A MENOR FORMA POÉTICA DO MUNDO

 

 

Pablo Lemos Berned e Priscila Finger do Prado

 

 

“Que é um haicai?

É o cintilar das estrelas

num pingo de orvalho.”

Luís Antônio Pimentel

 

 

RESUMO©

 

O gênero hai-kai, apesar de ser tradicional na cultura nipônica, somente no século XX passou a ser conhecido no Brasil, onde adquiriu a tendência da não metrificação dos versos segundo a forma tradicional 5/7/5. Entre os principais poetas que desenvolveram esta tendência figuram Paulo Leminski, Olga Savary e Millôr Fernandes. Este trabalho, a partir de uma breve contextualização da história e das características do hai-kai, visa ao seu reconhecimento como gênero textual, sua difusão no meio escolar e acadêmico, assim como a possibilidade de sua aplicação em atividades de leitura e produção de texto em sala de aula.

 

PALAVRAS-CHAVE: leitura e produção – gênero textual – hai-kai.

 

 

INTRODUÇÃO

 

            A língua, segundo a hipótese sócio-interacionista, é uma atividade social, histórica e cognitiva, ou seja, ela é viva e acompanha o desenvolvimento de seus falantes.  Além disso, ela se apresenta de maneira tão sistemática, que configura os mais diversos gêneros ao ser usada na comunicação verbal. Dessa maneira, cada vez mais, vem aumentando o número de pesquisas sobre gêneros textuais e suas peculiaridades. Os gêneros textuais têm sido largamente utilizados no ensino de português, mais especificamente no trabalho com leitura e produção de textos.

            O gênero hai-kai foi escolhido para o presente trabalho para ser aplicado em aulas de língua portuguesa, mais precisamente em trabalhos de leitura e produção de textos, devido ao fato de ser um gênero relativamente curto e com uma mensagem condensada. Além disso, o trabalho com leitura e produção de hai-kais em sala de aula se torna imensamente interessante por trazer um pouco da cultura nipônica, tão pouco divulgada no Brasil. Por se tratar de um texto curto, a leitura não se torna cansativa e a sua produção aparenta maior facilidade aos alunos. Assim, pretende-se com este artigo, iniciando por uma breve contextualização histórica do hai-kai, analisar suas especificidades e verificar sua aplicabilidade em sala de aula segundo a perspectiva dos gêneros textuais, priorizando a leitura e produção de textos pertencentes a esse gênero textual.

 

1 Revisão bibliográfica

 

1.1 Contextualização histórica do Hai-Kai

 

Várias são as maneiras de conceituar o hai-kai. Uma delas é a que o classifica como um “pequeno poema de três versos, de cinco, sete e cinco pés métricos, respectivamente, que resumem uma impressão, um conceito, um drama, um poema, às vezes deliciosamente, não raro profundamente” (AURÉLIO, 1975, p.713). Outra, sem dúvida mais poética, é dada por Luís Antônio Pimentel[1], o qual conceitua hai-kai como “o cintilar das estrelas num pingo de orvalho”. Essa definição dá-se, sem dúvida, pelo caráter enxuto, objetivo do hai-kai, no qual deve ser expressa uma imagem, e esta tem de provocar uma sensação imediata no leitor, para que se comprove o brilho do poema.

Tradicional do Japão, o hai-kai foi em princípio denominado hokku[2] e, juntamente com o wakiku (estrofe lateral), formava o renga, tipo de canto interligado e de seqüência de cinco e sete sílabas, que são típicas da poesia tradicional nipônica. Então, com o início do século XVII, o hai-kai ganhou seus próprios mestres, que se aglutinaram em escolas ou maneiras, das quais as principais foram as chamadas Teimon[3] e Danrin[4]. Mas com Bashô (1664-1694) e o triunfo da Shômon[5], o hai-kai passou a ocupar seu lugar como gênero autônomo. Com Bashô, o hai-kai chegou a ser considerado como um michi, um , ou seja, um caminho de vida, uma forma de ver e de viver o mundo.

Ao lado de Bashô, vêm os outros dois grandes nomes do hai-kai: Buson (1716-1783) e Issa (1763-1827). Buson, mais intelectualista, era dotado de uma quase inimaginável capacidade de concretizar uma imagem inesquecível em poucas linhas; já Issa trazia um maior despojamento e a capacidade de transmitir de imediato um enorme calor humano e uma grande pureza de sentimentos. O quarto nome do hai-kai é Masaoko Shiki (1867-1902), o qual criou o termo haikku – a partir da aglutinação hai-kai e hokku – para designar o poema em forma de hai-kai/hokku concebido isoladamente, e não como parte do renga.

 

1.2 O Hai-kai no Brasil

 

No Brasil, o termo hai-kai foi introduzido em 1919, por Afrânio Peixoto, com a denominação francesa haikai, aportuguesada para haicai. Em 1936, foi transposto para o português por Guilherme de Almeida, que, em 1947, com o livro Poesia vária, utilizou rima e título nos poemas.

Após Guilherme de Almeida, surge uma forte discussão com relação à estrutura dos hai-kais, pois, em contraposição à herança nipônica, surge no Brasil a tendência de escrever hai-kais sem metrificação. Para Antônio Seixas[6], o hai-kai é um poema de forma fixa (especificamente a métrica) que, sem seus elementos caracterizadores formais, corre o risco da não-caracterização como gênero hai-kai. Seixas[7] condena também o uso da rima em tal gênero, pois este “pressupõe a leitura silenciosa, visual e mental a um só tempo, para que se dê a fusão entre a percepção e o significado”.

Em contrapartida, Paulo Franchetti[8] indaga: “seria a métrica algo tão fundamental para o hai-kai brasileiro?” Essa questão é levantada a partir da diferença “entre as dezessete sílabas poéticas dos versos em português e as dezessete unidades fônicas do hai-kai japonês”. Logo, para Franchetti (1996):

 

não faz sentido submeter a composição do hai-kai a um arcabouço métrico que nada significa nem representa. Mantendo a brevidade essencial ao gênero e a divisão espacial em três versos, que se fixam entre nós como equivalentes das cesuras do haikku, creio que estaremos mantendo o que é essencial do ponto de vista da forma externa do poema.

 

Entre os poetas que seguem esta última tendência, destacam-se Paulo Leminski, Olga Savary, Millôr Fernandes, entre outros. De acordo com Octávio Paz[9], esta tendência do hai-kai possui as principais características da poesia moderna: “é uma imagem, tem economia verbal, humor e objetividade”.

Tomando a perspectiva de Franchetti (1996), acredita-se na possibilidade da utilização do hai-kai como um incentivo à produção textual de linguagem poética. Isso porque ele apresenta as condições básicas, já citadas, com as quais se pode considerá-lo não só da perspectiva de gênero literário, mas também na de gênero textual.

 

1.3 Noções básicas sobre gêneros textuais

 

            A discussão sobre gêneros é bastante antiga em Literatura, remonta à figura de Aristóteles e é tomada numa concepção composicional, ou seja, é gênero aquilo que caracteriza alguma composição literária específica. Com Bakhtin, na década de 50, esta discussão ganhou nova forma, que privilegiou a Lingüística. Ele não se interessou somente pelo quadro tradicional dos gêneros composicionais, mas sim pelo gênero como forma substancialmente diferenciada de apropriação da linguagem: partindo da idéia de um “mundo prosaico”, ele entendia os gêneros como formas discursivas desse mundo.

            Atualmente, quando se fala em gêneros, não se pensa somente em gêneros literários, como afirma Swales (1990, p. 33): “hoje, gênero é facilmente usado para referir uma categoria distintiva de discurso de qualquer tipo, falado ou escrito, com ou sem aspirações literárias”. A partir da idéia de Bakhtin, muitos foram os estudos que buscaram aprofundar essa noção. No Brasil, Marcuschi tem-se destacado no estudo dos gêneros, com publicações e palestras, nas quais ele procura não só dar um estatuto social e histórico aos gêneros, mas também sistematizá-los quando estes se apresentam na oralidade.

            Para o estudo do gênero, segundo a hipótese sócio-interacionista, alguns conceitos-chave precisam ser apresentados, são eles: texto, contexto, gênero textual e domínio discursivo. Isso porque, a partir dessa perspectiva, a língua é vista como uma atividade social, histórica e cognitiva; o sujeito dessa língua tem uma história e uma idiossincrasia própria, o que faz com que tudo o que produz seja resultado de certos aspectos contextuais.

Segundo Marcuschi (2002, p.24), o texto é “uma entidade concreta realizada materialmente e corporificada em algum gênero textual”. Esse texto precisa ser levado em conta de acordo com a situação contextual em que está inserido, mais precisamente suas condições de produção e de recepção, seus objetivos e seu suporte.

            O texto pode ser definido de acordo com o tipo predominante, entendendo tipo textual como “uma seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição” (Marcuschi 2002, p.24) , podendo-se distinguir cinco seqüências principais: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção; ou ainda como materializações de certos domínios discursivos, que podem ser encontradas na vida diária e que “apresentam características sócio-comunicativas definidas por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição característica” (Marcuschi, 2002, p.25). A essa última definição, dá-se o nome de gênero textual, ou seja, formas de ação social que contribuem para a ordenação e estabilização das atividades comunicativas.

 

2 Metodologia

 

Para este trabalho, foram selecionados quinze poemas, sendo cinco retirados do livro Haikai (Franchetti, Doi & Dantas, 1996), estes de autores japoneses, portanto traduzidos para o português; cinco do livro Hai-Kais de Millôr Fernandes (2000), dos quais três são de sua autoria e dois são encontrados na “pequena introdução para os não-iniciados”; e cinco de autores brasileiros, cujos poemas foram retirados aleatoriamente da Internet. Destes poemas, quatro serão brevemente analisados neste artigo.

Com apoio nos estudos de Franchetti, Doi & Dantas (1996) e de Franchetti6, foi possível conhecer o contexto de produção e principais características desses poemas, os quais foram possíveis de serem analisados na perspectiva dos gêneros textuais graças à base teórica oferecida por Marcuschi (2002).

Dessa forma, para essa análise, através de conta algumas características peculiares ao poema hai-kai, tentou-se no decorrer da análise aponta-las nos poemas e relacionar sua funcionalidade. Além disso, considerou-se o fato de que alguns critérios de produção são diferentes em poemas produzidos por poetas e em poemas produzidos em sala de aula, por isso, tentou-se apontar as duas situações.

 

3 Análise de hai-kais

 

Os poemas hai-kai são encontrados em livros de coletânea e sites da Internet. São produzidos por poetas que possuem um mínimo de conhecimento sobre a cultura que cerca esse gênero e lidos por pessoas que buscam esse contato com a cultura nipônica. A função comunicativa desse gênero textual de domínio discursivo literário consiste em descrever uma imagem, uma ação, geralmente um fato simples, provocando uma sensação imediata através da percepção visual que o poema traz, conforme se pode verificar no poema a seguir, tradicional, que aponta a imagem de um ocorrido singelo, comum:

 

 

       “O velho tanque -

        uma rã mergulha,

Barulho de água” (Bashô)

 

 

Quanto à forma externa do hai-kai, sabe-se que, com as novas tendências, estas deixaram de ser o elemento caracterizador do gênero, permanecendo intrínseco apenas o número de versos. Para Franchetti[10], “é a maneira de organizar o texto e a orientação de seu discurso” que define esta poesia, ou seja, a sua forma interna. Segundo Franchetti[11]:

 

 

Normalmente, nos hai-kais encontramos uma forma de composição que podemos definir como justaposição, isto é, a colocação, lado a lado, de estruturas verbais sem nexos sintáticos explícitos entre si de modo que o leitor tenha de descobrir a relação entre elas.

 

 

A linguagem é simples, coloquial, aproximando-se muito da oralidade, na qual a fluência, a leveza e a naturalidade são fundamentais. Evitam-se expressões que soem artificiais, distantes da língua cotidiana, posto que, desde o tempo de Bashô, a simplicidade é o domínio e o lugar escolhido no hai-kai. O poema de Millôr Fernandes, a seguir, é um exemplo disso, trata de uma situação cotidiana: o sujeito mira-se no espelho de outro e vê a si próprio. Essa imagem acaba provocando certo humor, pois o primeiro verso aponta para uma ironia do cotidiano:

 

 

“Coisa rara:

teu espelho

       tem minha cara.” (Millôr Fernandes)

 

 

Destaca-se ainda o uso do tempo verbal no hai-kai. Este geralmente destaca um fato ocorrido no momento da enunciação ou momentos antes dela e, por isso, o tempo verbal aplicável a ele é o presente do modo indicativo, como podemos verificar no texto abaixo. Ainda se pode encontrar o gerúndio para expressar ações em desenvolvimento e o particípio, expressando o resultado de uma ação ou qualidade referida.

 

 

“A nuvem atenua

o cansaço das pessoas

olharem a lua.” (Bashô)

 

 

Fator também importante na caracterização do hai-kai é o tema, que se compõe principalmente de elementos da natureza, como as estações do ano, que na tradição nipônica são cinco, pois além de abranger as quatro estações conhecidas no ocidente, ainda destaca a estação do ano-novo, que precede a primavera.

 

 

“Lentos dias se acumulam –

como vão longe

os tempos de outrora!” (Buson)

 

 

Para indicar uma estação ou época do ano, costuma-se usar uma palavra ou expressão denominada kigo (“tarde outonal”, por exemplo). No ocidente, o kigo é ignorado ou pouco difundido pela simples razão de não existir na poética ocidental. Com isso, a temática do hai-kai da tendência moderna é apresentada diferentemente da tendência tradicional. Ao invés de buscar o retrato de uma imagem da natureza, específica de uma estação do ano, como no hai-kai tradicional, busca-se retratar uma imagem cotidiana, um acontecimento simples e de certo humor.

Abordou-se aqui a produção profissional do hai-kai, utilizada por poetas, mas a produção de hai-kais é perfeitamente possível também por leigos. Só que com esta, na situação de produção do hai-kai se tem alguém cujo o objetivo seja o de “cintilar estrelas num pingo de orvalho”, isto é, sintetizar uma imagem  em pequeno número de versos (três). Na situação de recepção se tem um sujeito que busca um texto curto, capaz de lhe suscitar uma sensação. E como suporte, tem-se, principalmente, livros de hai-kai. Porém, esses poemas podem circular na escola, por meio de cartazes ou jornais estudantis; na academia, por meio de artigos e comunicações; pode-se ainda encontrá-los em colunas de jornais e revistas e é claro, na rede mundial de computadores, a internet, da qual foram retiradas algumas informações para o presente trabalho.

Paulo Leminski[12] apresenta alguns passos para essa produção, como a ênfase à fórmula do conteúdo usada pelos poetas brasileiros, e não a produção de hai-kai presa à contagem silábica, e também a escolha de temas simples como a natureza, as estações do ano e cenas quotidianas. Leminski sugere ainda que o primeiro verso expresse algo permanente, eterno; o segundo, introduzir uma novidade, um fenômeno e o terceiro deve ser uma síntese. É claro que estes passos devem servir apenas como uma orientação na escrita do aluno e não uma regra rígida, para não interferir na criatividade do estudante.

 

CONCLUSÃO

 

A partir das noções básicas da prática de hai-kai tradicional e principalmente do trabalho desenvolvido por poetas brasileiros nesse gênero, verifica-se a possibilidade do uso de hai-kais em sala de aula, na perspectiva dos gêneros textuais, como um estímulo à produção textual. A situação de produção e recepção, assim como o veiculo que sustenta o gênero podem sofrer algumas mudanças, contanto que este continue a ter um objetivo e uma funcionalidade semelhante. Assim, tanto o poeta profissional, quanto o aluno pode produzir o hai-kai, já que este vai continuar objetivando uma imagem em linguagem sintética, singela e poética. O fato de ser um gênero curto só colabora para a sua escrita, pois além de se apresentar com relativa facilidade à produção textual do aluno, este ajuda a promover-lhe um senso maior de condensação de mensagens, o qual pode auxiliá-lo na produção futura de outros gêneros textuais.

 

Referências Bibliográficas

 

FERNANDES, Millôr. Hai-Kais. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2000.

Franchetti, Paulo; Doi, Elza Taeko & Dantas, Luiz. Haikai. Campinas: Unicamp, 1996.

FRANCHETTI, Paulo. Disponível em: http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm. Acesso em: 28 out. 2005

MARCUSCHI, Luis Antonio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In. Gêneros

Textuais e ensino. (org.) BEZERRA, Maria Auxiliadora; DIONISIO, Ângela Paiva; MACHADO, Anna Rachel. 2. ed. Rio de Janeiro: Lucema, 2002.

NOVO DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira,1975

PAZ, Otávio. Disponível em: http://www.seabra.com/haikai

SEIXAS, Antonio. Disponível em: http://universodohaicai.vilabol.uol.com.br/pratica.html. Acesso em: 28 out. 2005

SWALES, J. M.  Genre analysis: english in academic and research settings. New York: Cambridge University Press, 1990

 

NOTAS

 

© Alunos do terceiro semestre da graduação em Letras Português (732), em trabalho para a disciplina de Português III, sob a orientação da profa. MS. Cristiane Fuzer.

 

 



[1] Disponível em: http://universodohaicai.vilabol.uol.com.br/definições.html.

[2] Verso ou estrofe inicial do renga.

[3] Escola de Teitoku (1571-1613).

[4]Escola de Sôin (1604-1682).

[5] Escola de Bashô.

[6] Disponível em: http://universodohaicai.vilabol.uol.com.br/pratica.html.

[7] Disponível em: http://universodohaicai.vilabol.uol.com.br/pratica.html.

[8] Disponível em: http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm

[9] Disponível em:http://www.seabra.com/haikai

[10] Disponível em: http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm

[11] Disponível em: http://www.unicamp.br/~franchet/lista.htm

[12] Disponível em: http://universodohaicai.vilabol.uol.com.br/pratica.html.