DIÁLOGOS E MONSTROS: UMA CONSTRUÇÃO DISCURSIVA

 

SEMINÁRIO NACIONAL DE LINGUAGEM E ENSINO – UCPEL/2005

 

*PEREIRA LIMA, Patrícia de Oliveira

 

Aqueles que denominamos monstros, monstros não são diante de Deus, pois só Deus é capaz de distinguir e apreciar, na imensidão de sua obra, as formas infinitas que imaginou (...) Tudo o que emana da infinita sabedoria de Deus é belo e decorre de leis gerais; mas as relações das coisas entre si e sua hierarquia escapam-nos. O homem não se admira do que vê amiúde, ainda que ignorando a origem; mas denomina prodígio aquilo que nunca viu. (Cícero)

 

            O trabalho a ser apresentado refere-se ao estudo sobre a relação corpo/linguagem realizado através da observação da construção discursiva da personagem saci-pererê que aparece nos diálogos da obra O Saci, de Monteiro Lobato.

 

            Tal pesquisa procura verificar, através desses diálogos, em que medida sua construção vincula o belo ao bem e o feio ao mal, a partir da análise de uma formulação presente no livro de Lobato, cujo enunciado aparece no capítulo IV, e diz respeito a um diálogo estabelecido entre Tio Barnabé e Pedrinho, em que o menino pergunta ao preto velho se realmente existe saci. A partir daí, o capítulo se desenvolve com a explicação do caboclo sobre a crença que ele tem nessa lenda.

 

            O mito do Saci-pererê é muito antigo entre nós, e remonta ao período do Brasil-colônia e Império, períodos esses em que vivíamos numa ordem escravista, baseada na relação “senhor-escravo”. Nessa época, os caboclos velhos e as amas-secas, costumavam assustar as crianças com os relatos das travessuras dele. Sua origem pode ser creditada a várias aves que levam esse nome, principalmente, a Tapera Naevia. Geralmente são aves que apresentam um canto triste e com fama de trazer azar, sendo consideradas por muitos folcloristas como a representação corpórea e transitória da alma de um morto.

 

            Conforme nos ensina Câmara Cascudo (2002), além do saci-ave, há, ainda, três espécies de saci que podemos encontrar na mitologia brasileira: o trique - emite um ruído característico – trique -; o saçurá - negrinho de olhos vermelhos e o saci-pererê - caboclinho de uma perna só. Ele é muito ágil e costuma usar um barrete vermelho que lhe confere poderes de se tornar invisível. Tal barrete é considerado símbolo popular de liberdade individual e coletiva, isto é, a própria materialização do governo republicano. Essa última forma é a mais conhecida.

 

            O suporte teórico sobre o qual irei me debruçar para desenvolver os procedimentos analíticos dos enunciados relativos a essa personagem, é o da Análise de Discurso na tradição de Michel Pêcheux. Esse campo do saber tem como preocupação fundamental estabelecer a relação entre linguagem e ideologia, a partir da articulação entre a base lingüística e os processos discursivos. Essa relação visa a refletir sobre as determinações históricas do sentido.

 

            Tal disciplina, conforme Orlandi (2002),  procura entender a língua fazendo sentido, trabalho simbólico e social que constitui o homem e sua história.  Seu objeto não é a língua enquanto sistema, mas enquanto maneira de significar. Para isso, leva em consideração os processos e as condições de produção da linguagem, a relação que é estabelecida na (pela) língua entre o sujeito e as situações de produção do seu dizer. Assim, a AD busca as regularidades da linguagem em sua produção a partir da ligação entre linguagem e exterioridade (e/ou ideologia). Esta, por sua vez, é a condição para a constituição do sujeito e dos sentidos. A ideologia busca estabelecer a relação necessária entre linguagem e mundo, refletindo-se no sentido da refração, isto é, do efeito imaginário de um sobre o outro.

 

            Para Ernst-Pereira (1991), a interpretação lingüística amplia-se para dar conta da exterioridade, vista em AD, como as condições de produção que constituem o enunciado e que determinam o processo de significação. Segundo a autora, verifica-se, então, um deslocamento na dicotomia de Saussure, língua/fala, passando a outra: língua/discurso.

 

            O fato de que não há sentido sem interpretação, atesta a presença da ideologia e, além disso, diante de qualquer objeto simbólico o homem é levado a interpretar. Nesse movimento de interpretação o sentido aparece-nos como evidência, como se ele estivesse já sempre lá. Desse modo, o trabalho da ideologia é o de produzir evidências, colocando o homem na relação imaginária com suas condições materiais de existência.

 

            Assim, o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia para que se produza o dizer. A evidência do sujeito – a de que somos sempre já sujeitos – apaga o fato de que o indivíduo é interpelado em sujeito pela ideologia. Essa é a contradição pela qual o sujeito é chamado à existência: sua interpelação pela ideologia.

 

            Conforme Orlandi (2002),

 

são essas evidências que dão aos sujeitos a realidade como sistema de significações percebidas, experimentadas. Essas evidências funcionam pelos chamados “esquecimentos”. Isso se dá de tal modo que a subordinação-assujeitamento se realiza sob a forma da autonomia, como um interior sem exterior, esfumando-se à determinação do real (do interdiscurso), pelo modo mesmo como ele funciona.

 

            O processo interpretativo terá aqui sustentação no estudo do funcionamento do elemento de contrajunção “mas” e das negações que aparecem na seqüência discursiva de referência (sdr) selecionada: [...] O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça [...].

 

            Esses elementos indicam a presença de duas posições-sujeito antagônicas: 1) o saci não faz maldade grande; 2) o saci faz maldade grande. Na realidade, essas posições são apresentadas a partir do processo de negação gramatical. O uso do elemento de contrajunção, neste caso, funciona de forma a reafirmar a posição-sujeito1, ou seja, o saci faz maldades pequenas, o que causaria como efeito de sentido a sua inocuidade[1] . 

 

            Tais marcas lingüísticas envolvem não só aspectos sintáticos quanto aspectos de ordem semântico-discursiva. Esses aspectos dizem respeito às duas posições-sujeito acima descritas que apontam para o saci-libertário (PS1), que pratica pequenas maldades e para o saci-domesticado (PS2), que faz grandes maldades.

 

            A partir do resgate histórico, pode-se identificar nessa sdr a presença do  saci-libertário, aquele do término do processo de escravidão no Brasil, e o saci-domesticado, o da vigência da sociedade escravocrata, baseada na relação “senhor-escravo”. Na PS1, o saci-libertário é o que faz pequenas maldades, entendidas essas, como reação aos maus tratos que os escravos sofreram durante muitos e muitos anos pelos grandes proprietários de terras; essas pequenas maldades são vistas como uma espécie de vingança do saci pelo sofrimento causado à classe oprimida pelos latifundiários durante o processo de escravização no país.

            Já o saci-domesticado, o que faz maldade grande, conforme já mencionado, também surge da relação servil “senhor-escravo”. Nessa posição-sujeito, o saci, em princípio, é visto como um ser obediente e submisso às ordens do seu dono. Entretanto, quando se rebela, começa a praticar grandes maldades. Nessa PS2, o saci passa a ser visto como um ente maligno, que pratica atos cruéis.

 

            Ernst-Pereira (1994), com base em Ducrot,  afirma que a maior parte dos enunciados negativos revela um choque entre duas atitudes antagônicas, uma positiva, imputada a um enunciador E1, e outra que é a recusa da primeira, imputada a E2. Isso ocorre em razão de uma lei de discurso geral, conforme a qual, toda vez que dizemos algo, opomo-nos a alguém que pensaria o contrário, lei que também se aplica a enunciados positivos. Essas vozes antagônicas constituem o sujeito dividido.

 

            Através das marcas denotadoras da negação discursiva (operador de contrajunção e negações), podemos observar que tais enunciados nos remetem à memória discursiva (pré-construídos), época em que vivíamos numa ordem escravocrata e os caboclos velhos costumavam assustar as crianças contando histórias sobre as maldades do saci. O caboclo velho incorpora o outro (saci), produzindo, conseqüentemente, um discurso heterogêneo.

 

            Pêcheux (1969) define o discurso como “efeito de sentido entre locutores”. Esse efeito encontra-se vinculado ao conceito de formação discursiva (FD) de Foucault (1969) que busca distinguir o discurso - objeto da AD - de outras disciplinas. Assim,  palavras,  expressões e proposições recebem seu sentido na FD à qual estão inseridas. Dessa forma, o sentido passa a ser produzido historicamente entre locutores, posicionados em diferentes perspectivas (cf. Pêcheux, 1997).

 

            Segundo Barbisan et alli,

 

como ser projetado num espaço e num tempo determinado e orientado socialmente, o sujeito situa o seu discurso em relação ao do outro, entendido não como somente o seu destinatário, mas envolvendo também outros discursos historicamente já constituídos, e que emergem na sua fala (1995, p. 5).

 

            Assim, é possível que o diálogo da história de Lobato produza como efeito de sentido um protesto da classe oprimida (escravos), representada na fala do caboclo (tio Barnabé), contra os maus tratos infligidos pela classe opressora (latifundiários).

 

            Nesse diálogo, constata-se a satisfação do caboclo em contar as traquinagens do saci a Pedrinho, uma vez que ele como negro que é, sente-se vingado das maldades atribuídas ao capeta. Sob esse aspecto, o saci representa o novo, em oposição ao velho, que é o caboclo e que não tem mais forças para lutar, visto que já tem idade avançada. O saci, ao contrário, corresponde à junventude, força, iniciativa, coragem e disposição. As maldades praticadas por ele, nada mais são, nessa perspectiva, do que a luta pela liberdade.

 

            Por outro lado, se correlacionarmos as idéias de bem/mal e belo/feio, vamos observar que as crianças costumam associar o feio ao mal e o belo ao bem. Nos contos de fadas, esse raciocínio é muito comum, visto que o bem está sempre ao lado dos heróis da história, que são em sua grande maioria, príncipes e princesas dotados de pura beleza, enquanto que o mal, o que é feio, ao lado dos vilões. Ocorre que isso nem sempre funciona assim. Vejamos a personagem saci-pererê. Embora apresente deformidade física – mutilação numa das pernas –, tal personagem não causa medo nas crianças, uma vez que a indústria cultural acabou com os traços estigmatizantes da escravidão que fazia parte do mito de Monteiro Lobato e conseguiu domesticá-lo e torná-lo, tão somente, “um molequinho arteiro” e muito simpático, que perdeu seus poderes mágicos e sua agressividade.

 

            Finalmente, ver o processo sintático do operador de contrajunção “mas” e das negações num enfoque semântico-discursivo e não lingüístico contempla fortemente o sujeito e sua inscrição sócio-histórica, fazendo intervir fortemente o interdiscurso no sistêmico. Encontramo-nos diante de uma dimensão que não só privilegia o sentido e não a forma como parte essencial da prática discursiva, mas sobretudo mostra o processo de reconfiguração que se estabelece em função da historização do sujeito.

 

 

Referências Bibliográficas

 

BARBISAN, L. et alli. O discurso pedagógico: a leitura do outro. Revista Letras. Santa Maria, UFSM, 1995.

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos Mitos Brasileiros. São Paulo:   Global, 2002.

 

ERNST-PEREIRA, Aracy. Uma introdução à análise do discurso. Letras de   Hoje: PUCRS, v. 84, n. 11, 1991.

 

__________. Na inconsistência do humor, o contraditório da vida. O discurso  proverbial e o discurso de alterações. Tese de Doutorado. PUCRS, 1994.

 

LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Brasiliense, 1979.

 

ORLANDI, Eni. Análise de Discurso: Princípios e Procedimentos. Campinas: São Paulo, 2002.

 

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

 

 

 

Bibliografia Consultada

 

FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. São Paulo: Global, 2004.

 

GARCIAS, G. DE L. De ‘Monstros’ e Outros Seres Humanos: pequena história sobre defeitos congênitos. Pelotas: EDUCAT/UCPEL, 2002.

 

GIL, J. Monstros. Lisboa: Quetzal, 1994.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Em termos da Teoria da Argumentação na Língua de Ducrot, tem-se aqui um caso de mas SN, isto é, os dois enunciados ligados pela contrajunção “mas” caminham na mesma direção argumentativa.