O EMPREGO DO HÍFEN COMO UMA INTERFACE ENTRE FALA E ESCRITA

 

Rosane Garcia (UCPel)

Drª Carmen Lúcia Barreto Matzenauer (UCPel)

 

1. Introdução

 

O trabalho aborda a interface entre fala e escrita a partir de um estudo sobre o uso da palavra prosódica e suas implicações na ortografia, particularmente no tocante ao emprego do hífen. O objetivo da investigação consistiu na análise do comportamento da unidade “palavra prosódica” representada no uso da língua escrita por falantes do Português, levando também em consideração a unidade “palavra morfológica”.

A conceituação de palavra, segundo Mattoso Câmara (1967), norteou o estudo, pois abrange duas unidades diferentes sob o mesmo nome: o vocábulo fonológico e o vocábulo mórfico, que, embora relacionadas, podem não coincidir. É no desencontro entre ambas que, predominantemente, ocorre o emprego do hífen, o qual se insere na ortografia do Português como uma tentativa de solucionar o descompasso existente entre a palavra morfológica e a palavra fonológica.

A partir da hipótese de uma possível falta de clareza, pelos falantes, das unidades “palavra prosódica” e “palavra morfológica”, buscamos categorizar erros, na forma escrita da língua, em função de suas motivações e dos critérios utilizados pelos usuários para o emprego ou não do hífen, com base em suportes teóricos relativos à morfologia e à prosódia.

 

 

2. Metodologia

 

         O estudo baseou-se na análise de erros ortográficos referentes ao emprego do hífen em palavras prefixadas. O corpus da pesquisa foi constituído de produções escritas de 54 alunos do último ano do ensino médio de uma escola pública do município de Rio Grande - RS. Foi aplicado um instrumento com 160 palavras grafadas sem o emprego do hífen e 79 palavras com o emprego do hífen, segundo a gramática tradicional.

Foram consideradas três classificações na observância dos dados, que aparecem discriminadas em (1):

(1)

a) palavras hifenizadas, segundo a gramática tradicional, mas escritas sem hífen pelos informantes da pesquisa;

b) palavras não-hifenizadas, segundo a gramática tradicional, mas hifenizadas pelos informantes da pesquisa;

c) palavras grafadas corretamente, segundo a gramática tradicional.  

 

Para a análise dos dados, segmentamos os prefixos em dois grupos, em função de seu caráter prosódico, conforme Schwindt (1999):

Prefixos Composicionais (PCs) ou prefixos acentuados – são aqueles que se comportam como palavras prosódicas (ω) independentes, sendo divididos em dissilábicos e monossilábicos e

Prefixos Legítimos (PLs) ou prefixos inacentuados – são aqueles que têm a característica de sílabas (σ) pretônicas que se alinham à esquerda de uma base na formação do vocábulo.

A representação em (2) formaliza a diferente relação prosódica que há entre os PCs e o PLs e o morfema lexical (base), na formação de palavras prefixadas.

(2)

3. Resultados e Discussão

 

3.1 Estratégias quando do emprego desviado em relação aos preceitos da gramática tradicional

Os resultados mostraram, além do seu emprego correto, duas ocorrências de inadequação em cada tipo de palavras estudadas, as quais poderiam ser entendidas como estratégias diante do funcionamento, na escrita, de palavras formadas por prefixação. Tais estratégias estão expressas em (3)

(3)

1-     Palavras hifenizadas – os informantes da pesquisa, em casos de palavras que apresentam, pela gramática tradicional, o prefixo ligado à base por meio de hífen, mostraram duas estratégias:

(a)    a criação de dois vocábulos morfológicos

Exemplo: pré-vestibular à pré vestibular

(b)   a criação de um único vocábulo morfológico

Exemplo: pré-vestibular à prevestibular

 

2-     Palavras não-hifenizadas – em casos de palavras que apresentam, pela gramática tradicional, o prefixo ligado à base sem hífen, os informantes da pesquisa também empregaram duas estratégias:

(a)    criação de vocábulo morfológico com hífen

Exemplo: antialérgico à anti-alérgico

(b)   a criação de dois vocábulos morfológicos

Exemplo: antialérgico à anti alérgico

 

 

3.2 Resultados relativos a palavras com prefixos composicionais

 

Em se tratando do resultado relativo a palavras hifenizadas e não-hifenizadas, contendo prefixos acentuados, sejam dissilábicos ou monossilábicos, verificou-se que grande parte dos alunos optou pela criação de dois vocábulos morfológicos para os dois tipos de prefixos. Os índices registrados nesta pesquisa alcançaram os percentuais de 40,95% e 35,62%, respectivamente, nas palavras não-hifenizadas, para prefixos acentuados dissilábicos ou monossilábicos, e os percentuais de 46,21% e 47,88%, respectivamente, nas palavras hifenizadas.

Esse resultado leva à interpretação de que o acento motivou a criação de duas palavras morfológicas na escrita. A tendência, portanto, segundo os dados, é de que cada palavra prosódica dê origem a uma palavra morfológica.

Tem-se um exemplo na palavra anti+alérgico: embora seja um vocábulo morfológico, os dois vocábulos prosódicos que o constituem conservam o acento primário original. Nesse caso, a tendência maior é que os falantes da língua criem dois vocábulos morfológicos na manifestação escrita da língua.

 

 

3.3 Resultados relativos a palavras com prefixos legítimos

 

Quanto ao resultado relativo a palavras hifenizadas e não-hifenizadas, contendo prefixos inacentuados, os dados da presente pesquisa revelaram que, nas palavras não-hifenizadas contendo prefixos inacentuados, o percentual de acertos na grafia foi de 56,51% (Exs.: desabrigado, desânimo e preconceito); nos casos de grafia inadequada, prevaleceu a ortografia de vocábulo com hífen, alcançando o percentual de 31,17%.

O resultado do presente estudo, em se tratando de palavras formadas por prefixos legítimos, pode ser interpretado no sentido de que a falta de acento do prefixo motivou a criação de apenas uma palavra morfológica na escrita. Esse resultado é consistente com aquele obtido em relação ao tratamento dado às palavras que apresentam prefixos composicionais, uma vez que, mais uma vez, o acento é o elemento que se está mostrando como condicionador da identificação de palavras morfológicas na manifestação escrita da língua.   

Os dados da pesquisa também mostraram que, nas palavras hifenizadas contendo prefixos inacentuados, o percentual de acertos na grafia foi de apenas 29,40% (Exs.: cooperar, subdelegado, desfazer), e que, nos casos de grafia inadequada, prevaleceu a ortografia de dois vocábulos morfológicos, com o percentual de 38,74%.

Uma interpretação preliminar desse resultado aponta para razões alheias ao acento como determinante da formação de duas palavras morfológicas na forma escrita, mesmo quando o prefixo é inacentuado. Essas razões podem ser de natureza fonético-fonológica, como choque de vogais ou de consoantes, por exemplo, ou de outra ordem, como decorrente de motivação semântica, ou, inclusive, de freqüência na língua. A continuidade da pesquisa deverá apresentar análises de todos os fatores que podem estar condicionando a escolha da forma escrita.

Em (4) apresenta-se um quadro com o resumo dos resultados obtidos com a pesquisa aqui relatada, discriminando-se os percentuais de emprego, pelos informantes, da forma escrita das palavras prefixadas analisadas no presente estudo.

 

 

(4)

Quadro-resumo dos resultados:

 

a) Palavras não-hifenizadas

b) Palavras hifenizadas

 

(1a) %

(2a) %

(3a) %

(1b) %

(2b) %

(3b) %

PC dissilábico

35,33

23,72

40,95

41,59

46,21

12,53

PC monossilábico

40,45

23,93

35,62

41,51

47,88

10,21

PL

56,51

31,17

12,23

29,40

38,74

31,71

  (1a) emprego correto                                                       (1b) emprego correto

  (2a) criação de vocábulo com hífen                                (2b) criação de dois vocábulos morfológicos

  (3a) criação de dois vocábulos morfológicos                 (3b) criação de um único vocábulo morfológico

 

 

4. Conclusões

Concluímos que, embora as gramáticas apresentem regras quanto ao padrão ortográfico das palavras derivadas por prefixação, sua aplicação ainda é de difícil assimilação e emprego pelos usuários do sistema. Os resultados do presente estudo apontam que identificação da unidade palavra prosódica é um dos motivadores na grafia incorreta de palavras contendo o diacrítico característico da manifestação escrita – os dados da pesquisa, até o momento, estão mostrando que a identificação da “palavra prosódica” é condicionadora da “palavra morfológica” na manifestação escrita da língua.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.

BISOL. Mattoso Câmara Jr. e a Palavra Prosódica. D.E.L.T.A., n. 20: Especial, p.59-70, 2004.

CÂMARA Jr, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. 35ª ed. Petrópolis: Vozes, 2002.

CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da língua portuguesa. 29ª ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1985.

LUFT, Celso Pedro. Novo Guia ortográfico, 29. ed. São Paulo: Globo, 2000.

MORENO, C. Morfologia nominal do português: um estudo de fonologia lexical. Tese de Doutorado. Porto Alegre: PUCRS, 1997.

NESPOR, Marina & VOGEL, Irene. Prosodic Phonology. Dordrecht: Foris, 1986.

SCHWINDT, Luiz Carlos. O prefixo no português brasileiro: análise morfofonológica. Porto Alegre: PUCRS, 1999.