ele acredita que, de certa forma, a coluna é uma “janela” para um público externo do seu trabalho de pesquisa. Antes de enviar os textos para a revista, manda-os sempre para amigos fiéis que os criticam. A interferência que acontece após o envio para a publicação é somente em relação às correções gramaticais e mudanças no título.

Durante um ano (de junho/2004 a julho/2005), Claudio de Moura Castro publicou dez textos, sendo que oito enfocaram a educação e as políticas federais e dois abordaram o papel da família na educação.  Demonstrou sua posição favorável às políticas federais em seis textos e contrária em apenas dois.  A ênfase a aspectos positivos da educação brasileira foi verificada em apenas um texto e aos aspectos negativos nos nove restantes.

 

2.4 O público leitor

            Como a tiragem semanal da revista é, em média, de 1.250.000 exemplares, o total estimado de leitores de VEJA é cerca de 5.000.000 (cerca de quatro leitores por exemplar).

O perfil dos leitores da revista é assim representado: o nível cultural é razoavelmente elevado, pois 55% dos leitores têm nível superior; o nível econômico também é elevado, visto que a maioria dos leitores pertence à classe B (43%), contra 27% da classe A e 21% apenas da classe C, sendo que 80% têm casa própria, 80% têm automóvel no lar e 51% têm TV a cabo; a idade predominante é de um público jovem e maduro, entre 25 e 39 anos (31%); e a maioria dos leitores são mulheres (52%), dado que se verifica na maior parte das publicações da editora Abril, conforme dados dos Estudos Marplan (outubro/2002).

Como se pode verificar, quem lê são pessoas variadas, de ambos os sexos, com um relativo nível cultural e social, considerando-se, ainda, que a revista possui um custo alto, dificultando sua aquisição. Os textos publicados na seção em análise são complexos e exigem habilidades de leitura que provavelmente alguns leitores da revista não possuam. O próprio colunista considera seu público leitor como razoável, pois os textos de educação são lidos, geralmente, por professores e pais, diferenciando-se dos leitores de outras seções, que têm um público mais diversificado. Assim, ele tenta escrever para um leitor médio da revista e de alto nível, se for considerado em relação à população em geral. O colunista admite que, às vezes, escreve direcionado a uma clientela mais específica, quando envolve temas mais restritos, mesmo sabendo que o leitor médio não vai entender tudo (Castro, 2005).

 

2.5 As práticas sociais

As práticas sociais mediadas pelo gênero centram-se no ato de convencer a população de uma idéia exposta com argumentos articulados, a fim de levar os leitores à adesão à tese principal.  A situação em que o texto em análise foi produzido é de turbulências em relação ao ensino, principalmente o ensino superior no Brasil, pois o governo federal está propondo uma reforma universitária, com mudanças significativas que atingem toda população de maneira direta ou indireta.

Os temas apresentados na seção Ponto de Vista por Cláudio de Moura Castro, geralmente, são contra as ações do governo federal, pois, dos dez textos analisados, durante um ano, oito apresentam sua postura em relação às políticas federais, e o colunista se coloca contra as mesmas em seis textos.

 

2.6 O texto

Para melhor definir as características e a função social do gênero, é apresentada a seguir uma análise do texto “A maquiagem do monstro”, do dia 26 de maio de 2004 (anexo), para levantar as recorrências estáveis e o discurso subjacente.

Nesse texto, verifica-se uma relação direta do título “A maquiagem do monstro” com a parte em destaque no “box” central “Obter justiça social na entrada da universidade é como tentar maquiar o Frankenstein. Batom, ruge e pó-de-arroz não conseguirão reduzir sua feiúra”, fazendo referência ao monstro mencionado no título. Esse monstro também está na imagem ilustrativa no centro da página. Tudo isso aponta para a idéia principal do texto: não adianta disfarçar os problemas da educação no Brasil só na entrada da universidade, se eles estão presentes desde o início do ensino fundamental.

Após apresentar, no parágrafo inicial, numa seqüência narrativa, a intenção do MEC de reservar 50% das vagas de suas universidades para os alunos de escolas públicas, o texto já deixa clara a opinião do autor na expressão ‘quando nada’ - “quando nada, evitamos os pesadelos de implementar cotas raciais” – passando a uma seqüência dissertativa que vai se estender até o final do texto.

Nesse texto, ocorrem outras marcas lingüísticas com valor argumentativo, demonstrando juízo de valor, modo de se posicionar diante do fato, avaliações, como: “ainda não é desta vez” (2º parágrafo); “a única” e “infelizmente” (4º parágrafo); “não é irrelevante”, “talvez”, “tão tardiamente” e “merecem louvor” (6º parágrafo); “é justo” e “não pode” (7º parágrafo); “parece”, “graves”, “extraordinariamente caras”, “deve”, “deveriam”, “mais complexas e matizadas” e “aceitável” (8º parágrafo); “é muita vela para pouco defunto”, “realmente”, “menos preparados” e “mais competitivas” (10º parágrafo); “seria interessante” (11º parágrafo). Essas marcas deixam explícitas as passagens em que o discurso do autor se sobressai, com palavras que indicam possibilidade, proibição, avaliação, generalização, hipótese, etc. 

Faz-se necessário, acima de tudo, identificar o contexto em que o texto foi produzido – período em que o governo federal propõe mudanças na Universidade, gerando uma inquietação geral na sociedade. Incertezas quanto aos rumos da Educação Superior e muitas discussões acerca disso circulam na mídia. Presume-se que o autor e os editores da revista tenham consciência do impacto social na formação de opinião que o texto tem o poder de realizar. Como o texto apresenta idéias, juízos de valor, considera-se que ele está preocupado em convencer os leitores da revista de que sua tese é a mais correta.

Nessa situação sociocomunicativa do autor, da revista e do público leitor, é veiculado um texto que apresenta uma opinião contrária à do governo federal. Na medida em que o autor apresenta argumentos contra a reserva de cotas, ele também deve considerar que existe uma parcela da população com idéia diferente.  Mesmo assim, ele assume sua tese, pois, no caso da reserva de cotas para estudantes de escolas públicas, é provável que a maior parte do público-alvo da revista seja constituída de pessoas favoráveis a sua tese. Evidencia-se, assim, a visão do autor sobre a educação brasileira como uma educação de pouca qualidade tanto no ensino fundamental como no ensino médio, conforme explicitado no 3º parágrafo. Ele se mostra uma pessoa preocupada em achar soluções para os problemas educacionais brasileiros, desde que não se sacrifique a qualidade da educação superior, que forma os profissionais em áreas de risco, como na medicina. Dessa forma, o gênero cumpre com sua intenção, que é a de formar opinião, constituindo, assim, sua função social inserido na cultura dominante do Brasil e está adequado à seção Ponto de Vista.

 

3        CONSIDERAÇOES FINAIS

 

Ao se considerar os gêneros textuais como a noção comunicativa básica, pode-se dizer que ninguém se expressa numa língua a não ser por gêneros textuais e em condições reais de uso. Assim, as línguas realizam um extenso contínuo de gêneros, que revelam as competências comunicativas de seus falantes.

Houve, nos últimos séculos, juntamente com a crescente cultura impressa, um aumento significativo de gêneros textuais escritos e, mais modernamente, com a internet, o surgimento de novos gêneros orais e escritos. Cumpre salientar que a maioria desses gêneros textuais é adquirida na vida cotidiana, mas alguns gêneros não são aprendidos no dia-a-dia, necessitando, assim, ser mais trabalhados na escola.

Além do mais, uma proposta centrada no texto, num domínio social e político, representa um avanço no estudo da linguagem, pois linguagem sempre acontece como texto que ocorre em uma forma genérica particular. Acredita-se que uma metodologia centrada nessa perspectiva de gêneros textuais pode contribuir para o combate à exclusão social, no desenvolvimento da consciência do indivíduo em relação a si mesmo, em relação ao outro e à sociedade.

A escola precisa se preocupar com essa dimensão sociocomunicativa dos textos, a fim de que os indivíduos possam interagir em situações comunicativas reais, com consciência sobre a linguagem que utilizam. Salienta-se que não é preciso ensinar gênero, mas na perspectiva dos gêneros.

 

4        REFERÊNCIAS

 

 

BAKHTIN, M (2000). Os gêneros do discurso. In: M. Bakhtin. A estética da criação verbal. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes, p.277-326

BAZERMAN, Charles (2005). Gêneros textuais, tipificação e interação. Ângela Paiva Dionísio; Judith Chambliss Hoffnagel (orgs.); tradução e adaptação de Judith Chambliss Hoffnagel. São Paulo: Cortez.

CASTRO, Cláudio de Moura. Publicação eletrônica (mensagem pessoal). Mensagem recebida por <claudiodmc@attglobal.net> em 19/6/05.

KRESS, G. (1999). Genre as social process. In: B. Cope & M. Kalantzis. (eds) p. 23-37

MARCUSCHI, L. A. (2002). Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: A. P. Dionísio, A. R. Machado & M. A. Bezerra (orgs.) Gêneros textuais e ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, p. 19-36.

MILLER, C. R. (1984).  Genre as social action. Quarterly Journal of Speech, 70: 151-67.

<http:www.publiabril.com.br> Acesso em: 19/6/05

 

Texto-fonte:

CASTRO, Cláudio de Moura. A maquiagem do monstro. Revista VEJA, 26 mai. Ponto de Vista. p. 20. 2004.



[1] Mestre em Letras – Lingüística Aplicada, professora do Departamento de Lingüística, Letras e Artes, da URI – campus de Santiago