Marcadores discursivos não são vícios de linguagem!

 

Raquel Meister Ko. Freitag (UFSC)[1]

 

1.      Introdução

 

Observando a fala, é freqüente encontrar elementos que não são previstos nas gramáticas normativas, tais como os denominados ‘marcadores discursivos’. Há uma variedade de estudos que descrevem e sistematizam o seu comportamento, porém, a falta de prescrição gramatical torna-os estigmatizados, sendo muitas vezes considerados um ‘vício de linguagem’ ou um ‘cacoete lingüístico’. Neste texto, (i) retomo as discussões lingüísticas relacionadas a esse tipo de elementos, sistematizando suas funções, (ii) analiso as pressões sociais para eliminá-los da fala, e (iii) apresento indícios da sua normatização, o aparecimento na escrita.

 

2.      Os marcadores discursivos

 

Marcadores discursivos (ou ‘marcadores conversacionais’, ‘operadores argumentativos’, ‘articuladores textuais’, não há consenso na literatura acerca da denominação) é um rótulo amplo que recobre construções que atuam tanto no plano textual, estabelecendo elos coesivos entre partes do texto, como no plano interpessoal,  mantendo a interação falante/ouvinte e auxiliando no planejamento da fala (GORSKI et al., 2004; MARCUSCHI, 1989).[2]  Sob o escopo dos marcadores discursivo se insere a categoria dos ‘requisitos de apoio discursivo’ (MACEDO E SILVA, 1996), marcadores discursivos de natureza basicamente interpessoal, que são o foco de análise neste estudo.[3]

Os requisitos de apoio discursivo são caracterizados por desempenhar funções relacionadas à organização da fala, nos planos

(i)                  interpessoal, atuando como elemento de contato entre os interlocutores, pedindo a aquiescência do ouvinte e/ou mantendo o fluxo conversacional (MACEDO; SILVA, 1996);

(ii)                interpessoal e textual, solicitando a atenção do ouvinte para certas partes do texto dando relevo, na função de focalização, àquilo que os antecede (TRAVAGLIA, 1999; VALLE, 2001; GORSKI et al., 2003);

(iii)               rítmico, atuando como marcadores de ritmo (formas automatizadas), ou ‘pontuantes’, perdendo sua modulação interrogativa (VINCENT; VOTRE; LAFOREST, 1993).

Nem sempre é possível delimitar uma função da outra, dado que os requisitos de apoio discursivos são construções originárias de verbos ou adjetivos que passam por processo de mudança lingüística, e por isso, uma mesma forma pode desempenhar simultaneamente as três funções. Os requisitos de apoio discursivo atuam, primariamente, no plano interpessoal, dada a sua origem como pergunta (pergunta plena > pergunta semi-retórica > pergunta retórica).  No plano interpessoal e textual, atuam  como elementos focalizadores de informações no texto. A focalização de informações está associada à noção de relevo (TRAVAGLIA 1999:77-81): o falante, ao formular seu texto, vale-se do relevo para (i) destacar elementos específicos dentro do texto em relação a outros (relevo positivo); e (ii) ocultar ou rebaixar certos elementos em relação a outros (relevo negativo).

A função de relevo positivo recobre funções mais específicas como: ênfase, intensificação, marcação de um valor especial, estabelecimento de contraste, reforço de um argumento, sinal de importância para a estrutura ideacional/informacional, marcação de foco informacional, etc., marcadas diferentes recursos lingüísticos, (aspectos fônicos, itens lexicais, elementos morfológicos, estruturação sintática, parênteses, recursos expletivos), dentre os quais se inserem os marcadores discursivos.

A focalização de informações pode ser considerada uma função de natureza interpessoal, pois o falante, por meio de requisitos de apoio discursivo, chama a atenção para determinado trecho ou elemento textual com objetivos pragmáticos de ativar a informação na memória do interlocutor, checar a compreensão do que foi dito, destacar certas informações em relação a outras, etc., e também uma função de natureza textual, pois os requisitos de apoio discursivo podem ser usados para dar relevo a itens e trechos do texto com o objetivo de organizar o texto, ordenando segmentos textuais.[4]

Em um estágio mais avançado da mudança lingüística, os requisitos de apoio discursivo funcionam como marcadores de ritmo da fala, já com a sua massa fônica reduzida, esvaziados de significado referencial e do contorno interrogativo da pergunta que o originou. Neste sub-categoria, estão os marcadores né? e tá?, que apesar de serem formas reduzidas, extremamente recorrentes e esvaídas de significado referencial, desempenham a função de manter e ritmar o turno do falante.

A superposição de funções dos requisitos de apoio discursivo pode ser observada nos excertos (1)-(7)[5] a seguir, que constituem uma amostra das diferentes formas que desempenham a macro-função de requisitar apoio discursivo, marcando focalização de informações, tanto no plano interpessoal como textual.

 

(1)   Protocolo? O protocolo é a alma da, da repartição, certo? É onde entra a correspondência, entra processo, entra ofício, sai processo, sai ofício, autua processo, enfim, de tudo. (SC FLP 02 MAP)

 

(2)   Depois nós saímos daqui fomos morar também, moramos no Morro do Céu , o Morro do Céu, ontem é, hoje é onde é o Morro da Cruz, né? funciona a TV, a televisão lá em cima. Moramos muito tempo lá também. Moramos na Prainha, tá? Tempo depois nós, né? nós crescemos, meu irmão mais velho casou, eu continuei ajudando a mãe também. Depois também casei. (SC FLP 18 MAC)

 

(3)   I: Então aquilo ali era lindo porque a gente morava naquela casa do Mercado. Então naquela casa de noite tu sentias o barulho do mar, viu? no meio, bem embaixo da ponte Colombo Sales, tinha a Ilha do Carvão.

E: Ah, tinha mar e depois tinha uma ilha?

I: Tinha uma ilha. A Ilha do Carvão era uma casa antiga, viu? e ali chamava-se a Ilha do Carvão. Ali, antigamente, existia carvão que eu acho que dava pros navios, né? eu não me lembro bem, essa parte aí eu não estou bem lembrada. Mas ali morava um casal de velhinhos. (SC FLP 24 FBC)

 

(4)   Ah, querida, agora isto aí, eu, assim, de religião, eu vou ser franco e te dizer: vou na Igreja, compreendes? mas não levo a religião muito a profundo, compreendes? É. Se fosses fazer essa pergunta pro meu irmão, ele te daria tudo bem esclarecido, porque é um católico bem aprofundado. (SC FLP 12 MBG)

 

(5)   Mas, também, se não quiser, também não precisa colocar que salada fica ótima do mesmo jeito sem salame. E tem o molho também pra saladaque é: meia xícara de maionese, sabes? Tu Pegas a maionesezinha, o suco de meio limão, sal, pimenta e um pouquinho de açúcar, tá? Isso é o que vai. (SC FLP 01 FAP)

(6)   Ela conversava muito comigo. Eu eu gostava muito de conversar, eu era novo. Ela até, ela, uma senhora de setenta, eu com vinte e poucos anos, quer dizer, eu tinha cinqüenta anos de experiência pra frente, entendes? Eu sempre fui assim. Conversar com a pessoa de cinqüenta anos, quer dizer, eu tinha vinte. Dá cinqüenta anos de experiência pra frente. (SC FLP 04 MAP)

 

(7)   Aí também nós fizemos lá  uns trabalhos assim de comida, não tem? Aí um amigo meu levou o tang pro colégio. Levou tang e a gente fez tang e já tomamos tudo lá, tudo, baita pra caramba! (SC FLP 14 MJG)

 

A multifuncionalidade dos requisitos de apoio discursivo é decorrente do processo de mudança lingüística que os tem levado de um uso originariamente como verbo lexical pleno ou adjetivo (função referencial) – estar, saber, entender, ser, ter, compreender, ver, certo – a um uso interativo revestido de valores pragmáticos no discurso. Apesar da origem verbal e adjetival, as formas destacadas em (1)-(7) não se comportam como flexões dos verbos nem como adjetivo; são estruturas cristalizadas e pertencentes a outra categoria, a de requisitos de apoio discursivo, uma sub-categoria dos marcadores discursivos. Esta categoria existe na gramática internalizada do falante, mas não existe como categoria na gramática normativa. Por conta disso, os marcadores discursivos são alvo de estigma.

 

3.      Estigma social

 

Apesar de muitos estudos evidenciarem seu funcionamento e importância na interação, os marcadores discursivos não são reconhecidos como uma categoria nas gramáticas normativas, assim como verbo, pronome e conjunção, por exemplo. Em conseqüência, não aparecem nos materiais didáticos, nem constam nos currículos escolares, sendo cercados de estigma social.

Atire a primeira pedra aquele que não usa marcadores discursivos! Talvez haja cuidado na escolha de uma forma específica (né?, entendeu? tá?, certo?, ok?), mas todo falante proficiente em uma língua utiliza marcadores discursivos. Mas, por não serem previstos na gramática, sofrem de estigma e em contextos de maior formalidade, costumam ser marcados socialmente.

O estigma social atribuídos aos marcadores discursivos pode ser percebido nas orientações para (re)colocação no mercado de trabalho, especialmente para profissionais que atuam em áreas que requerem o relacionamento com o público. Cursos de oratória e de preparação para falar em público rotulam os marcadores discursivos como ‘vícios de linguagem’, ‘cacoetes lingüísticos’ ou ainda, ‘ruídos na comunicação’, definidos como palavras usadas com muita insistência para encerrar uma frase ou para continuá-la. Analisemos os rótulos atribuídos aos marcadores discursivos. Vícios de linguagem, de acordo com a tradição gramatical, são os usos lingüísticos que fogem à norma, como o barbarismo, estrangeirismo, solecismo, etc. A lógica por detrás do rótulo é que se os marcadores discursivos não são previstos nas gramáticas normativas, é porque são vícios de linguagem. Já considerar os marcadores discursivos como ‘ruídos’ significa dizer que eles atrapalham a comunicação, negando, portanto, a sua importância para a estruturação da fala.

Profissionais de recursos humanos orientam que, em uma entrevista de emprego, não é adequado que o candidato utilize marcadores discursivos, pois são ‘vícios de linguagem’. Eliminando os marcadores discursivos, a fala parece ficar mais próxima do que apregoam as gramáticas normativas, reflete a escolaridade do candidato ao emprego. Com o mercado concorrido, qualificação profissional e escolarização são requisitos para uma colocação profissional. Por isso, a necessidade de se policiar quanto uso de marcadores discursivos.

Uma vez inserido no mercado de trabalho, profissionais que lidam diretamente com o público, que têm a sua linguagem como ferramenta, também são orientados a se policiarem quanto ao uso de marcadores discursivos.  Observe-se as instruções de um treinamento para vendedores:

Evitem perfumes fortes; levar acompanhante; mascar chicletes; roer unhas; fumar antes e durante a entrevista. Recomenda-se: os cabelos devem estar bem cortados, arrumados; evitem cabelos molhados; as unhas limpas e não muito compridas. Não falem gírias ou vícios de linguagem do tipo: “sabe?”, “né!”, “quer dizer!”, “legal”, “ta!”, “tipo assim!”. (SILVEIRA, 2005)

Orientações deste tipo são freqüentes: “evite as gírias e os vícios de linguagem (né?, tá?)”, “cuidado com os vícios de linguagem (né?, então, bem, daí)”, “evite utilizar vícios de linguagem: tá?, né?, OK?, certo?, entendeu? percebe? É isso aí!, tipo assim..., acho que...”, “evite vícios do tipo ficar dizendo a todo momento: entendeu?, viu?, sabe?, né?, tá?, olha...” (POLITO, 1995; 1999).

Parte do estigma dos marcadores discursivos deve-se ao fato de o seu uso estar associado à insegurança e falta de domínio do assunto.

O principal erro que se comete ao falar em público, mesmo que não seja numa, é a falta de preparo. Quem se organiza sabe o que dizer e tem maior confiança, o que aumenta as chances de sucesso. [...] Erros como suar e tremer as mãos ocorrem em função da grande descarga de adrenalina no sangue, o que deixa o orador tenso. O medo também deixa a pessoa mais susceptível a erros de concordância e vícios de linguagem. Daí as repetições de expressões como “né” e “tá”. Para “limpar” esses ruídos de comunicação a dica é tentar se policiar e ter atenção para perceber quando os vícios aparecem com freqüência. (NOTÍCIA DA MANHÃ, 2005)

A relação entre o uso de marcadores discursivo e insegurança é institucionalizada, tanto que serviu como indicativo para evidenciar o nervosismo de um político diante de um escândalo, como pode ser observado na notícia a seguir, extraída do Correio Brasiliense.

 

(8) O presidente licenciado do Senado, Jader Barbalho (PMDB-PA), deixou sua mansão no Lago Sul, no fim da manhã. Viajaria com destino a Belém. Numa rápida entrevista, repetiu por 25 vezes a palavra ‘‘certo’’. O cacoete lingüístico é usado todas as vezes que está nervoso. Repetiu-o ao desembarcar em Belém saído do avião Sêneca — ‘‘fretado por amigos’’, dizem os assessores. O avião pousou às 14h55. (grifo meu) (CORREIO BRAZILIENSE, 2005)

 

O uso de marcadores discursivos em contextos de insegurança é uma característica da sua função de pontuantes, ou seja, marcadores de ritmo e preenchedores de pausas. Existe uma necessidade de se preencher os vazios na interação, seja para manter o canal comunicativo aberto, manter o turno ou solicitar aquiescência do interlocutor. A motivação para o uso destas estruturas é funcional, porém, estigmatizada. A origem do estigma que recai sobre os marcadores discursivos começa na escola. Por não serem normatizados, em aulas de língua portuguesa, os marcadores discursivos costumam ser alvo de repúdio, por parte dos professores ou até mesmo pela instituição. Vejam-se as orientações para exposição oral e redação dadas pelo IBGE:

A Língua Portuguesa tem sido objeto de destaque nos processos seletivos, tanto na fluência oral, quanto na escrita. Um candidato com um bom currículo e uma fala fluente, correta, clara e objetiva tem mais chance de “agradar” . Quem se comunica melhor, em geral, aproxima-se melhor da equipe e passa mais confiança para a chefia. Inicialmente, é preciso vencer a timidez para falar em público e dois fatores colaboram para a pessoa falar melhor: boa carga de leitura e o treino. Dicas para atingir um bom desempenho: evite as gírias e os vícios de linguagem (né, tá?!); valorize sua participação. (grifos meus) (BRASIl, 2005)

Ou ainda, as metas para a construção da linguagem oral e escrita de crianças da pré-escola (seis anos), propostas pela Secretaria de Educação do Distrito Federal:

Ao longo do ano letivo, espera-se que a criança, progressivamente, seja capaz de:

·         ampliar, gradativamente, suas possibilidades de comunicação e expressão, interessando-se em conhecer vários gêneros orais e escritos e participando de diversas situações de intercâmbio social, nas quais possa contar suas vivências, ouvir as de outras pessoas, elaborar e responder perguntas; [...]

·         perceber que a língua indicada pelas gramáticas (registro formal) constitui uma variedade do Português, que difere não só do dialeto falado pelas camadas populares, como também do dialeto-padrão utilizado coloquialmente. A língua escrita deve ser apresentada na norma culta, isto é, com recursos léxico-gramaticais pouco freqüentes e até mesmo ausentes nos contextos de comunicação oral.);

·         substituir as marcas de oralidade, como o uso de frases curtas e entrecortadas por monossílabos (aí, né), no texto escrito, por recursos oferecidos pelo sistema de pontuação e por conectivos mais adequados à linguagem escrita. (Não basta ensinar a escrever com correção, respeitando as regras da gramática e empregando vocabulário abundante. Deve-se fazer, também, com que o aluno perceba os tantos vícios de linguagem que prejudicam a clareza, a simplicidade e a harmonia do estilo.); [...] (grifos meus) (DISTRITO FEDERAL, 2005)

 

Por não existirem nas gramáticas normativas como uma categoria, os marcadores discursivos são estruturas às margens da língua, sendo alvo de estigma e de restrição de uso. Porém, não deixam de ser usados por causa deste estigma, dada a sua motivação funcional. A seguir, vejamos indícios que podem ser considerados como a entrada dos marcadores discursivos na norma padrão da língua.

 

4.      Indícios de normatização

 

Apesar do estigma social que cerca o uso de marcadores discursivos em contextos de maior formalidade, existem indícios de que estas estruturas já estão incorporadas à norma padrão da língua portuguesa. Assumindo a definição de Perini (1998, p. 26), de que a norma padrão é “variedade da língua que se manifesta de maneira uniforme nos textos técnicos e jornalísticos de todo país”, podemos considerar que a presença de marcadores discursivos em textos escritos de natureza jornalística seja indício de normatização. Para evidenciar esta premissa, trago alguns usos de requisitos de apoio discursivo no jornal Folha de São Paulo. A escolha deste veículo deve-se a dois motivos: (i) a possibilidade de busca por meio eletrônico (o jornal é publicado integralmente na internet, com acesso total aos assinantes) e (ii) a existência de um manual de redação com orientações quanto ao uso dos requisitos de apoio discursivos. Foram consultadas as edições do jornal no período entre 01/10/2005 e 31/10/2005.

O manual de redação da Folha de São Paulo tem por objetivos delinear a concepção do jornal, além de prescrever opções de linguagem e reforçar regras gramaticais. Sendo os marcadores discursivos não previstos na gramática e marcados socialmente, é previsível que o jornal tenha alguma instrução relativa ao seu uso, qual seja “Na reprodução de declaração textual, seja fiel ao que foi dito, mas, se não for de relevância jornalística, elimine repetições de palavras ou expressões da linguagem oral: um, é, ah, né, tá, sabe?, entende?, viu?.” (grifo meu). Analisando a prescrição do jornal, infere-se que:

a)      marcadores discursivos são expressões da linguagem oral;

b)      marcadores discursivos devem ser eliminados se não tiverem relevância jornalística.

Ou seja, marcadores discursivos não são proibidos pelo manual de redação do jornal; podem ser usados desde que haja relevância jornalística (o que quer que isto seja). De fato, na Folha de São Paulo encontram-se usos de marcadores discursivos, especificamente os requisitos de apoio discursivo certo? e né?.

Em entrevistas, o uso de certo? e né? está presente na fala do entrevistado, como ilustram os excertos a seguir.

 

(9)    

A atriz Lucy Mafra, 50, a Claudete de “América”, conversou anteontem com a direção da novela sobre um assunto chato: ela estava sendo apontada, nos estúdios da TV Globo, como a pessoa que andava surrupiando coisas das bolsas de outras atrizes. Lucy nega. Ela conversou com a coluna. Diz que foi tudo um mal-entendido, já esclarecido, e que continua na novela. A TV Globo não se manifesta oficialmente.

Folha - Como foi a conversa com a direção da TV Globo?

Lucy - Está tudo bem. Eu trabalho há 29 anos na casa [TV Globo], desde 1976, já fiz 18 novelas. Foi um engano, um mal-entendido. Eu continuo na novela. Eles me aconselharam até a processar qualquer pessoa [do elenco de “América”] que fale sobre isso. Se você quiser publicar alguma coisa, me der uma força, eu te agradeço. Eu tenho cenas gravadas ainda para ir ao ar. Vamos ver, né? Pode ser que ela [Glória Perez, autora da novela] não escreva mais nada para mim. Aí eu vou ficar muito aborrecida. É a terceira novela que eu faço dela. Trabalhei em “Partido Alto”, “De Corpo e Alma”, tive pequena participação em “O Clone”. Passei e-mail para ela [Glória Perez], ela me respondeu. Em princípio, está tudo bem. (grifo meu)[6]

 

De acordo com a prescrição do manual de redação da Folha de São Paulo, marcadores discursivos devem ser eliminados, desde que não tenham relevância jornalística. Se o né?  está presente na transcrição da entrevista, significa que o transcritor atribuiu valor à expressão. A função deste requisito de apoio discursivo é interpessoal, um pedido de aquiescência da entrevistada-falante [uma atriz que está passando por uma fase negativa] à entrevistadora-interlocutora [uma colunista da seção de variedades do jornal]. O contexto da publicação – o caderno Ilustrada –, destinado à publicação de notícias do mundo das artes e variedades,  permite maior liberdade em relação ao uso da língua, aproximando-se muito ao uso coloquial, como pode ser visto na entrevista da cantora Maria Rita.

 

(10)            

Folha - Qual a diferença entre os dois discos? Qual foi a diferença entre fazê-los?

Maria Rita - A diferença é na ansiedade, talvez. Antes havia expectativa, cobrança. Mais pelo lado de fora do que para mim. Do lado de fora havia pressão, a gente sentia a expectativa. Esse foi uma coisa menos ansiosa, do lado de fora para cá.

Folha - Na produção também?

Maria Rita - Não, acho que não. Acho que os dilemas existem independente de que disco é, independente da pressão exterior ou interior. Eu tinha os meus dilemas. Uma preocupação com o estético da coisa. “Faço regravação ou não? Ah, será que vai parecer fórmula, será que não vai parecer fórmula?” Ficava muito na cabeça. A partir do momento em que eu deixei passar ficou muito mais natural. Que é só o que eu sei fazer, também. Quando eu penso muito não funciona. O intuitivo para mim sempre fala mais alto e sempre vence.

Folha - No segundo disco as pessoas vão te ouvir mais pela música, já mataram aquela primeira curiosidade?

Maria Rita - Acho que sim. Porque tinha uma bolha à minha volta, né? No primeiro já se dissipou muito da curiosidade logo no início. As comparações, as substituições, a possibilidade de substituição, as diferenças dos indivíduos – eu, minha mãe, meu pai, meus irmãos – e acho que ficou tudo no lugar.

Folha - Comparando a produção dos dois discos, não parece haver uma diferença muito grande. Tem a mesma formação, foi gravado ao vivo...

Maria Rita - Mas é bem diferente, né? Eu sou muito envolvida no projeto de produção, então não dá para falar da produção do Tom Capone ou da produção do Lenine.

Nesse disco eu assino a produção também, o outro eu assinava a co-produção. Co-produtor tem uma responsabilidade um pouco menos intensa. Mas eu me envolvi muito em ambos processos. Ainda assim, a formação da base é a mesma, mas no primeiro disco tinha percussão, tinha violão, algumas outras sonoridades.

Folha - No caso do primeiro disco, uma das grandes questões era de como seria o segundo disco, como com qualquer artista que lança um disco de estréia e faz sucesso. E, basicamente, foi uma continuação. Arranjos parecidos, uma canção em espanhol, regravações, podemos tomar isso como uma reta?

Maria Rita - Não, não, não, não, não, não. Não tem fórmula nenhuma. Antes de entrar em estúdio, eu tive esse momento introspectivo comigo mesma de “como é que eu vou fazer?”, e isso estava totalmente na cabeça. “Ai, se chegar uma música em espanhol, por que eu não vou gravar, por que eu tenho que me podar, porque estava no outro disco, e o outro disco fez sucesso? E esse não vou poder?” Aí eu resolvi que tem que bater na emoção. Porque sempre tudo na minha vida foi nisso. Foi a minha verdade, foi no meu tempo. Não vou começar agora a desviar disso por medo que alguém vá dizer que eu fiz uma fórmula. Não existe fórmula. O primeiro disco teve muito mais regravações do que esse. De certa forma, o segundo é uma continuação do primeiro, mas não é -é outro momento, né? As letras são outras, são outras histórias sendo contadas. Não esperem que eu estacione agora. (grifos meus) [7]

 

 

Além da presença do requisito de apoio discursivo né?, repetições características da linguagem oral  (e fadadas à eliminação, de acordo com o manual de redação do jornal) foram mantidas, como na resposta à última pergunta. Os requisitos de apoio discursivos foram mantidos, como característica do falar da entevistada. A estrutura de uma entrevista está pautada na relação estabelecida entre falante/ouvinte (que se alterna entre entrevistador/entrevistado). O falante faz uso de estratégias para certificar-se da atenção do ouvinte, pedir sua concordância e também manter aberto o canal comunicativo. Estas são características do uso interpessoal dos requisitos de apoio discursivo, a função mais básica na escala de mudança pela qual passam.

Outro contexto de uso de requisitos de apoio discursivo nos textos do jornal é em fala reportada, como no trecho a seguir.

 

(11)            

Assim, quando os leitores se manifestam é uma grande satisfação; quando, ainda por cima, o fazem em quantidade e qualidade torna-se mesmo uma alegria. Além disso, as mensagens dos leitores abordaram outros aspectos da mesma questão que escaparam à coluna; passo então a palavra a eles. Uma leitora de Belo Horizonte, com uma lógica cristalina e irrefutável, se pergunta: “Se vamos pagar, não haverá propaganda, certo? Na TV aberta, quem paga o que vemos são as propagandas dos intervalos, na outra, eu pago e pronto”. Claro, a leitora já se deu conta que não é bem assim: apesar de o raciocínio fazer todo o sentido, continuamos pagando duplamente. (grifos meus) [8]

 

A colunista Mônica Bergamo reporta a fala de uma leitora, e indica que a função do requisito de apoio discursivo certo? é buscar a concordância do leitor com a sua afirmação, função interpessoal dos requisitos de apoio discursivos.

Tanto no caso da entrevista, como no caso da fala reportada, alguns marcadores discursivos são mantidos, apesar da prescrição do jornal. Podemos interpretar esta presença como uma estratégia discursiva, para evidenciar o caráter informal dos textos. Seriam, neste caso, ‘marcas de oralidade na escrita’? Ou os jornalistas reconhecem as estruturas como pertencentes a uma categoria, que embora não seja reconhecida pela gramática normativa, apresenta funções específicas relativas à organização da fala?

O uso de requisitos de apoio discursivo nos textos do jornal Folha de São Paulo vai além do plano interpessoal. Observem-se os excertos a seguir, em que os requisitos de apoio discursivo certo? e né? desempenham funções relativas à organização textual.

 

(12)            

 Você já ouviu falar na São Paulo Fashion Week, certo? É o maior evento de moda do país. Mas será que sabe o que é o Amni Hot Spot? É a principal incubadora de novos estilistas. É dali que sairão boa parte dos designers que definirão a moda brasileira no futuro. (grifos meus) [9]

 

(13)            

 Sabe o ator Brendan Fraser, né? Que fez os blockbusters da múmia e andou conversando com o Patolino? Então, ele está em São Paulo. Veio com o rapper Mos Def para um projeto de cinema que inclui o titã-ator Paulo Miklos. Mas aí, no dia da sua chegada, semana passada, o cara rumava em direção ao seu hotel de luxo, nos Jardins. Numa van. Aí, quando a van chegou à porta do hotel, foi cercada por um monte de gente. “Poxa, já me descobriram?”, indagou o ator famosão. “Vocês são do Whitesnake?”, perguntou um dos assediadores. (grifos meus) [10]

 

Os excertos também foram retirados do Caderno Ilustrada. Nos dois casos, a estrutura destacada em itálico (verbos de cognição/percepção) tem o propósito de ativar na memória do interlocutor referentes conhecidos ou disponíveis, (o ator Brendan Fraser, São Paulo Fashion Week). Os requisitos de apoio discursivo complementam a estrutura de ativação, desempenhando a função de focalizadores, além de buscarem a aquiescência do leitor. Nestes casos, não se trata de fala reportada ou entrevista; a situação comunicativa é entre escritor e leitor. Não há turno a manter, nem canal comunicativo a testar. A ocorrência é um indício de que os requisitos de apoio discursivo são elementos de uma categoria gramatical, assim como o verbo, o substantivo e o pronome o são. A evidência oriunda de textos jornalísticos vem a consolidar os requisitos de apoio discursivo como elementos da gramática da norma padrão.

 

5.      Considerações finais

 

Apesar de não serem reconhecidos pela gramática normativa, e serem alvo de estigma social, os marcadores discursivos se firmam como elementos de uma categoria, dado o seu  comportamento sistemático e os indícios de normatização em contextos de escrita. As mudanças devem atingir também os currículos escolares.

Ao contrário do que afirmam manuais de oratória, prescrições de manuais de redação, ou preleções de profissionais de recursos humanos, marcadores discursivos têm, sim, funções na articulação discursiva e devem ser incluídos nos programas de educação lingüística. ‘Marcas de oralidade na escrita’, na versão mais branda, ou ‘vícios de linguagem’, na versão mais radical, são rótulos depreciativos que não contemplam a gama de funções que os marcadores discursivos desempenham, tanto na modalidade oral quanto na modalidade escrita da norma padrão da língua. Assim como a mídia, sempre aberta às inovações, a escola deve também incorporar os avanços de pesquisas lingüísticas e inserir a categoria dos marcadores discursivos nos programas de educação lingüística em língua materna.

 

Referências

 

 

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SILVEIRA, Fernando. Negociando um bom emprego. Disponível em: <http://www.guiarh.com.br/z36.htm>. Acesso em: 10 nov. 2005

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VALLE, Carla Regina Martins. SABE? ~ NÃO TEM? ~ ENTENDE?: itens de origem verbal em variação como requisitos de apoio discursivos. 2001. Dissertação (Mestrado em Lingüística). Curso de Pós-graduação em Lingüística. Universidade Federal de Santa Catarina.

_____. Os marcadores discursivos ‘né?’ e ‘não tem?’ na fala dos florianopolitanos. Relatório final de pesquisa do Programa Interinstitucional de Bolsas de Iniciação Científicas PIBIC/CNPq/UFSC biênio 1998-1999. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina, 1999.

VINCENT, Diane; VOTRE, Sebastião; LAFOREST, Marty. Grammaticalisation et post-grammaticalisation. In: Langues et Linguistique, n. 19, 1993. p. 71-103.



[1] Doutoranda em Lingüística <rkofreitag@uol.com.br>.

[2] Risso et al. (1996:21-22) consideram problemática a definição e a delimitação do grupo dos marcadores, composto por elementos de natureza extremamente heterogênea – envolvendo desde sons não lexicalizados (humhum, hãhã) até sintagmas mais desenvolvidos (eu acho que). Também Macedo e Silva (1996:13) apontam grande dificuldade em definir o que são marcadores discursivos: qualquer partícula ou expressão que ajuda a arrumar o que se quer dizer seria um marcador discursivo.

[3] Requisitos de apoio discursivo já foram objeto de diversos estudos, como CASTILHO, 1989; MARCUSCHI, 1989; RISSO; SILVA; URBANO, 1996; URBANO, 1999; RISSO, 1999; SILVA, 1999; SILVA; MACEDO, 1996; MARTELOTTA, 1996, 1998, 2004; VOTRE; MARTELOTTA, 1998; FREITAG, 1999, 2001; VALLE, 1999, 2001; GORSKI et al., 2003; GORSKI; FREITAG, 2005, entre outros).

[4] Valle (2001) categoriza as funções textuais dos requisitos de apoio discursivo em dois grupos: o de focalização de informações veiculadas no texto (foco no(s) participante(s), foco na(s) característica(s) do(s)participante(s), foco na avaliação do falante, foco na opinião do falante); e o de marcação de relações entre partes do texto (especificação, contraste, conclusão, retomada, seqüenciação de ações ou argumentos, finalização de turno, anunciação de complemento, circunstanciação, ênfase/atenuação, planejamento verbal).

[5] Extraído de Valle (2001:6).

[6] Folha de S.Paulo - Mônica Bergamo - 14/10/2005. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1410200509.htm

[7] Folha de S.Paulo - Maria Rita dá continuidade ao CD anterior - 16/09/2005.Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1609200506.htm

[8] Folha de S.Paulo - Crítica: Com a palavra: leitores-telespectadores - 23/10/2005. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2310200525.htm

[9] Folha de S.Paulo - Amni Hot Spot mostra os estilistas do futuro - 17/10/2005. Disponível  em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1710200505.htm

[10] Folha de S.Paulo - Popload: Brendan, Goo e Franz - 16/09/2005. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1609200510.htm