COMUNICAÇÃO

 

IV SENALE – Seminário Nacional sobre Linguagem e Ensino

Oralidade e Ensino: Questões e Perspectivas

Universidade Católica de Pelotas (UCPel)

Pelotas (RS)

 

PRODUÇÃO SOCIAL DE SENTIDOS E ENSINO DE LITERATURA

 

Sebastião Alves Teixeira Lopes (UFPI)

 

Resumo

 

Derrida e Foucault têm questionado as bases materiais da relação ste/sdo, apontando para o necessário exame dos processos históricos e ideológicos que norteiam a produção, distribuição e fossilização de sentidos. Muito além de buscar pela intenção do autor, ou mesmo do texto; muito antes de apelar à transparência e neutralidade da linguagem, devemos verificar as condições sociais e institucionais que possibilitam e dão suporte ao surgimento e manutenção de certas leituras em detrimento de outras. Em aulas de literatura, situação em que, em última análise, se lida com leituras de mundo, é necessário, portanto, estarmos (alunos e professores) atentos não só a diferentes interpretações, mas aos sistemas sócio-ideológicos que terminam por influenciar, ou criar condições para que certos significados sejam construídos e mantidos, muitas vezes sob o manto da suposta neutralidade e transparência ideológica e lingüística. Busco neste ensaio discutir alguns aspectos referentes à produção social de sentidos e o ensino de literatura, aproximando-me bastante do multiculturalismo crítico e da educação pós-moderna, como propostos por McLaren.

Palavras-chave: educação pós-moderna; ensino de literatura; produção social de sentidos.

 

...ler é fazer-se ler e dar-se a ler.

Goulemot

 

Em forma de introdução

 

O pós-estruturalisno francês, especialmente com Derrida e Foucault, tem questionado as bases materiais da relação ste/sdo. Para Derrida (1978), os significados não são transcendentais ou metafísicos, mas construídos socialmente e sujeitos a pressões históricas e ideológicas. Construídos em relações de diferenças e adiamentos, Derrida não admite a existência de significados auto-centrados. Foucault (1996), ao analisar os processos de controle social do discurso, aponta para o fim da ditadura do significante enquanto base material para a produção de sentidos. Ao romper com a relação ste/sdo, o pós-estruturalismo francês introduz a noção de significados construídos discursivamente, fazendo com que aspectos sócio-culturais, posicionamento histórico e questões de ideologia se tornem preponderantes para o exame da produção social de sentidos.

A pós-modernidade, por sua vez, com a noção de sujeito descentrado, fragmentado e descontínuo, cuja identidade é construída através de discursos muitas vezes conflitantes e contraditórios, tem questionado a idéia cartesiana de sujeito fixo, auto-centrado e estável (Hall, 1999). Se, por um lado, chega a ser angustiante a situação do sujeito pós-moderno, tendo que produzir sentido para si, para os outros e para o mundo diante de referenciais fragmentados e inconstantes; por outro, o contexto pós-moderno, com o contundente questionamento de dicotomias e posicionamentos privilegiados, abre também a possibilidade de novas relações com a noção de diferença e margem, o que se torna particularmente relevante se levarmos em conta o aspecto multicultural da ampla maioria das sociedades contemporâneas.

Uma abordagem social à produção de sentidos deve levar em conta esse contexto pós-moderno e multicultural, em que referenciais identitários se apresentam de forma fragmentada e multifacetada assim como diferenças de cunho social, cultural, religioso, etc ocupam o mesmo espaço/tempo, com ampla possibilidade de mal-entendidos, fricções e mesmo de violência. Como afirma Diniz:

A construção de um determinado sentido interpretativo para uma manifestação estética no contexto de sua recepção representa uma multifacetada teia discursiva. O lugar da literatura, por exemplo, como linguagem “específica”, fechada em seus códigos, formas e questões, constrói-se na interface de distintas representações culturais, passando por um processo de desreferenciação, reapresentando-se como uma instigante, descontínua e problemática encenação de diversidades, como uma rede de processos interativos complexos, como uma cadeia de relações comunicativas que se manifestam na entrelinguagem da produção e da recepção, do autor e do leitor, no solo conflituoso do multiculturalismo (2003: 23).

 

Seguindo a trilha de Diniz, acredito que a leitura como produção social de sentidos deve reconhecer os entrecruzamentos múltiplos e conflituosos de refereciações e posicionamentos característicos da condição pós-moderna e multicultural assim como perceber-se inserida em uma rede discursiva complexa de representações sociais.

A leitura assim compreendida não só desnuda ideologias subjacentes e travestidas de neutralidade como também se torna um ato político ideológico de ação e identificação. Assim McLaren (1998: 42) resgata Freire, como defensor de uma pedagogia que busca a conscientização social e identitária assim como capacitação para a agência no/sobre o mundo. Ler implica posicionar-se perante um sistema multifacetado de representações culturais, o que abre espaço para a ação, resistência e mesmo subversão, fruto de uma agência, compreendida como vontade intencional e consciente de intervenção social. Nesse sentido, há um jogo dialógico entre o pessoal e o social, em que, através da capacitação do sujeito, esse se torna capaz de perceber as estruturas sociais e ideológicas que criam as condições de subalternidade assim como, ao se tornar capaz de resistir a essas estruturas, de causar mudanças nas estruturas sociais.

 

 

Leitura como produção social de sentidos

 

Entender a leitura como produção social de sentidos pressupõe, de antemão, desconsiderar a suposta intenção do autor. Ler não é decifrar ou inferir aquilo que quer dizer o autor ao escrever determinado texto. Não existe uma relação direta entre o que escreve o autor e o que lê o leitor. O texto não pode ser considerado uma ponte direta, não-problematizada entre autor e leitor. A linguagem, por sua vez, não é vista como sendo capaz de, de forma transparente e neutra, representar uma dada realidade pré-textual.

A noção de produção social de sentidos pressupõe também que a leitura não se restringe aos limites do texto. Embora reconheçamos o esforço de teóricos do peso e brilhantismo de, por exemplo, Umberto Eco, que buscam restringir o papel do leitor e, ao mesmo tempo, estabelecer um ‘respeito’ maior aos limites do texto, enfatizamos que a leitura é um processo de construção mais amplo e que aspectos extra-textuais não podem ser desconsiderados. O receio de leituras que ‘violentem’ o texto, acredito, faz com que alguns teóricos busquem restringir aos limites do texto as possibilidades de leitura. Só que, e aqui faço uma provocação, mesmo as leituras reconhecidamente como superinterpretações, desde que com aceitação social, terminam por fazer parte da fortuna crítica daquele texto, não podendo ser simplesmente descartada sob a alegação de erro ou falsidade, sob pena de se desconsiderar a função social que essa leitura/superinterpretação teve para determinado grupo social em determinado momento. A leitura compreendida como produção social de sentidos não pode limitar-se a uma suposta intenção do texto.

Coloco rapidamente um exemplo do que considero uma superinterpretação, a fim de melhor esclarecer o que defendo no parágrafo anterior. No século XIX, A tempestade de Shakespeare foi amplamente lida como panfleto anti-escravagista. Se, por um lado, é mesmo impossível supor a intenção do bardo inglês ao escrever A tempestade, texto do início do século XVII; por outro lado, é inverossímel supor se tratar de um manifesto pró-direitos individuais como discutidos na primeira metade do século XIX. Não se pode, contudo, desconsiderar a importância de tal leitura/superinterpretação para os grupos sociais que a produziram assim como não se pode simplesmente retirá-la da fortuna crítica de A tempestade, sob alegação de falsidade. Ao contrário, mais interessante é procurar entender os fatores sócio-culturais, históricos e ideológicos que tornaram essa leitura possível e aceita socialmente.

Mas em que sentido a leitura é uma produção social? Muitos de nós, em determinados momentos, prefere o isolamento e o silêncio para realizar uma leitura. Nesse sentido, ler torna-se antes de tudo uma ação pessoal em que o indivíduo busca a solidão para melhor atingir seu objetivo. Mesmo assim, a produção de significados é social. Não se trata de preferir práticas de leitura de grupo sobre as individuais ou sugerir que a produção social de significados ocorre necessariamente em situação de debate. Por mais isolada e pessoal que seja a ação da leitura, a produção de sentidos será sempre uma negociação social. Segundo Bakhtin (1997), somos polifônicos porque usamos palavras pré-significadas por outros que nos antecederam. Nesse sentido, ao usarmos a linguagem, expressamos não apenas os nossos conceitos acerca do mundo, mas uma série de pré-conceituações que nos precederam. Ao falarmos, expressamos conceitos já aceitos e mesmo fossilizados socialmente. Cada enunciação surge sob a marca da voz do outro.

A leitura é antes de tudo uma negociação com uma visão prévia de mundo. Como diz Goulemot (2001: 113), “[l]er será, portanto, fazer emergir a biblioteca vivida, quer dizer, a memória de leituras anteriores e de dados culturais”. O leitor não se desarma durante a leitura, ao contrário, leva consigo todo um arsenal de conceitos e experiências prévias com os quais, em diálogo, produz significados para os diversos textos. Essa leitura prévia de mundo é enriquecida e não anulada com as novas leituras. A leitura deve também ser compreendida como um processo de estabelecimento de referências com o mundo exterior ao texto. Nesse sentido, leitor e situação específica, o que Goulemot (2001: 108) chama de fora-do-texto, devem ser observados. A leitura não envolve apenas visão, cérebro e consciência, mas toda uma corporalidade. Mesmo a postura do leitor, pode ser reveladora tanto de um conceito social de leitura como esclarecedora do papel desempenhado por algumas práticas de leituras em determinados contextos. A situação específica na qual se desenvolve a leitura deve ser também observada. Será que os significados produzidos em uma sala de universidade acerca de determinado romance não sofrem influência do contexto institucional, acadêmico, amplamente laico no qual a leitura é realizada? Por outro lado, será que a leitura de uma parábola durante o sermão de domingo não é também influenciada pelo contexto religioso no qual ela ocorre? A observação da situação específica na qual são produzidos os significados ajuda em muito a se compreender conceitos e ideologias subjacentes a cada leitura assim como suas diversas funções sociais.

Ressalto, por fim, que é também social o processo através do qual determinadas leituras são aceitas, canonizadas ou negadas. Não cabe aqui a noção de leitura verdadeira ou falsa, de leitura sã ou louca. A filosofia, podemos retornar a Derrida e Foucault, exaustivamente tem demonstrado que significados não são verdadeiros ou sãos em si assim como não podem recorrer a uma base material (significante) que possa lhes dá suporte. Tornam-se significados socialmente aceitos ou rejeitados em função de ordens discursivas, ideologias e sistemas conceituais externos a eles.

 

 

Produção social de sentidos e ensino de literatura

 

A noção pós-estrutural de verdades, representações e significados construídos discursivamente, a noção de sujeito descentrado típico da pós-modernidade assim como o multiculturalismo característico da ampla maioria das sociedades contemporâneas colocam novas questões e desafios para os sujeitos (inclusive professores e alunos), especialmente no que concerne à agência. Uma das grandes críticas que se aponta ao pensamento pós-estrutural/pós-moderno talvez seja justamente a de ter descaracterizado o esforço de grupos minoritários que nas últimas décadas estavam conseguindo estruturar bases identitárias afirmativas com respaldo e visibilidade social assim como com agência política. Nesse sentido, políticas de afirmação identitárias, agência política assim como as formas de representação e produção social de sentidos precisam passar por reavaliação teórica, estratégica e metodológica.

Uma prática pedagógica que busque por capacitação para agência política e transformação social parte do que chamo de ‘processos de desnaturalização’. É necessário estranhar o mundo! Afinal, talvez a forma mais efetiva e perversa de reprodução ideológica seja justamente a capacidade que têm as ideologias dominantes de se passarem por ‘naturais’, mesmo por ordens transcendentais e, portanto, atemporais e imutáveis. A suposta neutralidade ideológica, contudo, posiciona-se sempre do lado dos dominantes. Através de uma metodologia desconstrucionista, a leitura pode contribuir significativamente para uma reflexão do mundo. Ressalto também que, especialmente em aulas de literatura, o próprio processo através do qual significados são construídos, distribuídos e aceitos socialmente precisam ser explicitados, em suas ideologias, métodos e conseqüências sociais. O processo de produção de sentidos precisa ser problematizado, evitando-se a noção de que a construção de significados seja algo transparente, neutro, isento de implicações sociais e posicionamentos ideológicos. Questionar o processo sócio-discursivo através do qual verdades são construídas, distribuídas e mesmo naturalizadas, implica desnudar os mecanismos discursivos que terminam por posicionar socialmente os sujeitos.

Uma prática pedagógica com base pós-estrutural/pós-moderna e multicultural pressupõe uma série de novas atitudes em aulas de literatura. Primeiramente, o professor não pode ser considerado fonte única ou mais importante de significação. Ao contrário, a leitura deve buscar a capacitação dos alunos (e mesmo dos professores) para a construção interativa e dialógica de sentidos como forma de agência política e afirmação identitária. Homogeneização ou consenso não deve ser procurado. O processo de construção de sentidos deve refletir micropolíticas de diferenciação e afirmação identitária, nunca uma busca por pasteurização ou um retorno à noção de ‘melting-pot.’ Não trabalhar adequadamente com as diferenças termina por reproduzir desigualdades.

Os significados construídos, por sua vez, são de pronto colocados sob rasura ou suspeição. Não por serem inadequados ou falsos, mas por reconhecer-se a possibilidade de outros significados plausíveis (e aqui se inclui mesmo aqueles ausentes), por reconhecer-se a existência de outros centros identitários e ideológicos com poder de estruturação para a construção de sentidos, por reconhecer-se, por fim, a influência sobre a produção de sentidos do próprio contexto sócio-institucional onde são produzidos. O texto passa a ser observado em sua capacidade polisssêmica, evitando-se leituras absolutistas, pressupostos gerais e neutralidades ideológicas.

Muito além de desnudar o caráter efêmero, circunstancial e dinâmico da construção de significados, a noção de leitura enquanto produção de social de sentidos auxilia sobremaneira em políticas de afirmação identitária, uma vez que capacita os sujeitos para a ação social, desnudando discursos e representações sociais que terminam por naturalizar e justificar as condições de subalternidade e marginalidade. Deixa claro também que a noção de agência no contexto pós-estrutural/pós-moderno passa pelo embate discursivo. Como diz Foucault (2000), o discurso não só representa as relações de poder e desejo, mas torna-se o próprio objeto de desejo e arena na qual as relações de poder são travadas.

 

 

Considerações finais

 

Produzir sentidos em um mundo cada vez mais fragmentado e descontínuo, marcado não pela aparente abundância de informação, mas pela supremacia de simulacros, não é exatamente tarefa fácil. Diante da suposta crise pela qual passam as fontes de referenciação, a noção de leitura enquanto produção social de sentidos pode tornar-se importante fator para a capacitação dos sujeitos, especialmente por buscar justamente a afirmação identitária. Identidade aqui não compreendida como algo fixo e contínuo, capaz de dotar de lógica e sentido toda uma existência, mas como uma construção social dinâmica que se realiza no entrelaçamento sócio-discursivo. Se por um lado a esquizofrenia pós-moderna multi-identitária e fragmentada pode nos angustiar, por outro nos dá a possibilidade de questionarmos padrões e dicotomias, o que pressupõe, contudo, outras estratégias de afirmação identitária.

A noção de leitura como prática de afirmação identitária, por sua vez, contribui para a instituição de ‘políticas de diferenças’, que busquem não por generalizações pasteurizantes de cunho humanista, mas por ações que considerem em suas especificidades as diversas diferenças presentes em toda sociedade. Dessa forma, a leitura como produção social de sentidos torna-se importante instrumento de resistência e mesmo de subversão, por capacitar o sujeito/leitor a não só reconhecer seus próprios posicionamentos sócio-identitários, mas a perceber que seus pontos de vista e visões de mundo são válidos e que devem ser reforçados e não descartados por conta de padrões sociais normativos. Ajuda a perceber também que não há leitor privilegiado, ou seja, não há leitura que não seja produção social de sentido. Por mais preparado, perito, experienciado ou iluminado que se julgue o leitor, não há leitura que seja a expressão autônoma da verdade. O que existe são fatores extra-textuais de ordem social, ideológica e institucional que suportam certas leituras em detrimento de outras.

A leitura como produção social de sentidos capacita criticamente o leitor para posicionar-se no mundo, tanto enquanto sujeito capaz de produzir seus próprios significados, suas próprias leituras de mundo como detentor de fontes identitárias próprias. Busca também a transformação social pela formação de sujeitos/leitores críticos e capazes de resistência e subversão frente aos discursos e ideologias que constroem o mundo e posicionam os indivíduos social e culturalmente.

 

 

Bibliografia

 

BAKHTIN, M. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. M. Lahud e Y. F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1997.

DERRIDA, J. A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. In. A escritura e a diferença. Trad. M. B. M. N.da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1995. p. 229-252.

DINIZ, J. Apontamentos sobre significado, sentido e interpretação na leitura. In. Questões de leitura. Rösing, T. M. K. e Rettenmaier, M. (Org.). Passo Fundo: Ed. da UPF, 2003. p. 21-26.

ECO, U. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. L. F. de A Sampaio. São Paulo: Loyola, 2000.

HALL, S. A identidade na pós-modernidade. Trad. T. T. da Silva e G. L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.

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