VIA DE ACESSO À ORALIDADE ROMANA

 

Brisolara, Oscar Luiz (FURG)

 

            Há uma dificuldade para o acesso à oralidade dos povos antigos, pois não havia os atuais processos eletrônicos de gravação e os estudos lingüísticos no que tange à descrição fonética dos sons e suas representações. Porém, o teatro popular é uma das fontes mais propícias para esse acesso.

            Este trabalho busca na obra de Tito Mácio Plauto, renomado dramaturgo romano, que viveu entre os séculos terceiro e segundo antes de Cristo, vestígios do discurso oral do povo romano no período era pré-clássico.

            A escolha de Plauto deve-se ao fato de ele ser de origem plebéia, dominando, portanto, o latim vulgar, que era o falar do povo simples da rua, em oposição ao latim clássico próprio da elite romana.

            Pertencia a uma família de atores e dedicou-se à composição de comédias, fazendo uma síntese entre a comédia grega e os elementos próprios da comédia nacional. Tinha um espírito voltado para o cômico que buscava o risível em tudo, até mesmo na sua própria condição individual. Numa fase de sua vida, dedicou-se ao comércio e faliu, tornando-se, de acordo com a legislação romana, escravo por dívidas. Essa situação serviu de temática para uma de suas obras Addictus, que significa escravo por dívidas. Plauto ri da condição que lhe é imposta, tocar a máquina de um moinho.

            Plauto dedicou-se inteiramente ao teatro como ator, autor e diretor. Escreveu para um público variado, mas predominam, em suas obras, os temas populares. Tomou o antigo teatro popular latino e mesclou-o com uma hilaridade surpreendente onde a comicidade era confiada a digressões, gracejos, chistes e diálogos engenhosos.

            O verdadeiro gênio de Plauto consiste em sua grande riqueza lingüística, uma vez que, em suas obras, desde o léxico do latim arcaico até os neologismos do grego, chegando ao extremamente popular, enriquecem a criatividade do autor. Não é um cômico que se dirige à plebe somente: recolhe do léxico característico da plebe e da sintaxe própria das classes menos privilegiadas o que há aí de criativo e cômico.

           

            A comédia selecionada para este trabalho é Amphitruo, em que há abundantes passagens com traços da oralidade romana. É az única obra do autor de fundo  mitológico. Plauto uma de uma estratégia narrativa para controlar os efeitos que a peça deveria causar no público. Aparece uma personagem fazendo o papel de Mercúrio e fala o seguinte para a platéia:

"Meu pai pediu-me para que vos peça um grande favor (...) é que apesar de ser um deus e saber que todos lhe obedecem, Júpiter também vos teme, tem m edo que se zanguem com ele e lhe atirem tomates à saída, por isso venho em missão de paz. (...) Nós temos feito tanto por vós e por vosso país..."

 

            O entrecho trata de uma artimanha de Júpiter, Deus supremo dos romanos para conquistar uma mulher, Alcmena. Júpiter, apaixonado pela esposa de um general, apresentada no texto  como Alcmena, faz com que o general declare guerra a um povo inimigo. Amphitruo, o general, parte para o campo de batalha.

            O deus metamorfoseia-se, então, no marido e Mercúrio, deus do vinho, transforma-se no guarda da casa Sósia, também ausente. A mulher, pensando tratar-se do verdadeiro marido que tivesse retornado da guerra, passa com Júpiter uma longa noite de amor. Como Júpiter é divindade, prolonga a noite até fartar-se da orgia.

            Mercúrio fica de guarda à porta da casa, assumindo a função de Sósia. Nesse ínterim, retorna Amphitruo, ordena  Sósia que o anuncie. O vigilante encontra à porta Mercúrio, um alter-ego de si próprio. A partir daí, surge uma série de inevitáveis equívocos.

            Anfitrião, descobrindo que está sendo traído por Alcmena, acusa-a de infidelidade. Vendo o perigo que ela corre, Júpiter ajuda-a desferindo um raio contra Anfitrião.

            Alcmena já estava grávida de Anfitrião e engravida também de Júpiter, vindo a dar à luz um casal de gêmeos. Um era humano, Hércules, pois fora resultado da fecundação de Júpiter; o outro, divino.

            Dessa obra, anfitrião passou aquele que bem recebe e sósia, o duplo de alguém. Até nossos dias, esta é a obra de Plauto mais apreciada e a mais imitada no teatro, no cinema e na literatura. O tema do marido enganado, a comicidade resultante  dos encontros e desencontros cênicos provocados por pares idênticos e o seu caráter de paródia mitológica continuam a ser apreciados pelo grande público e a fazer rir, tal como o autor pretendia que os romanos rissem das próprias divindades. É, portanto, obra de desmistificação de um poeta satírico e ateu.

            Moliére compõe uma excelente obra com a mesma temática. Inspirado na peça homônima de Plauto, o dramaturgo francês faz alusões mais ou menos óbvias aos casos do rei. Evoca a ascensão da burguesia que Luis XIV elevou aos primeiros postos do estado.

            O escopo do presente trabalho não é fazer uma biografia de Plauto, nem abordar sua importância dentro da literatura latina e mesmo da literatura universal, nem estabelecer laços de influência a obra do poeta latino sobre comediógrafos posteriores. O que me interessa aqui, na exigüidade do tempo de que disponho, é mostrar algumas expressões populares empregadas pelo autor em Anfitrião e demonstrar que algumas estão vivas na linguagem popular hodierna.

            Quando Sósia fica de guarda na noite  prolongada por Júpiter firma:

            - Neque ego hac nocte longiorem me vidisse censeo.

            A tradução livre dessa expressão é nunca vi uma noite mais longa do que essa. Ora, ver uma noite parece uma expressão da oralidade contemporânea. A figura ver uma noite é uma sinestesia.

            Quando Anfitrião ameaça Alcmena ela diz:

            - Afastare manus mei poteast...

            Ou seja, podes tirar as mãos de mim... Também nos parece expressão familiar. Isso nos leva a concluir que nossas expressões diárias que parecem ser características da linguagem atual têm suas raízes milenares nos laços da história e da língua.

            É ainda do mesmo livro a passagem a seguir:

            Amphitruo: Tum me, verbero, audes erum ludificari?

                        Tune id dicere audes, quod nemo umquam homo antehac

                        Vidit nec potest fieri, tempore uno

                        Homo idem duobus locis ut simul sit?

            Traduzindo:

                        Anfitrião: Como ousas, miserável, caçoar de mim, o teu senhor?

Tu ousas dizer que ninguém  jamais viu e pode acontecer que o mesmo homem esteja em dois lugares num só tempo?

 

A análise das ocorrências situadas no continuum de inerência sugere que,

quando a fonte de capacitação para a realização da ação ou situação codificada pelo verbo que co-ocorre com poder ou  posse é não-especificada, não localizada, ou simplesmente desconhecida, ou não-identificada, o sentido codificado é o da possibilidade de raiz.

            Ocorrências como a exemplificada acima são geralmente consideradas de raiz por pelo menos duas razões: em primeiro lugar, referem-se a circunstâncias relacionadas ao universo sócio-físico, e, em segundo, são, do ponto de vista da diacronia e do princípio da unidirecionalidade na mudança semântica, consideradas fundantes, na medida em que os sentidos e usos mais abstratos dos modais são considerados derivados dos sentidos relacionados dos sentidos relacionados ao universo sócio-físico, mais concretos.

            Assim, pode-se concluir previamente que o sentido e forma externa na situação atual da nossa língua estão ligados a um passado remotíssimo que nos é geralmente inacessível. Que o teatro popular é uma fonte rica para se ter uma visão, mesmo que parcial, da oralidade num período muito remoto da história.

            Também pelas figuras de linguagem presentes nos poucos exemplos que a exigüidade deste trabalho acarreta, leva-nos a concluir que a variante popular de um idioma, tida como menos culta, é riquíssima em artifícios lingüísticos, figuras e construções frasais, que corroboram com aqueles que afirma não existir variante lingüística inferior, que essas variantes são apenas diferentes.

 

 

Bibliografifa

Plauto. Anfitrião.10, Lisboa: Ed. 70, 1993.

BAYET, Jean, Literatura Latina. Barcelona: Ariel, 1996.

PARATORE, Ettore, História da Literatura Latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988.

ÁVILA, Norberto. Uma nuvem sobre a cama., 1ª Ed., Lisboa: Edições Colibri, 1997.