O ensino da gramática: o programa de Chomsky na escola

 

Ronald Taveira da Cruz (UFSC-CNPq)

 

O título deste trabalho é um tanto quanto curioso. Baseia-se numa expectativa provocadora ao programa gerativo de Chomsky: Como podemos aplicar a teoria gerativa no ensino? Quais as conseqüências do programa chomskiano para o ensino da gramática? A descrença em sua relevância e aplicabilidade no ensino é quase total. 

Em uma de suas visitas ao Brasil, em 1996, Chomsky é finalmente questionado:

 

“Nós, professores, estamos muito angustiados de perceber que, apesar dos avanços na gramática gerativa, o ensino de gramática nas escolas de primeiro e segundo graus continua sendo nos moldes da gramática tradicional. O professor acha que é necessário “ensinar” gramática nas escolas? Caso afirmativo, como abordá-la de forma que se aproxime do modelo gerativo?” (1996: 73-4).

 

Na própria pergunta que se coloca, percebe-se uma confusão de idéias. A indagação em si tenta reunir dois conceitos bastante diferentes: a evolução da gramática gerativa e a evolução do ensino de gramática na escola. A primeira tem a ver com pesquisas desenvolvidas, é de base teórica e fundamentalmente epistêmica. A segunda simplesmente retrata uma determinada sociedade e seus valores, seus objetivos no ensino. Trata-se de uma questão complexa quando comparada a uma teoria, pois é parte da prática docente educacional. Chomsky (1996: 74)  também assim o vê: “Como se deve ensinar depende de todo tipo de questão. Essas questões não têm nada a ver como a língua funciona. Têm a ver com os objetivos do sistema educacional, com problemas sociais e políticos”. Neste trecho, fica claro que o ensino de línguas, especificamente o ensino da gramática envolve vários fatores, como as relações entre Política e Lingüística, Poder e Linguagem, o Social na linguagem, que estão além dos objetivos deste texto.

A questão que se coloca para a teoria gerativa sobre sua aplicabilidade no ensino, nada tem a ver com o gerativismo em si. É uma questão de cunho pedagógico, e deve ser respondida juntamente com a lingüística. Está relacionada também à pedagogia, às políticas públicas, sociais e educacionais. Se a proposta é ensinar a gramática tradicional para a exclusão de pessoas, então, o ensino da língua portuguesa a partir da gramática tradicional vem funcionando bem. Por outro lado, se queremos formar críticos, pesquisadores, então, a lingüística tem muito a contribuir. Pesquisas nas universidades brasileiras dentro da própria área da Lingüística têm se preocupado com tais questões. Vertentes da lingüística relacionadas ao ensino e à pratica pedagógica tem como eixo condutor a questão do preconceito lingüístico, do letramento e oralidade, da educação em língua materna e aquisição da língua oral e escrita. Não se pode pensar em educação em língua materna sem que a lingüística e a educação trabalhem juntas.

Chomsky segue sua resposta afirmando que as pessoas têm de estar motivadas para aprender, porque, caso contrário, não há modelo de ensino que resolva os problemas. A motivação no ensino de gramática é um processo de conscientização que parte do que é desinteresse para o interessante; do que é desprezível para o relevante, visando tornar o aluno competente em um aluno habilidoso. É um processo de apropriação do conhecimento.

Portanto, o que motiva este texto é o que esperamos motivar no aluno: a capacidade de fazer-ciência, e mais, a habilidade de fazer ciência. É tornar o aluno competente em um aluno habilidoso. Este trabalho, então, tem duas finalidades congruentes: a primeira é mais geral e é uma questão da lingüística como um todo, pois trabalha com a hipótese de que a lingüística tem de estar na escola ou pelo menos, refletir-se na escola; a segunda abrange aqueles que ainda acreditam que a gramática na escola é fundamental e que a teoria gerativa pode ser um auxílio importante para o professor(a) de gramática. Essas duas finalidades podem ser parafraseadas em duas perguntas:

 

(1) Por que lingüística na escola?

(2) Por que o programa de Chomsky na escola?

 

Com o propósito de trabalhar essas duas perguntas, desenvolvemos na primeira parte uma breve abordagem da lingüística na escola, de sua importância para promover a capacidade de fazer-ciência no aluno; em seguida, motivamos a introdução mais direta do programa de Chomsky na escola e, por fim, um modelo de aula é exemplificado.

 

1.      Por que lingüística na escola?

 

O ensino da gramática tradicional está estritamente ligado ao ensino de uma terminologia complicada e problemática, limitando a prática aos exercícios escritos, ignorando as variedades lingüísticas, fortificando os preconceitos e abusos de poder. O que a lingüística faz é semear uma nova forma de atuação: “a primazia da expressão falada sobre a expressão escrita” (Ilari 1997: 99)[1]. Assim, o professor, ao conhecer como a língua funciona, não pode esquecer que a oralidade também é constitutiva da língua e é ela a língua materna em constante mudança. O que falamos, o que está em uso é a própria língua em questão. Ensinar apenas o que está escrito é ensinar uma língua morta e “a língua nunca pode ser estudada ou ensinada como um produto acabado, fechado em si mesmo” (Geraldi, 1996: 28)

O entendimento da lingüística como um todo, como uma disciplina capaz de agregar na formação do aluno, deve ser pensado como essencial na formação do professor que irá atuar com este aluno. De acordo com Ilari (1997) existe uma necessidade de unir aquele que ensina e aquele que pesquisa a língua. É o que também afirma Chomsky (1996: 74), “é útil para os professores entender como a língua funciona, exatamente como um professor de natação deve saber algo sobre fisiologia. Mas se se deve usar essa informação no ensino é outra questão”. Uma questão que deve ser respondida afirmativamente.

Nota-se que o “perfil ideal” do professor de gramática pode ser facilmente traçado. Encontrá-lo, porém, não é algo simples, ou melhor, formar um profissional ideal não é tão simples assim. A lingüística vê no profissional de ensino um grande conhecedor da língua e de suas variedades, que incentiva a pesquisa e a pluralização do idioma, sem jamais estigmatizar nenhuma dessas variedades, mas sim explicando ao aluno os contextos de interação social em que a língua pode variar. Dessa maneira estaremos transformando o aluno em um ser consciente de sua própria língua, contribuindo também para a ciência, que a partir daí será vista de maneira mais abrangente e completa.

O reflexo dos estudos lingüísticos na escola é claro. Há tempos, suas influências são vistas desde as mudanças dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) até o dia-a-dia do professor(a). As preocupações com as noções de preconceito lingüístico, variedades da língua, dialetos, norma culta/oculta, entre outras, advém da lingüística e devem ser (re)tomadas didaticamente por professores. Com isso espera-se que eles possam atuar de maneira mais crítica e questionadora, revisando as definições da gramática, salientando as interações discursivas e as intenções de cada uma das variedades e variações de uso da língua materna. Espera-se também que a produção de textos seja feita de maneira mais pertinente, cuidando para que não se perca o uso da oralidade; enfim, de trabalhar com as contribuições da lingüística no ensino de Língua Portuguesa.

 

2 - Por que o programa de Chomsky na escola?

 

Primeiro, porque há consensualmente por parte dos lingüistas:

 

“O reconhecimento de que a gramática tradicional é inadequada e não oferece uma descrição coerente do português, nem em sua modalidade culta, seja pelo normativismo abusivo, seja pelas incoerências teóricas e descritivas, seja ainda por sua desatualização, seja, finalmente pela ausência de progressão de sua apresentação na prática pedagógica. (Britto 1997: 150-1)

 

Segundo, porque “Aprender uma língua não é apenas conhecer o conjunto de normas lingüísticas referentes a ela, mas é também tornar-se sensível às percepções culturais diferentes... e ser capaz de desvendá-la a partir das marcas lingüísticas formais” (Castro 1990:66).

De acordo com Chomsky (1986), a gramática gerativa nada mais é do que uma gramática explícita que se preocupa com a forma e o significado das expressões dessa língua e ainda mais: com a mente/cérebro do indivíduo. Parte da base psicológica (e porque não dizer também biológica) do indivíduo e de uma concepção modular da mente, na qual postula-se a existência de um módulo responsável pela linguagem e, dentro desse módulo, a faculdade da linguagem – aparato genético do ser humano relacionado especificamente com a linguagem. “Neste caso, fica muito atenuado o preconceito lingüístico, já que todos os homens teriam a mesma “forma” lingüística inata” (Brito, 1992: 41).

A base para os estudos científicos da linguagem é um conceito associado de gramática – por este termo entende-se a gramática interna do falante:

 

“A gramática internalizada nasce de uma concepção gerativista da linguagem e não prescinde de uma visão interacionista do processo de aquisição e amadurecimento da linguagem. Isso significa que essa gramática tem como pressuposto um conceito de língua que se produz nas relações sociais vividas pelo falante, produzida também pelo falante que opera sobre a linguagem construindo hipóteses a respeito de seu funcionamento.” (Mendonça 2000: 238)

 

Com o surgimento da gramática internalizada, não há mais noção de erro. O verdadeiro objeto da lingüística passa a ser um componente do mundo natural (Costa, 1994: 83). O objetivo da educação lingüística escolar passa a ser o desenvolvimento das habilidades de ler, escrever, falar e escutar que tem como base a concepção heterogênea da língua inserida em um processo ininterrupto e contínuo que se inicia na infância e institucionaliza na escola, quando o aluno entra em contato com as várias situações de uso da língua.

Sem essa noção de erro, o que entra em jogo é a dicotomia gramatical/agramatical. Este é mais um argumento para que o programa de Chomsky seja trabalhado na escola: todos os alunos falam sua língua (a oralidade novamente), e eles são capazes de distinguir intuitivamente sentenças gramaticais como (a) quem comprou o jornal ontem? de sentenças agramaticais *o jornal ontem comprou quem?. É o que se chama de ciência intuitiva. Esse meio de investigar é também interessante porque todos os alunos sabem sua língua e não é preciso de laboratórios, grandes experimentos como em química, física ou biologia.

Outro argumento importante para a introdução do programa de Chomsky na escola parte da forma de investigação do modelo. A investigação é feita pela dedução que parte de grandes generalizações, princípios, do raciocínio dedutivo para ir depois aos dados, para corroborar ou não a teoria. A conseqüência mais valiosa para o ensino, e para o aluno propriamente, é que os alunos começam a se interessar pela construção e destruição de teorias, fomentando o pensamento cientifico.  Mais uma vez, há o incentivo no desenvolvimento da capacidade de fazer-ciência no aluno.

O pensamento científico está enraizado em um comprometimento com a ciência: a clareza, previsão, explicação... Para que tenha sucesso, a teoria cientifica, então, é desenvolvida em um modelo, assim, como se entende na matemática. Sendo assim, o programa de Chomsky na escola tem um caráter interdisciplinar, se relacionando também com a matemática. É a partir desta interdisciplinaridade que passamos agora a nossa aula expositiva.

 

3 - Aula

 

Há inúmeras formas de trabalhar a intuição dos alunos, como falantes de língua. Westphal (1994: 71-3) destaca algumas evidências sobre a competência lingüísticas dos falantes:

 

“(1) reconhecimento de ambigüidades lexicais e estruturais (O banco está cheio de gente); (2) o reconhecimento de sinonímias lexicais e estruturais (o inimigo destruiu/aniquilou a cidade); (3) o reconhecimento de aparentes exceções a regras gerais (Nenhum amigo de João (*não) veio); (4) a distinção entre seqüências gramaticais e não-gramaticais ou impossíveis (* seqüências distinguir gramaticais seqüências entre não e ou impossíveis gramaticais); (5) produção e o entendimento de orações nunca encontradas aneriormente: (o quadrado redondo não existe); (6) A distinção entre palavras impossíveis e possíveis ainda que estas estejam inexistentes na língua (os estrelos desanoiteceram pretamente X Só trelssoe sedntcmearoiae tprteaemne.)

 

A matemática como um modelo para a teoria é importante na representação semântica. Por exemplo, considere as seguintes sentenças:

 

(1) O homem é casado.

(2) Os homens são casados.

(3) Algum homem é casado.

(4) Três homens são casados.

 

Nessas quatro sentenças, o conhecimento pressuposto em matemática para montar um modelo é o da teoria dos conjuntos. Na sentença (1), a intersecção entre o conjunto dos homens e o conjunto dos casados tem de ser igual a um. Na sentença (2), essa mesma intersecção deve ser maior ou igual a dois. Em (3), a intersecção entre os conjuntos dos homens e o dos casados tem de ser maior que um. Finalmente, na sentença (4), essa intersecção é igual a três. Honda e O´Neil ((1993: 238) afirma que as “relações complexas entre estrutura sintática e seu significado expressos em termos matemáticos básicos pode ser um foco da investigação lingüística e pode também formar um modo de acessar o “tamanho” do conhecimento do aluno de um determinado aspecto”.

Há uma outra forma de incentivar os alunos, a partir da noção de constituinte.  Observe a próxima sentença:

(5) O professor viu a teoria gerativa na sala de aula.

Na sentença (5), o núcleo das relações sintáticas é o verbo ver. Ele controla três constituintes: o professor, a teoria gerativa e na sala de aula. Essa sentença é ambígua: em uma interpretação temos que Foi na sala de aula que o professor viu a teoria gerativa; a outra interpretação é que Foi a teoria gerativa na sala de aula que o professor viu. Na primeira interpretação, na sala de aula é o lugar onde a teoria gerativa foi vista pelo professor; na segunda, a teoria gerativa na sala de aula foi vista pelo professor, sem mencionar onde ela foi vista (ela pode ter sido vista neste seminário!!). Na primeira interpretação, o constituinte na sala de aula não faz parte do constituinte a teoria gerativa. Como podemos observar, o constituinte é um unidade sintática (Mioto et alli 2002: 40).  Quantos aos nomes de cada constituinte e sua função ficam para a próxima aula.  

 

4- Considerações finais

 

No campo atual da lingüística, não cabe mais falar de tradição no ensino de gramática, pois é fato concreto que o mesmo já não é, há alguns anos, eficaz. Na verdade existem mais críticas à maneira irracional e estanque do ensino, do que propostas que visem melhorá-lo. Este também foi um dos objetivos do presente artigo.

O que se percebe é que a língua portuguesa merece e efetivamente precisa que se produzam gramáticas que estejam de acordo com os campos aqui explorados - pedagógicos, normativos, descritivos; mas que também seja visível nessa gramática o objeto sob análise e o tipo de manifestação que se mira: língua falada, escrita, que tipo de registro, enfim da língua como manifestação particular de uma gramática universal. Gramática universal esta que faz parte do mundo natural, pertence à biologia.

A investigação na escola, o incentivo à ciência e a aplicação do programa de Chomsky na escola, a partir de formação de hipóteses, da interdisciplinaridade, da dedução e construção de teorias fazem com que os alunos compreendam melhor o funcionamento da língua, se interessando com a própria lógica do raciocínio. Uma conseqüência interessante é que os alunos se interessam tanto pela ciência e acabam evitando idéias ruins (é fazer cidadania?).

Pretendemos também enfocar na idéia de mover o aluno de competente para habilidoso. Habilidade é uma espécie de “inteligência capitalizada” que decorre da competência já adquirida. Navegar, por exemplo, é uma competência. Saber navegar em mar revolto é uma habilidade. Falar é uma competência. Saber falar bem em voz alta diante de um grande público é uma habilidade. O que se espera é que o aluno não apenas saiba “gramática”, no sentido tradicional do texto, mas que ele seja habilidoso com sua própria língua, tornando-se um verdadeiro poliglota em sua própria língua, isto é, “trata-se de levar os alunos desde cedo a diversificar os recursos expressivos com que fala e escreve e a operar sobre sua própria linguagem, praticando a diversidade dos fatos gramaticais de sua língua”. (Franchi, 1987: 41)

 

 

5- Bibliografia:

 

BRITO, P.. Concepções de linguagem e ensino de língua. In. Fugindo da Norma. (1992).

BRITTO, L. P. L. A sombra do caos: ensino de língua X tradição gramatical. Campinas: Mercado de Letras, 1997.

CASTRO, S. A. P. Que língua ensinamos? Letras: revista do instituto de Letras, vol.9, nº 1 e 2, dez/1990.

CHOMSKY, N. Knowledge of language: its nature, origin and use. New York: Praeger, 1986.

_____. Linguagem e mente. Brasília: ed. UNB, 1996.

COSTA, J. C. Linguagem-I X Linguagem-E na Lingüística C. Anais doSeminário Lingistica e ensino da Língua Portuguesa. Porto Alegre: Edipucrs, agosto 1994.

FRANCHI, C. Criatividade e gramática. Trabalhos em Lingüística Aplicada. Número 9, 1987, pg. 5-45.

_____. Linguagem – atividade constitutiva. In. Revista Gel, 50° Seminário em memória de Carlos Franchi (1932-2001), número especial, São Paulo: Contexto, 2002.

GERALDI, J. W. Linguagem e ensino – exercícios de militância e divulgação. Campinas, Mercado de Letras, 1996a.

_____. Descrição da língua e ensino da Língua. Boletim 19 da  ABRALIN. Dez/1996b.

HONDA, M. e O’NEIL, W. Triggering Science forming Capacity through Linguistic Inquiry. IN. Hale, K. e Keyser, S. The view from building 20 (Essays in Lingusitcs in honor of Sylvain Bramberger), Cambridge, the MIT Press, 1993.

ILARI, R. A lingüística e o ensino da língua portuguesa. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MIOTO, C. e SILVA, M. C. F. E LOPES. R. E. V. Manual de sintaxe. Florianópolis, edufsc, 2002.

WESTPHAL, G. Aspectos do conhecimento lingüístico. Anais do Seminário Lingüística e ensino da Língua Portuguesa. Porto Alegre: Edipucrs, agosto 1994.



[1] É uma das motivações para estarmos reunidos aqui em um seminário sobre a oralidade.