IV SENALE – SEMINÁRIO NACIONAL SOBRE LINGUAGEM E ENSINO

 

ORALIDADE E ENSINO: QUESTÕES E PERSPECTIVAS

 

 

Cultura e oralidade

    

              Mariza Vieira da Silva

Universidade Católica de Brasília

 

Foi de incerta feita – o evento. Assim, começa um conto de Guimarães Rosa, intitulado Famigerado(2001). Assim, também, gostaria de começar essa apresentação trazendo esse evento, esse acontecimento discursivo, para refletir um pouco sobre  o tema proposto: cultura e oralidade, pensando a cultura no interior de uma sociedade de escrita, urbana, como a nossa.

E que evento, de incerta feita, é esse de que nos fala um narrador-personagem, um sujeito letrado que vivia em um arraial no interior das Minas Gerais? O da chegada em sua casa de um homem que, segundo o narrador, só poderia ser um brabo sertanejo, jagunço até na escuma do bofe, seguido por outros três homens, tudo, num relance, insolitíssimo. E que o deixou nervoso, pois o cavaleiro esse – o oh-homem-oh – com cara de nenhum amigo. Sei o que é influência de fisionomia. Saíra e viera, aquele homem, para morrer em guerra. E ele, o homem letrado, como diz, não tinha arma ao alcance. Tivesse, também, não adiantava. Com um pingo no i, ele me dissolvia.

Mas o quê esse homem tão temido queria? Eu vim preguntar a vosmecê uma opinião sua explicada? Começou o jagunço com o semblante carregado que, aos poucos foi se desfazendo, descendo do cavalo de modo imprevisto, se por bons modos ou esperteza, se perguntou o narrador. Um homem letrado que não se cansa de dizer da ferocidade de seu adversário, um adversário à altura de um combate entre fortes:

 

Seria de ver-se: estava em armas – e de armas alimpadas. Dava para se sentir o peso da de fogo, no cinturão, que usado baixo, para ela estar-se já ao nível justo, ademão, tanto que ele se persistia de braço direito pendido, pronto meneável. Sendo a sela, de nota-se, uma jereba papuda urucuiana, pouco de se achar, na região, pelo menos de tão boa feitura. . Tudo de gente brava. Aquele propunha sangue, em suas tenções. Pequeno, mas duro, grossudo, tudo em tronco de árvore. Sua máxima violência podia ser para cada momento. (p.58)

 

Alguém de quem todos na região já ouvira falar: Damázio, com dezenas de carregadas mortes, homem perigosíssimo, que começa então a dizer de sua vinda e da “opinião explicada” de que carecia:

- Saiba vosmecê que, na Serra, por o ultimamente, se compareceu um moço do Governo, rapaz meio estrondoso... Saiba que estou com ele à revelia... Cá eu não quero questão com o Governo, não estou em saúde nem idade... O rapaz, muitos acham que ele é de seu tanto esmiolado... (p.58)

 

Um dito que se interrompe para o irromper de um dizer de gestos, olhares e silêncios, como se preparando para uma batalha, para um enfrentamento desigual, mas também para um desnudamento, para um expor-se ao outro, ou melhor, para expor-se à fala do outro. Práticas de linguagem distintas, em que o corpo e a voz, a cena enunciativa, enquanto espaços simbólicos de inscrição de saberes de várias ordens, configuram outros gestos de interpretação, em que se tem não apenas conteúdos distintos, mas sentidos que se constituem no que institui a própria diferença, que marcam posições sujeito distintas. O que ali presenciamos é o trabalho de uma memória confrontada com outra, em que se dá um trabalho de significação de sujeitos e sentidos em um jogo de identidades, a partir do olhar do outro; o funcionamento do equívoco na relação sujeito-língua-história.

 

Encarar não me encarava, só se fito à meia esguelha. Latejava-lhe um orgulho indeciso. Redigiu seu monologar.

O que frouxo falava: de outras, diversas pessoas e coisas, da Serra, do São Ao, travados assuntos, inseqüentes, como dificultação. Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios. Assim no fechar-se com o jogo, sonso, no me iludir, ele enigmava. (p.59)

 

 

Nesse espaço de indistinção, de enigmação do sujeito, de sentidos que teimam em não se dobrar ao outro, em fechar-se, sai, de supetão, em uma bonita dança do significante, deslizando, meta-forizando o encontro-ruptura da oralidade-escrita, capturada pela escritura de Rosa; mostrando, nas disjunções e aglutinações, o funcionamento da história e memória, um discurso duplo e uno, que revela o irrevelado no próprio texto que diz, e remete-o a um outro texto, que marca sua presença por uma ausência necessária, evidenciando a exposição do sujeito à historicidade na sua relação com o simbólico da linguagem.

 

- Voscemecê agora me faça a boa obra de querer me ensinar o que é mesmo que é: fasmigerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado...?

 

Onde parece se dar o que Pêcheux (1999) vê como um jogo da memória, sob o choque do acontecimento, ou ainda, sob o “mesmo” da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva. Uma espécie de repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase. (p.53).

Então, era isso que o homem tão perigoso e temido queria saber: o significado de uma palavra, um significado que só um sujeito letrado pode dar. Estava exposto o seu ponto fraco.

 

Disse de golpe, trazia entre dentes aquela frase. Soara com riso seco. Mas, o gesto, que se seguiu, imperava-se de toda rudez primitiva, de sua presença dilatada. Detinha minha resposta, não queria que eu a desse de imediato. E já aí outro susto vertiginoso suspendia-me: alguém podia ter feito intriga, invencionice de atribuir-me a palavra de ofensa àquele homem; que, muito, pois, que ali ele se famanasse, vindo para exigir-me rosto a rosto, o fatal, a vexatória satisfação. (p.59)

 

Mas a fala do jagunço que se segue lhe dá uma entrada para situar-se, tranqüilizando-o e dando-lhe oportunidade de recobrar o domínio sobre si e sobre a situação.

 

- Saiba vosmecê que sái ind’hoje da Serra, que vim, sem parar, essas seis léguas, expresso direto pra mor de lhe preguntar a pregunta, pelo claro...

- Lá, e por estes meios de caminho, tem nenhum ninguém ciente, nem têm o legítimo – o livro que aprende as palavras... É gente pra informação torta, por se fingirem de menos ignorâncias... Só se o padre, no São Ão, capaz, mas com padres não me dou: eles logo engambelam... A bem. Agora, se me faz mercê, vosmecê me fale, no pau da peroba, no aperfeiçoado: o que é que é, o que já lhe preguntei? (p.59)

Ao que o narrador – um sujeito letrado – responde, face as duas possibilidades existentes para o termo, aquele que lhe convém diante de um outro tão ameaçador, mas enfraquecido diante daquela dúvida, fatal e letal, que só aquele que freqüenta o espaço-tempo da escrita, de seu saber-poder, pode tirar. Resposta que é transmitida aos três homens que o acompanham. Sorri, relaxa, aceita o copo d’água que lhe fora anteriormente oferecida, e significa a escrita, a escola, o ensino como coisa de macho ao dizer: Não há como que as grandezas machas de uma pessoa instruída.

Mas, nem tudo terminou. A dúvida persiste, vinda de um outro espaço de memória, no modo que encerra um enfrentamento em que de certo modo, ele saíra perdendo: Sei lá, às vezes o melhor mesmo, para esse moço do Governo, era ir-se embora, sei não...

Observamos, então, o funcionamento de uma dupla inscrição do sujeito em memórias discursivas distintas, em que se submete ao discurso do Outro – da Escrita - pela fala do outro, seu semelhante e, ao mesmo tempo, não perde sua autonomia pensante e crítica face ao acesso, domínio e controle de determinados referentes. É a absorção da diversidade em uma unidade imaginária em funcionamento.

Nessa duplicidade, em que língua e história se ligam pelo equívoco, neste evento, de incerta feita, como diz Rosa, é que podemos observar o funcionamento da interpretação, da ideologia, constituindo sentidos e posições de sujeito, na perspectiva do histórico, da relação língua/discurso. E podemos falar que uma cultura da oralidade - um discurso - é constitutiva do sujeito e do sentido, ao mesmo tempo, que torna possíveis determinados gestos de interpretação. E é deste lugar que o sujeito resiste ao efeito de evidência que o discurso do outro produz, sustentado pelos sentidos institucionalizados em um instrumento do saber metalingüístico como o dicionário; um efeito ideológico que naturaliza os sentidos, apagando todo o seu processo de constituição. Para a Análise de Discurso, o que está em questão não é, pois, a falta de conhecimento do jagunço, mas a compreensão dessa saturação, desse efeito de completude que a escrita produz, desse efeito de sentido único e verdadeiro.

Neste conto de Rosa, ele consegue capturar os diferentes gestos de leitura, de interpretação do sujeito inscrito na cultura da escrita ou na cultura oralidade, que em se tratando do Brasil remete a memórias discursivas de línguas de escrita e línguas de oralidade, como atos simbólicos de intervenção no mundo, no real do sentido, como práticas discursivas, com suas conseqüências.

Conseqüências marcadas pelo enfrentamento de duas posições de sujeito, em que importa não quem venceu, mesmo porque o final do conto deixa isso em aberto, mas compreender essas filiações históricas, tomadas em redes de memória, de forma a pensar, na escola, o outro, nosso aluno, não apenas como semelhante, mas como submetido ao  Outro nas sociedades e na história, criando possibilidades de interlocução, de identificação, de transferência, de uma relação de interpretação, de aprendizagem.

Trata-se de pensar na constituição de um jogo identitário entre brasileiros que refere o sujeito à língua escrita tomada como língua nacional: um sujeito afetado em sua identidade pela língua escrita. A identidade é um movimento na história (e na relação com o social), diz Orlandi (1996)

Neste acontecimento discursivo, que estamos analisando, não há identificação entre os sujeitos, as posições se movimentam como em um jogo em que se busca os menores sinais do outro para movimentar as pedras em determinada direção; o que temos são adversários, sentidos que não se recobrem.

Temos aí uma cena enunciativa que produz formas de individualização do sujeito na tensão e movimento da paráfrase e da polissemia e sentidos que, sustentados por uma literalidade imaginária marcam e delimitam territórios de linguagem logicamente estabilizados para um sujeito pragmático habitar. As palavras separam-se das coisas e dos homens e ganham independência, e transformam-se em coisas-a-saber por esse sujeito pragmático, que deverá gerir os acontecimentos através de uma escrita autônoma, permanente e perene, em oposição a uma oralidade fluida, ambígua e presa a uma cena enunciativa também determinada historicamente. Uma nova ponte com o real da língua e o real da história se cria no imaginário. (Pêcheux, 1990a)

A escrita, em geral, e a escrita alfabética, em particular, instalam uma relação específica dos indivíduos de uma sociedade dada com a linguagem e com a língua falada, marcada por uma separação do sujeito já-falante com a língua que o fez falante. É possível, então, a existência de um sujeito autônomo, pensante, consciente em relação a sua língua materna e às línguas em geral, e de um objeto também autônomo, a ser conhecido. Do interior dessa metalíngua (imaginária), o sujeito brasileiro – letrado ou não – significa e faz funcionar de uma maneira específica o homem e o mundo, em um espaço-tempo físico e cronológico, onde se estabelecem relações, públicas e privadas, mediadas pela letra.

Como analista, seguindo Orlandi (1996), objetivo, então, determinar que gestos de interpretação como inscrição do sujeito em um saber, em uma memória discursiva (o que os sujeitos do conto fazem) trabalham aquela discursividade que é objeto de compreensão, no caso, a relação entre o discurso da oralidade e o discurso da escrita em uma cultura letrada. A submissão à palavra escrita se faz sobre a interdição à interpretação. Mas, diferentemente do deslocamento produzido na Idade Média sobre a determinação do sujeito religioso e a interpelação do sujeito moderno, ou seja, da passagem de uma submissão do homem a Deus e à Letra sagrada à submissão do homem ao Estado e às letras de seu ordenamento jurídico, agora, o deslocamento se dá no interior do campo das letras, em um confronto estratégico em um só mundo, no terreno de uma só língua... (Pêcheux, 1990, p. 11), tornado possível pelo acesso e domínio de uma conhecimento sobre a língua institucionalizado em um dicionário.

Esta barreira invisível separa esses dois brasileiros: as mesmas palavras, expressões e enunciados de uma mesma língua, não têm o mesmo sentido. Famigerado: espaço da artimanha e da linguagem dupla, onde um bom entendedor encontra sempre sua salvação. Famigerado. fasmigerado... faz-me-gerado... falmisgeraldo... familhas-gerado. Uma luta sem sangue e morte. Conflitos e confrontos sob a aparência de paz social.  (Pêcheux, 1990)

Esse deslocamento, contudo, não deixa o sujeito da oralidade colado à palavra escrita e ao sentido que ali se produz, pois, ainda estamos no campo da linguagem, do simbólico, em que a completude não se produz e a opacidade é constitutiva. A aderência não é completa, há espaços para a resistência: abaixar a cabeça, titubear em dizer, silenciar, não compreender, responder só o esperado, interromper. Como pensar na construção de outras referências, na invenção de espaços simbólicos a partir desses equívocos que valorizem as semelhanças e as diferenças, que estabeleçam cumplicidade na transgressão em relação à interdição que a escrita produz? Como não deixar o nosso aluno prisioneiro da necessidade? Como trabalhar esses espaços de indistinção, de dúvidas, de enigmação?

O que liga o sujeito com a interpretação, o que produz a evidência do sentido pelo apagamento de uma filiação, de uma memória é a existência de um saber metalingüístico – o livro que aprende as palavras -, que é posse de alguns poucos no Brasil, como revela o conto de Rosa. Posse de um bem simbólico cuja função é obturar as brechas de uma diferença e de uma desigualdade (históricas), resultantes de políticas de línguas implementadas ao longo de nossa história.

 

 

Referências Bibliográficas

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

PÊCHEUX, M, ACHARD, P, DAVALLON, J, DURAND J-L e ORLANDI, E.P. Papel da memória. Tradução e introdução de José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 1999.

PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, deslocamentos. Traduzido por José Horta Nunes. In: Cadernos de Estudos Lingüísticos nº 19. Campinas/SP: IEL/UNICAMP, jul.-dez., 1990, pp. 7-24.

PÊCHEUX, M. O discurso: estrutura ou acontecimento. Traduzido por Eni P. Orlandi. Campinas/SP: Pontes, 1990a.

ROSA, J. G. Famigerado. In: Primeiras Estórias. Rio: Nova Fronteira, 2001.