Aspectos sintáticos envolvidos na construção do texto falado:

uma proposta de ensino

Marlete Sandra Diedrich[1]

 

1 Considerações iniciais

 

            Quando procuramos relacionar os conceitos de oralidade e ensino, vislumbramos uma oportunidade muito produtiva para o trabalho com a língua materna em sala de aula, uma vez que a oralidade representa a manifestação lingüística que primeiramente se revelou na vida social de todo ser humano cujo desenvolvimento tenha sido normal. Isso nos leva a acreditar que as produções lingüísticas decorrentes da oralidade não podem ficar à margem do ensino de língua, pelo contrário, acreditamos que devem elas constituir parte importante do material de análise nas aulas de língua do ensino fundamental e médio.

 

            Por essa razão, buscamos, principalmente nos estudos da Análise da Conversação e em  trabalhos que procuram dar conta do processo de interação vivido pelos sujeitos, subsídios teóricos para a apresentação de uma proposta de ensino que tem como objeto de análise a língua enquanto fenômeno social, em toda a sua especificidade e heterogeneidade, resultado das situações reais de comunicação em que efetivamente é utilizada.

 

            O interesse por esse aspecto lingüístico deve-se, principalmente, ao fato de que, após atuar vários anos como professora de língua materna em turmas de ensino fundamental e médio, percebemos que nossos alunos não gostam das aulas de língua portuguesa porque elas realmente não abordam a complexidade do fenômeno lingüístico. Ao invés disso, sustentam-se, em geral, num caráter prescritivo que pouco efeito produtivo causa nos alunos, uma vez que dificilmente conseguem torná-los falantes ou leitores ou escritores melhores, pelo contrário, na maioria das vezes o caráter prescritivo dessas aulas leva o aluno a se “calar”, uma vez que a língua é apresentada na sala de aula como algo tão distante da sua realidade, como uma entidade artificial que, muitas vezes, parece ser composta apenas por frases soltas, desconexas, que nada dizem sobre quem quer que seja.

 

            Entre todos os níveis lingüísticos abordados pela escola, o sintático provavelmente tem recebido mais espaço nas aulas de língua. Sabemos que grande parte dos professores se sente realizada ao final de uma aula na qual a metalinguagem sintática tenha prevalecido: sujeito, predicado, objeto, adjunto, etc, com todas as suas subdivisões. Acreditamos que se possa sim trabalhar com a metalinguagem, mas não como tema central de nossas aulas, pois de nada adianta saber identificar um adjunto adverbial na frase e não perceber as diferenças de sentido que ele provoca no enunciado caso venha deslocado na estrutura frasal. Por essa razão, optamos por refletir acerca do ensino da sintaxe.

 

            E, sendo assim, o nosso trabalho se ocupa de algumas características sintáticas do texto falado, numa tentativa de mostrar para o aluno, em especial de ensino médio, que análise sintática é um trabalho interessante com a língua, desde que sejam levados em conta os efeitos que tais construções desencadeiam na situação de interação vivida pelo sujeito.

 

2 Uma fundamentação teórica para embasar o trabalho em sala de aula

            A língua precisa ser trabalhada em nossas salas de aula de ensino fundamental e médio como um organismo vivo, em funcionamento, dada a natureza da linguagem humana.  Sem dúvida, é em interação que usamos a linguagem. Nesse sentido, encontramos, numa perspectiva funcionalista, os trabalhos com a gramática, desenvolvidos no Brasil, em especial, por Maria Helena de Moura Neves (2004, p.111):

Ora, o homem fala porque tem, em primeiro lugar, a capacidade de produzir linguagem, isto é, uma competência lingüística, que é o poder falar, mas também porque tem o domínio de uma língua particular historicamente inserida, isto é, um saber, que é o conhecimento de um idioma, e, ainda, porque se encontra em uma dada situação de uso.

 

            Essa afirmação revela o quão indissociáveis encontram-se os conceitos de língua e linguagem, assim como os conceitos de texto e gramática, imbricados na construção de uma proposta comunicativa numa dada situação de uso. Tal análise nos leva a perceber, nos mais diversos atos comunicacionais vividos no dia-a-dia, desde o bom-dia ao padeiro até o discurso inflamado em sala de aula, que estamos sempre produzindo textos para satisfazer nossas necessidades comunicativas e que isso só é possível porque dominamos uma língua em particular. O domínio dessa língua, por sua vez, exigiu que conhecêssemos, enquanto usuários, sua gramática, a qual nos permite organizar uma frase com clareza, fazer retomadas no interior do próprio texto, dar continuidade à idéia apresentada pelo interlocutor num momento anterior à nossa fala, enfim, fazer a linguagem funcionar.

            A gramática de uma língua, segundo a autora (2004, p. 117), representa um sistema pertencente a todo falante nativo de uma língua, que lhe permite organizar os enunciados a partir de uma rápida ligação entre cognição e linguagem; e ainda mais, representa a competência do falante em avaliar suas escolhas no que diz respeito à adequação, à clareza em relação aos efeitos de sentido pretendidos para uma determinada situação interlocutiva.

 

            Defendemos nesse trabalho a idéia de que uma boa aula de língua portuguesa é caracterizada pela escolha de um bom texto, abrindo-se inclusive a possibilidade de que esse texto seja falado, e que, no seu desenvolvimento,  possa ser devidamente explorado levando-se em conta a situação de uso em que foi produzido e as intenções de quem o produziu. Para isso, refletir sobre as escolhas gramaticais realizadas na sua construção é fundamental.

            No caso do texto falado, sabemos que sua construção sintática difere do texto escrito, uma vez que representam produções realizadas em ndições diferenciadas entre si, apesar de muitas vezes poderem ser aproximadas. Por essa razão, buscamos na Análise da Conversação os subsídios para desenvolver a análise sintática do texto falado numa perspectiva de ensino.

           

Na concepção do texto falado, dois aspectos merecem destaque: a sua natureza explicitamente interacional e seu caráter essencialmente processual. Na verdade, qualquer texto é produzido por força de uma interação, seja ele escrito ou falado. Contudo, este último, por ser gerado, em princípio, numa situação em que os interlocutores se encontram face a face, tem nesta condição talvez o principal fator de sua identificação. O texto falado se constrói na ação colaborativa de interlocutores, na medida em que vão, na alternância de turnos, abordando tópicos tematicamente centrados.

 

Quanto ao outro aspecto, o texto falado é concebido fundamentalmente como um processo. Segundo Rath (1979, p.20), “pode-se verificar que, na língua falada, um texto consiste, em parte, na produção do texto como tal...”. Isso porque, do ponto de vista das condições de produção, o texto falado é resultante de dois procedimentos simultâneos: o planejamento e a formulação. Na realização da atividade comunicativa, o planejamento não é anterior à formulação. Na verdade, o falante, em geral, toma a palavra e segue falando sem ter muita clareza do destino de sua fala, o que só se definirá na seqüência dela, o que permite dizer que o planejamento de uma atividade comunicativa só se completa com a construção do enunciado concluída.

 

A simultaneidade com que se realizam as atividades de planejamento e de formulação provoca no texto uma série de marcas responsáveis pela caracterização específica de sua formulação: reinícios, pausas, alongamentos, reformulações,.... São essas marcas reveladoras do status nascendi do texto falado, o que o distingue do texto escrito, no qual, os traços do processo de construção são, em grande parte, apagados.

 

Sendo assim, as marcas típicas do texto falado merecem atenção, uma vez que indicam intenções e sentidos pretendidos pelo falante na sua relação interacional com o seu interlocutor. Infelizmente, o que a escola em geral tem feito é ignorar o texto falado. Elegeu, sim, o texto escrito como seu único objeto de estudo, o que é até compreensível, uma vez que a escola sempre teve uma tradição de escrita e seus fundamentos sempre foram ditados a partir de material escrito. Entretanto, se quisermos de fato trabalhar a língua em uso, o que me parece uma necessidade, precisamos, no contexto escolar, levar em conta também o texto falado.

 

Relacionar fala e escrita sob os parâmetros de pior/melhor, cuidada/descuidada revela uma proposta que não consegue atingir a língua em funcionamento, mas que continua trabalhando o ensino de língua numa perspectiva arbitrária e artificial, desvinculada das reais situações de comunicação vividas pelo sujeito.

 

Tentando mudar essa realidade, apoiamo-nos nos conceitos até aqui explicitados para apresentar algumas tentativas de ensino mais produtivas, que realmente possam explicitar ao aluno as escolhas gramaticais feitas pelo sujeito no momento da produção do texto como recursos lingüísticos disponíveis no seu idioma e ativados com o intuito de satisfazer uma proposta de comunicação, levando-se em conta a complexidade da interação e a influência das condições de produção.

 

3 Apresentação de uma proposta

            O que aqui descrevemos representa uma proposta pedagógica de ensino de língua centrado na análise de estruturas sintáticas vistas como recursos lingüísticos instauradores de efeitos de sentido no interior do texto, levando-se me conta a situação de interação pretendida pelo sujeito.

 

 Acreditamos que a escola tem o dever de trabalhar o texto falado enquanto texto organizado, coeso, coerente, desencadeador de efeitos de sentido. A proposta aqui apresentada é resultado de um projeto desenvolvido em uma turma do 2o. ano do Ensino Médio numa escola particular de Passo Fundo. É importante ressaltar que esses alunos chegaram ao 2º. ano desmotivados com as aulas de língua portuguesa e suas queixas em, geral se baseavam na seguinte constatação: “as aulas de língua portuguesa são sempre iguais”, “desde a 5ª. série vimos a mesma coisa”, “detesto língua portuguesa”, “isso não faz sentido”, “o livro didático é chato”,...

 

Como pensamos que língua é um fenômeno muito interessante e que analisar o seu uso é uma atividade fascinante, sentimo-nos na obrigação de tomar alguma atitude para mudar esse panorama a nós apresentado. Sendo assim, a proposta de uma aula de “contação de piadas” causou polêmica entre os alunos. Sem dúvida, muitos alunos relacionaram essa proposta com “matação de aula”, pois o que poderia haver de “conteúdo” numa aula em que eles só contariam piada?Na seqüência, explanamos um pouco do percurso metodológico aplicado.

 

No dia marcado, fomos para a sala de aula munidas de fita e gravador. Cada aluno deveria contar a piada por ele escolhida e nós gravaríamos. Temos consciência de que o fato de gravarmos a fala do aluno influenciou sua produção, a qual se revelou mais truncada, uma vez que ele estava preocupado com o registro que se faria. Entretanto, procuramos criar um clima de descontração a fim de garantir um alto grau de espontaneidade na produção do texto. Nem todos os alunos quiseram participar, então, numa turma de trinta alunos, obtivemos vinte textos falados. Desses vinte, escolhemos seis para serem efetivamente trabalhados como material de análise lingüística nas aulas que se ocupariam dos aspectos sintáticos estudados pelos alunos do 2º ano. Na escolha desses textos, levamos em conta, principalmente, a existência de construções sintáticas reveladoras de intenções argumentativas explícitas ou implícitas na situação de interação desenvolvida pelos sujeitos. Para cada um dos textos, foi proposto um encaminhamento de trabalho diferente. Para esse artigo, optamos por apresentar a análise desenvolvida com apenas um deles, a fim de melhor aprofundarmos os aspectos envolvidos.

 

Assim, temos, na seqüência, um texto falado produzido pelo aluno Renan na sua tentativa de interação com a turma e com a professora, por meio da “contação’ de um piada.

 

tinha um...o cara tava desconfiado que a mulher dele traía ele quando ele ia trabalhar daí ele chegou no trabalho ligou pra mulher dele/ ligou pra casa dele né daí atendeu a empregada e ele pediu: -Má quem é que é?  Ela falou: - É a empregada.  – Mas eu não tenho empregada.

-Não, é que eu comecei hooje. –Tá, tudo bem, então. Mas fala lá que eu quero falá com a tua patroa. Chama ela.  Daí ela/a empregada falou: - Mas ela tá no quarto com o namorado. Daí ele falou assim:-Então, se tu qué ganhá mil reais, tu vai lá e mata os dois. Daí ela foi lá matou os dois e voltou pro telefone daí ela assim: - O que que eu faço com os corpos?  - Ah! Joga na piscina.  Daí ela: - Mas essa casa não tem piscina.   – Ah! Desculpe, foi engano.

 

            A construção deste texto se encarrega de deixar no seu interior marcas do seu planejamento, uma característica do texto falado. Isso nos permite fazer uma análise das intenções comunicativas que motivaram o produtor a agir de determinado modo.

 

Ao iniciar sua narrativa, ele abandona uma estrutura sintática recém iniciada e reinicia seu texto com outra construção: tinha um... o cara tava desconfiado... Esse fato é revelador da simultaneidade que há entre planejamento e construção do texto falado: o que foi dito não pode ser apagado, mas pode ser abandonado, fato esse que não acontece, obviamente, com o texto escrito. Essa questão, a qual parece tão simples, é responsável por uma perspectiva de análise textual bastante importante: a organização do texto falado não pode ser simplesmente comparada à do texto escrito em termos de adequada ou inadequada, melhor ou pior. Elas representam naturezas sintáticas diferentes, tendo em vista as condições de produção diferenciadas. Logo, a sintaxe do texto falado é marcada por estruturas interrompidas, reiniciadas e abandonadas.

 

Ao abordar esse fato com os alunos do ensino médio, procuramos discutir com eles a intenção revelada nesta interrupção, surgindo argumentos bastante interessantes que davam conta da situação interacional vivida pelo falante: nervosismo, pressão, medo, preocupação em se fazer entender,...

 

            Ao investir na coesão de seu texto, o falante faz uso do elemento “daí”, típico de construções narrativas orais. Sem dúvida, a escola tradicional sempre viu esse marcador como revelador de uma má estruturação textual. Entretanto, ele é responsável pela organização da seqüência narrativa do texto, uma vez que marca a introdução de novos fatos a serem narrados e, ao mesmo tempo, garante a sua relação de continuidade. Os alunos reconheceram que essa expressão está muito presente na organização do texto falado e que, portanto, só poderia estar desempenhando alguma função.

 

            O uso repetitivo do pronome “ele” indica um processo de referenciação bastante interessante: ao contrário do texto escrito, a posição sintática marcada pelo elemento é muito mais comum do que elipse. Isso revela uma consciência do falante em relação à estrutura sintática de seu texto, porque, mesmo na elipse, o que ocorre é um apagamento do elemento. Assim, na construção do texto falado – simultânea ao seu planejamento – o falante não chega a se dar conta da possibilidade de fazer esse apagamento, porque está ocupado em construir a estrutura sintática, a qual simultaneamente é revelada ao seu interlocutor.

 

            Assim como a repetição, a correção desempenha papel interessante na construção sintática, uma vez que se encarrega de deixar marcas da consciência lingüística que o produtor do texto tem acerca da sua elaboração. Quando diz: “fala lá que eu quero falá com a tua patroa. Chama ela.  Daí ela/a empregada falou” executa uma correção, substituindo “ela” por um sintagma com sentido mais restrito: “a empregada”. Isso porque percebeu a ambigüidade de sua construção sintática, já que o pronome “ela” só poderia retomar, na seqüência do texto, o sintagma “a patroa”, referido anteriormente. Como havia mudado o sujeito no texto, o falante deu-se conta da necessidade de explicitar a quem se referia o pronome “ela”, corrigindo sua própria fala.

 

            Todos esses aspectos foram abordados junto aos alunos e todos, sem exceção, demonstraram entender os fenômenos apontados e serem capazes de refletir acerca da sua realização. O projeto teve continuidade com a exploração dos outros textos, marcados por aspectos diferenciados, mas por intenções muito próximas.

 

Considerações finais

            Sem dúvida, a experiência aqui relatada representa um passo muito pequeno na busca de um redimensionamento da prática pedagógica nas aulas de língua materna. Entretanto, aos nossos olhos, parece apresentar o essencial, aquilo que não pode faltar: um embasamento teórico sólido que dê suporte às ações do professor enquanto provocador da análise lingüística em sala de aula.

 

            Afirmamos isso porque no centro da proposta encontra-se o texto como produto de uma situação de interação verbal, marcado pelas condições de sua produção. Logo, o trabalho consegue atingir seu principal objetivo: levar o aluno a refletir acerca do uso lingüístico.

 

Referências bibliográficas

BENVENISTE, Emile. Problemas da lingüística. São Paulo: Nacional. 1976.

DIEDRICH, Marlete Sandra. O texto falado da criança. Passo Fundo:UPF, 2001.

FIORIN, José Luiz. Introdução à Lingüística. Objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.

MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Ana C. Introdução à lingüística: domínios e fronteiras, V.1 e 2. São Paulo: Cortez. 2001.

NEVES, Maria Helena de Moura. Que gramática estudar na escola? São Paulo: Contexto, 2004.

 



[1] Mestre em Lingüística Aplicada pela PUC/RS, professora de Lingüística e Prática de Ensino da Universidade de Passo Fundo, professora de Língua Portuguesa no Ensino Médio do Colégio Marista Conceição em Passo Fundo.