Oralidade e escrita: história e memória

 

                     

Mariza Vieira da Silva

Universidade Católica de Brasília

 

 

Ao longo de minha vida profissional, tendo passado por diferentes instituições – escolas de ensino fundamental e de ensino médio, universidades, ministério da educação -, como professora, pesquisadora, técnica em assuntos educacionais -, uma preocupação constante marcou o desenvolvimento de minhas atividades: buscar compreender e trabalhar as relações entre linguagem, educação e sociedade em geral e, mais especificamente, as relações entre língua, escola e Estado, em seus desdobramentos lingüísticos e pedagógicos, mas também sociais e políticos.

Tendo como ancoragem as referências construídas nesta trajetória, é que me debrucei sobre o tema deste IV SENALE: “oralidade e ensino”, da perspectiva discursiva, lugar teórico em que me situo. E tomei-o, pois, como um acontecimento discursivo que nos remete a um conteúdo lingüístico-pedagógico transparente, conhecido de todos aqui presentes - uma evidência - e, ao mesmo tempo, profundamente opaco, considerando a existência de inúmeras formulações existentes nos campos da lingüística e da pedagogia, por exemplo, anteriores a este evento.

Se essa transparência produz o efeito de consenso, da possibilidade de nos entendermos, a opacidade (marcada pelas palavras de desdobramento do tema: “questões e perspectivas”), por outro lado, sugere não se tratar de um tema estável – ou já estabilizado -, mas que funciona sob diferentes perspectivas teóricas e metodológicas. Os objetos de conhecimento, oralidade e ensino, não têm, pois, independência, autonomia, face aos discursos que falam sobre eles. 

Entrando neste movimento e jogo da língua, pelo que é enunciado no tema deste evento, é que gostaria de pontuar algumas questões, de uma perspectiva histórica, lembrando com Pêcheux (1990, p.55) que as coisas-a-saber coexistem assim com objetos a propósito dos quais ninguém pode estar seguro de “saber do que se fala”, porque esses objetos estão inscritos em filiação e não são o produto de uma aprendizagem ... Essa filiação é histórica, organizada em memórias, que se materializam em redes de significantes que estruturam o sujeito e as relações sociais. Isso implica em se tomar a discursividade presente neste enunciado – “oralidade e ensino: questões e perspectivas” -, enquanto inscrição dos efeitos lingüísticos materiais na história, como acontecimento (e não só como estrutura), como um gesto de interpretação, enquanto ato simbólico de tomada de posição (Orlandi, 1996).

            Nesse sentido, busco, nesta palestra, refletir sobre as relações que se estabelecem entre sujeito, língua e história na questão da oralidade e ensino, a partir de trabalhos de pesquisa que venho desenvolvendo, tomando como corpus diferentes textualidades construídas ao longo da história da escolarização da língua nacional no Brasil, em que o tempo cronológico não se confunde com tempo discursivo.

No Brasil, o estatuto de homem, de civilizado, de cidadão, constrói-se na articulação do lingüístico, do pedagógico e do político, em diferentes momentos históricos de nosso processo de escolarização e de pedagogização do conhecimento “da” e “sobre” as línguas do Brasil. Para tanto, contribui de forma decisiva a gramatização (Auroux, 1992) dessas línguas, que as instrumentaliza, em um primeiro momento, para o trabalho de exploração do Novo Mundo e de seus habitantes e, posteriormente, para a construção de uma Nação una e de um Estado nacional.

Há, pois, uma forma-sujeito específica que se constitui juntamente com o discurso da colonização. Do conflito e confronto iniciais, fundadores de um discurso, o da colonização brasileira, entre histórias e línguas de oralidade e línguas de escrita, produz-se também um discurso pedagógico e formações imaginárias sobre os interlocutores – alunos e professores - e o referente – língua a ser ensinada -, que colocam em funcionamento uma contradição – barbárie x civilização –, que não cessa de produzir seus efeitos. Esse discurso pedagógico materializa o contato entre o lingüístico e o ideológico, entendido como divisão de sentidos, sendo este (discurso) um dos mecanismos que irá produzir e manter as diferenças necessárias ao funcionamento das relações sociais de produção de uma sociedade, inicialmente, dividida entre colonizador e colonizado e, posteriormente, entre brasileiros letrados e brasileiros não–letrados. (Silva, 2002)

Nesse movimento de discursivização das relações e das instituições em um mundo radicalmente distinto daquele do colonizador, mediado pela instituição escolar e estruturado pelo binômio conversão-língua, rompem-se fronteiras visíveis que marcavam o contato do velho e do novo mundos e estabelecem-se novas fronteiras, agora, invisíveis, aparentemente unificadas em uma mesma língua a ser ensinada e aprendida por todos. Posições de sujeito (contraditórias) também se constituem neste novo espaço discursivo e comunicativo das terras dos brasis, para o colonizado, mas também para o colonizador, pois a língua portuguesa, uma vez em solo brasileiro, já significa diferentemente, já produz outros efeitos de sentido. (Silva, 1998)

Guimarães (2004), em seu texto “Enunciação e política de línguas no Brasil” (2004), afirma que as línguas são afetadas, no seu funcionamento, por condições históricas específicas. E trazendo o conceito de espaço de enunciação por ele formulado (2002), prossegue em sua formulação:

 

Para mim, as línguas funcionam segundo o modo de distribuição para seus falantes. Ou seja, línguas não são objetos abstratos que um conjunto de pessoas em algum momento decide usar. Ao contrário, são objetos históricos e estão sempre relacionadas inseparavelmente daqueles que as falam. Não há língua portuguesa, sem falantes desta língua, e não é possível pensar a existência de pessoas sem saber que elas falam tal língua e de tal modo. É por isso que as línguas são elementos fortes no processo de identificação social dos grupos humanos. O espaço de enunciação é que atribui as línguas para seus falantes. E cada espaço de enunciação tem uma regulação específica, ou seja, distribui as línguas em relação de um modo particular. (p. 1-2)

           

E conclui:

 

Esta distribuição das línguas para seus falantes é sempre desigual. E este modo de distribuição é elemento decisivo do funcionamento de todas as línguas relacionadas. Se temos, por exemplo, num certo espaço de enunciação, diversas línguas maternas e uma língua nacional, elas tomam seus falantes cada uma a seu modo. O espaço de enunciação é assim político.

 

Estamos, pois, buscando trabalhar um enunciado de hoje – o tema de um seminário que se realiza em uma universidade determinada – em sua articulação com a história da língua, do saber produzido sobre a língua e de seu ensino. Como significar esse “e” que conecta oralidade e ensino? Mera adição? Que paráfrases poderiam daí advir, mobilizando outros sentidos, outras filiações discursivas, históricas? O que designamos por oralidade? Que referente (imaginário) é este? O ensino da oralidade na escola? Ensino da língua portuguesa na escola? A oral e/ou a escrita? É possível falar em oralidade sem falar em escrita em uma sociedade como a nossa, uma sociedade letrada? Como se dá o processo de escrita e de produção de saber sobre as línguas do Brasil?

Tomando essas questões (e muitas outras que possam ser formuladas por qualquer um familiarizado com o tema de longa data), observamos no deslizamento de significantes como um objeto simbólico produz sentido: oralidade, escrita, linguagem oral, língua oral, língua escrita, língua do povo, criatividade, marca de cultura; ou ainda, ensino, escola, ensino de língua, ensino da oralidade na escola, fracasso escolar...

Esse deslizamento que Pêcheux (1990a) chama de efeito metafórico, próprio da ordem do simbólico, mostra o funcionamento da história, da ideologia, da interpretação, evidenciando que ali - no tema deste evento – temos o produto de uma rede de significantes que produz uma memória. Memória em que o mesmo e o diferente caminham lado a lado, mas que também se sobrepõem. Não se trata apenas de uma mensagem a ser decodificada. São efeitos de sentido que são produzidos em determinadas condições enunciativas, que mostram que os sentidos não estão nas palavras, nos textos, mas nas relações com a exterioridade, com suas condições de produção. Trazem uma memória.  Pêcheux (1990) ainda nos lembra que todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro (p.53).

Há, pois, em um discurso outros discursos presentes pela ausência. Língua e história estão aí ligadas pelo equívoco. Como analista de discurso, interessa-me compreender as relações entre o real da língua e o real da história aí implicados, considerando a oralidade e a escrita como elementos constitutivos da história de uma língua e sujeitas a diferentes formas de significar ou de representar a relação do homem com a linguagem.

Mas, se estamos pensando neste evento e em sua temática, como um acontecimento, como compreendê-los não só no espaço de memória que ele convoca, mas também no de atualidade. Como a oralidade entra na ordem do dia no ensino, na escola no século XX? Quando? Para quê? E qual oralidade? Orlandi (2004), falando da escrita na história da sociedade brasileira, diz que:

Convivemos com essa duplicidade: a de uma oralidade (a da Língua Geral, dominante no séc. XVII, que não passou (devido à interdição) a uma escrita, e a oralidade do português brasileiro (diferente do português europeu) falada já em todo o país e que passou para uma escrita legitimada. (p. 114)

Legitimar nossa escrita significou não simplesmente transcrever nossa oralidade, mas criar nossa metaforização da letra. Transferimos nossa produção oral por um elaborado processo de escrita em que a gramatização de um lado, mas nossa urbanização de outro, nos dava foros de civilidade bem construída sobre aparatos institucionais do Estado que se fizeram presentes a partir da independência. (p.115)

 

Prossigamos. Como estamos trabalhando com história, com memória discursiva e não cronológica esse ir-e-vir é constitutivo de uma escrita em análise de discurso em um trabalho como esse que busca compreender certas questões que são comumente apagadas pelo discurso pedagógico. O que mobiliza esse retorno constante ao passado, que fazemos aqui, é o presente em que observo, pela análise discursiva de determinadas formulações ou pela circulação de outras tantas, a força de um imaginário e de posições de sujeito contraditórias no cotidiano das práticas escolares e da formulação e implementação de políticas e de programas e projetos educacionais e lingüísticos.

Havíamos nos perguntado, pensando no presente do século XX, como, quando, para quê a oralidade entra na ordem do dia no ensino, na escola?

Podemos começar a responder dizendo que embora a tarefa da escola, grosso modo, tenha sido sempre a de ensinar a falar e escrever corretamente, observamos que a partir da década de 70 do século passado a questão de ensinar a “falar” e a “ouvir” começa a ganhar visibilidade nas propostas curriculares, nos livros didáticos, nas políticas públicas de escolarização da língua nacional, nas linhas de pesquisa. O que significa que há um deslocamento na constituição da disciplina língua portuguesa marcado por uma história das idéias lingüísticas e de sua escolarização.

Uma disciplina, conforme Foucault (1996), constitui-se em um dos procedimentos internos de controle, de seleção, de organização e distribuição do discurso em uma sociedade dada, que coloca em jogo o poder, estabelecendo e fixando limites em determinado espaço-tempo para o verdadeiro em um campo de conhecimentos. Para ele, a disciplina, enquanto condição para a construção de novos enunciados se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos... (p.30).

A disciplina constrói um campo de enunciação, com uma regulação e funcionamento específicos, pela discursivização dos conhecimentos a partir de determinadas formações discursivas: aquilo que em uma formação ideológica dada – ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que pode e deve ser dito (Pêcheux: 1988), no caso, sobre determinado campo de conhecimento. Esse espaço de enunciação distribui, pois, os conhecimentos de um modo particular. E essas configurações específicas dos discursos em suas relações com outros discursos e com o conhecimento irão se dar em relação à história e à memória: das línguas, do conhecimento sobre elas produzido, das instituições, mas também do sujeito que ensina e que aprende.

De acordo com Chiss e Puech (1999), o ponto de vista disciplinar caracteriza-se em relação a um antes – em que se inscreve a novidade teórica -, a um depois – para o qual tende o objeto teórico -, a uma sincronia e às exigências de transmissibilidade. Há, pois, uma dupla inscrição a compreender: a da produção e a da transmissão implicadas nesse processo de disciplinarização, que se produz em um continuum de discursos, em que se homogeiniza e estratifica o objeto de conhecimento e constroem-se representações (imaginárias) sobre a língua e sobre os saberes sobre ela produzidos.

Não há, pois, oposição entre conhecimentos científicos e conhecimentos escolarizados, mas relações de complementaridade de um movimento contraditório entre saber e poder, em que a disciplinarização dá uma visibilidade institucional às ciências da linguagem, tornando-as socialmente úteis. Colocando também em questão a extensão e os limites das teorias da linguagem no seio de uma sociedade, a relação entre a língua e o sujeito, bem como as relações entre teorias lingüísticas, ensino de uma língua nacional e funcionamento da escola.

Década de 1970: um marco cronológico, conforme veremos, mas também, um acontecimento discursivo que faz retornar, de forma deslocada, certas questões relativas à diversidade lingüística e, conseqüentemente, a sua contraparte necessária, a unidade lingüística. Não há Estado sem unidade, mesmo que imaginária. Mas, o que significará a entrada em cena da diversidade, das variedades pela via do falar e ouvir inicialmente, e da oralidade, posteriormente? Lançaria uma hipótese. Em momento crucial do desenvolvimento do capitalismo, da divisão do trabalho e de avanço das classes populares e, conseqüente, re-ordenamento social e político, as preocupações com a oralidade se dão como uma forma de manutenção da unidade, em que se busca deslocar os limites da identidade coletiva, absorvendo de um outro lugar as diferenças.

Para essa palestra, no sentido de avançarmos no trabalho com essa hipótese, fiz um recorte em um corpus que estou analisando para compreender o processo de disciplinarização da lingüística no ensino da língua portuguesa, enquanto parte do projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil. Um recorte que incidiu sobre livros didáticos de 5ª a 8ª séries de uma mesma autora, que foram produzidos nas últimas quatro décadas do século XX: 1960, 1970, 1980, 1990. Aqui vou trazer apenas recortes de livros da 5ª série das três primeiras coleções e trabalhar apenas com a estrutura de cada capítulo dos referidos livros.

Na primeira coleção, da década de 1960, quando ainda tínhamos o curso ginasial, uma aula de português compreendia, de acordo com o livro didático (Soares: 1968)

 

Na coleção de 1970, que estou considerando um momento crucial para o ensino de língua portuguesa, em outro contexto histórico, social e político, assim como lingüístico e pedagógico, a estrutura do livro modifica-se completamente e cada capítulo não tem uma estrutura fixa. O sumário pode nos dar uma indicação dessa mudança que produz efeitos em relação à língua portuguesa e ao seu ensino: de novidade, de ruptura, de democratização da escola, efeitos ideológicos.

 

A chave das palavras

Se não existissem as palavras...

Mas as palavras existem!

Onde estão as palavras?

Para que aprender português?

O que aprender?

O mundo das palavras

Nem só as palavras comunicam  (Soares: 1972)

 

Os textos não são mais literários, há um predomínio de imagens coloridas, de quadrinhos. E na parte dedicada ao professor, ao modo de um manual, encontramos que “ensinar português = ensinar comunicação” e que ensinar comunicação é ensinar a ler, escrever, falar e ouvir. O falar e o ouvir, a oralidade (?), entra (ou retorna à) na escola, assim, pelas mãos da noção de comunicação. Para Pêcheux (1988), a língua funciona tanto para comunicar, como para não comunicar. Na perspectiva discursiva, há uma recusa, pois, em se tomar a linguagem como instrumento de comunicação, de significações que existiriam independentemente da linguagem, e que exigiriam a presença de indivíduos conscientes e capazes de controlá-la plenamente para codificarem e decodificarem as informações ali presentes. Tal concepção seria justamente uma forma das ciências humanas e sociais mascararem sua ligação com a prática política.

Na parte dedicada ao Falar e ao Ouvir do livro didático da década de 1970, encontramos:

 

 

 

Pesquisas mostraram que:

         ouvimos mais que falamos

         falamos mais que lemos

         lemos mais que escrevemos 

 

Entretanto, a escola se preocupa em ensinar a ler e escrever – falar e ouvir têm sido atividades assistemáticas e secundárias. Neste livro procura-se desenvolvê-las sistematicamente:

         trabalhos de grupo

         discussão dirigida

         dramatização

         jogos

         coro falado

 

Os objetivos:

Que o aluno fale:

         com clareza e objetividade

         com estruturas, vocabulário e entonação adequadas à situação

Que o aluno ouça:

         com receptividade aos argumentos alheios

        com habilidades -  de traduzir, interpretar, avaliar a mensagem ouvida

                                    - de reter informações

                                    - de discriminar entre         

                                          verdade e mentira

                                          fato e opinião

                                          fato e hipótese

(Soares, 1972, p. 142)

 

Como compreender essa entrada explícita e sistemática do falar e do ouvir no livro didático, no ensino, na escola, com o respaldo de pesquisas? Como entrada da oralidade? Qual? E com que objetivos? Voltemos ao texto do livro transcrito acima.

Se o aluno precisa aprender com clareza e objetividade e adequar sua estrutura gramatical à situação, é porque a fala que ele traz de casa – sua língua materna – é obscura, subjetiva e a estrutura gramatical dessa língua não é adequada ao cidadão brasileiro para o exercício da cidadania. Se ele precisa ser receptivo aos argumentos alheios é porque essa língua que ele domina, e a partir da qual ele se significa e significa o que ouve, no contato com a língua de um outro - não nomeado – é capaz de produzir conflitos. Se ele precisa traduzir a mensagem ouvida é porque se trata de no mínimo duas línguas em questão. Além disso, o aluno domina uma língua que inviabiliza a discriminação mesmo do que seja verdade ou mentira. O que está em questão, pois, é o sujeito e a língua que ele traz para a escola. E o que observamos, então, é o modo pelo qual o Estado, via escola, trabalha o processo de subjetivação desse aluno.

Essa visibilidade que a fala ganha na escola seria um meio de valorizá-la? Mas que valorização é essa? Que memória vemos aí funcionando? Não obstante a oralidade seja considerada o reino da liberdade e da criatividade do sujeito, a língua que o aluno traz para a escola precisa sempre ser traduzida, enriquecida, ampliada, adaptada às situações de comunicação. Ao estudarmos nossa história da escolarização, observamos que há um discurso, poderíamos dizer fundador, que define nossa educação pela falta, como diz Pfeiffer (2001), uma falta que se dá sempre presentificada em contraste com um passado que se retemporaliza a todo instante (p.81). Falta de bons professores, de leitura, de compreensão, de alunos interessados, de tempo e de espaço adequados.

Assim, trazer a fala para a escola como objeto de aprendizagem, mesmo que com isso se pretenda permitir o acesso à escola de um número maior de brasileiros, o efeito pode ser o de reforçar a exclusão por ter sua fala constantemente exposta, mas nunca legitimada. Pfeiffer (2001) diz bem sobre isso:

A escrita funcionando como divisor de águas, traz ainda mais um sentido ao sujeito que estou chamando de o letrado não autorizado, isto é, o sujeito que tendo ou não passado pela escola, por se encontrar em uma sociedade escolarizada, precisa se submeter ao processo de legitimação de seu dizer que passa pelos sentidos da escolarização. Isto é, inscrevendo-se ou não historicamente, é preciso que este sujeito dê sentido ao dizer, fazer sentido aí pressupõe ganhar legitimidade, ser autorizado. Em outras palavras, o que quero dizer é que muitas vezes o sujeito, no gesto mesmo de se inscrever na história, tem sua inscrição apagada pela desconsideração de seus sentidos: seus sentidos são imobilizados no sem-sentido pela força da resistência imaginária (ideológica) que se acomoda no molde pré-fixado e vê na diferença, na resistência, somente o sem sentido. O trabalho ideológico dos sentidos está aí. [...] ... a escrita funciona também na direção de tomar os sentidos do lugar do sujeito letrado não-autorizado como visibilidade de sua incapacidade. [...] produz o efeito de culpabilidade... (p. 89)

 

Falar do que falta na fala (na oralidade?) é estar re-atualizando um discurso que já traz uma memória. Em 1576 no "Tratado da Província do Brasil", Pêro de Magalhães de Gândavo - humanista, latinista, gramático, viajante -, escreve em um livro destinado a mostrar a fertilidade e abundância da terra para que as pessoas pobres pudessem escolhê-la como um "remédio", pois "a todos agasalha e convida".

A lingoa deste gentio toda pella costa he hua, careçe de tres letra - S - não se acha nella f, ne l, ne R, cousa digna despanto por q assy não tem fê, ne lei, nem Rei & desta maneira viue sem justiça e desordenadamente.(Em Silva, 1998, pp.181-183)

 

Em minha tese de doutorado (1998), fazendo um recorte no discurso da literatura e analisando o livro de Sodré, História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos, publicado pela primeira vez em 1938, dizemos que no século XIX, com o romantismo,

 

já é possível admitir até a presença de outra língua que não a portuguesa - principalmente a negra -, mas como enriquecimento a uma matriz, o que, posteriormente, desdobrar-se-ia em variedades: a unidade convivendo com a diversidade, mas não com a diferença. "São entretanto, fala Sodré, vocábulos órfãos, sem pai nem mãe definida, que adotamos de dialetos negros sem história nem literatura, que deixamos que subissem, com os muleques e as negras, das senzalas às casas-grandes."(p. 240-grifos meus)

 

Mas, agora o contexto histórico-social é outro, poderíamos dizer. Sim. E que contexto era este de 1970, quando pensamos em criar essa sociedade supracomunicante, sem conflitos e confrontos? Vivíamos uma ditadura militar com fechamento do Congresso Nacional, avanço do capitalismo internacional (rumo à globalização), divisão do trabalho, indicativos de que a concentração de postos de trabalho se daria na área de serviços, onde a comunicação se apresenta como requisito necessário, repetência e evasão escolares forte. Mas, em contrapartida, maior acesso à escola fundamental de alunos de outras classes sociais e que falavam um português diferente.

Dessas condições de produção fazem ainda parte: mudança do nome da disciplina (Português para Comunicação e Expressão), promulgação de uma Lei de Diretrizes e Bases (1971) marcada pelo tecnicismo e pragmatismo, entrada na escola da teoria da comunicação, das funções da linguagem, do texto não literário, da linguagem não-verbal; avanço da lingüística, mais especificamente da sociolingüística, com a noção de variedades, trazendo uma nova dicotomia a nortear o ensino da língua – adequação/inadequação – em oposição ao certo/errado da gramática dita tradicional, bem como a noção de “uso” da língua, associada a noção de prática como ação deliberada de um sujeito intencional, cognoscente e, porque não dizer, onipotente em relação à linguagem e à língua.

Estaríamos, então, frente a discursos que, apesar de no dito, afirmarem a importância em se valorizar o aluno, à diversidade, em trazer o cotidiano para a sala de aula, significam em relação a um não-dito e a um já-dito histórico. Estamos, na verdade, em novo momento de gestão das diferenças, observando o funcionamento do trabalho de uma memória social de divisão dos sentidos e de legitimação de alguns apenas, de absorção das diferenças para universalizar as relações econômicas e sociais, mas também para reorganizar a divisão do trabalho. Fala-se de variedade para negar a diferença, a desigualdade. Fala-se de oralidade para apagar o não acesso e domínio do escrito pela maioria da população brasileira. Ou então, como diz Solange Gallo (1992), em uma análise refinada da relação oralidade escrita na sociedade e na escola:

Quando o estudante entra na Escola, sua produção lingüística se inscreve no Discurso da Oralidade. Mesmo depois da alfabetização, seus textos permanecem inscritos nesse discurso, assim permanecerão até o fim do período de escolarização. Nada acontece a esse aluno para que ele apreenda o Discurso da Escrita. Seus textos não-modelares, e sua forma não-normativa, assim permanecerão. Se, no entanto, o aluno consegue, por um exercício alucinado de cópia, leitura, etc., produzir textos modelares e corretos do ponto de vista da Norma, ainda assim seu texto, por não ser legítimo (como seria o texto de um jornalista, de um publicitário, de um escritor), não produzirá um efeito de sentido “único”; ao contrário, produzirá um sentido ambíguo e inacabado, um texto de Discurso da Oralidade. Na verdade, a Escola faz parecer que o texto, quando produzido segundo as normas de “correção” e “clareza”, é um texto legítimo. O que é um grande engodo. Na verdade, ele só é legítimo dentro dos portões da Escola onde foi produzido. (pp. 59-60)

 

Podemos, pois, nos perguntar até que ponto essa inclusão explícita da fala, da oralidade nas propostas políticas e metodológicas não seria uma forma de re-atualizar o discurso originário e manter o assujeitamento à formação discursiva onde se constituíra o sujeito e o sentido não legítimo, não adequado, não-autorizado?

Sodré também ao analisar e avaliar as criações de Gregório de Matos, autor muito apreciado pelo público da época diz desse mesmo público:

 

É importante não esquecer que, numa época em que a transmissão se fazia por via oral, de ouvido em ouvido, de boca em boca, e o ato de criação revestia-se de traços inteiramente  diferentes do que hoje acontece, irrompendo os versos em festa, reuniões, lugares públicos, nos pontos em que se aglomeravam tocadores de viola, cantadores, gente vulgar na sua maior parte, a qualidade nem sempre podia ser excelente, o agrado dos ouvintes prevalecia, o teor literário parecia secundário.(Silva, 1998, p. 86)

 

Gente vulgar.... gosto vulgar... qualidade duvidosa... porque abusa das licenças, é demasiada presa ao meio, surge das condições, coisas, fatos e pessoas conhecidos.

Ao se falar na dimensão histórica da oralidade e da escrita no Brasil, situamo-nos, pois, no campo do estudo da memória discursiva, tomando as diferentes línguas existentes no Brasil em sua relação com a língua nacional, como a língua historicamente cultivada pelo Estado Nacional, e a partir da qual ele regula a presença das demais línguas em seu território. Isso nos permite afirmar que o brasileiro – escolarizado ou não - tem sua identidade configurada por uma língua nacional e por essa mobilidade entre diferentes ordens simbólicas.

Na constituição do sujeito e nos processos de subjetivação há de se considerar, pois, o entrecruzamento de diferentes histórias: da língua, do saber sobre ela produzido, de sua escolarização, e os apagamentos, silenciamentos, esquecimentos, constitutivos de uma memória (social e individual), que retorna pelo trabalho do equívoco no próprio da língua. Se a língua materna constitui o sujeito, a língua nacional trabalha de maneira bastante forte os processos de individualização, porque como diz Orlandi (1996), em relação às confrontações que se dão na língua pelo silenciamento do político (os sentidos são sempre divididos), a língua pertence a todos e é, ao mesmo tempo, o que temos de mais propriamente nosso. Lugar de relação à história e ao social e lugar de singularidade. (p.131).

Não se trata, pois de adequação do sujeito a uma situação de comunicação, algo da ordem da consciência, da intenção; adequação/adaptação tomada como um processo em que um sujeito se torna apto a satisfazer uma exigência preexistente. Não se substitui uma língua por outra, ou as formas de uma língua pelas formas de outra, sem afetar esse movimento identitário de pertencimento a um grupo que tem uma história, uma memória.

      Na coleção de livros didáticos da década de 1980, já observamos uma estrutura que busca articular as propostas das coleções anteriores, integrando teorias e metodologias, enquanto suporte para o trabalho de unificação da língua. Cada capítulo terá agora a seguinte estrutura:

1.           Texto literário

2.           Compreensão do texto

3.           Vocabulário: uso do dicionário

4.           Ortografia

5.           Gramática

6.           Redação

7.           Linguagem oral. ( Soares, 1982)

 

Sendo que nos volumes da 7ª e 8ª séries a Ortografia é substituída pela Pontuação e pelos Recursos Estilísticos, respectivamente.

No Livro do Professor (1982), para cada série, vamos encontrar em suas páginas iniciais o delineamento da estrutura do livro e da proposta metodológica, seguido do desenvolvimento de cada lição. Nesta parte, temos os objetivos da Linguagem Oral:

 

Desenvolver as habilidades de expressão oral: FALAR.

Desenvolver as habilidades de compreensão oral: OUVIR  (Soares, p. XV)

 

Vemos, aí, novos deslizamentos de significantes e seu desdobramento incessante, que são ao mesmo tempo idênticos e antagonistas em relação a si mesmos, quer dizer, cuja unidade é submetida a uma divisão: falar x habilidade de expressão; ouvir x habilidade de compreensão. E prossegue o Manual:

Apesar dessa intenção de desenvolvimento sistemático e progressivo, os exercícios procuram tornar naturais as situações de comunicação oral, ao mesmo tempo que procuram estimular os alunos à reflexão, análise e avaliação de problemas humanos e sociais: eles tornam naturais as situações de comunicação porque são, sempre, sugeridos pelo que texto que introduz a unidade, relacionando-se  ainda, freqüentemente, com os exercícios de Redação que preparam ou de que decorrem.(Soares, 1982, p. XV - grifos da autora)

 

Naturalizar as relações sociais. Essa é uma relação entre a prática política e o discurso, já apontada por Pêcheux (Henry, 1990), ao recusar a noção de linguagem como instrumento de comunicação por colocar as ciências humanas e sociais no prolongamento das ciências naturais. Com isso acredita-se poder conceber o homem e as sociedades humanas com base nos mesmos princípios dos animais e das sociedades animais, apagando-se as dissimetrias e as dissimilaridades entre os homens.

Pensar o tema oralidade e ensino é pensar a relação escrita X escola, uma vez que cada termo do binômio é a contraparte necessária do outro. Mas é também observar o funcionamento desse pares de forma a dar sustentação à produção de uma demanda: a de se trabalhar a oralidade na escola, de se ensinar a falar os brasileiros que falam diferente. Como produzir outros efeitos de sentido para a relação entre oralidade, comunicação, variedades, unidade, diversidade? Como compreender esse jogo contraditório entre a unidade juridicamente autorizada e a absorção politicamente negociada da diversidade?

Não se trata, pois, de correlacionar termos ou de correlacionar o lingüístico com o social, o institucional, mas de compreender a relação de uma língua com uma exterioridade discursiva concebida como processo político e social cuja especificidade está em que sua materialidade é lingüística.

 

 

Referências Bibliográficas

AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Trad. Eni P. Orlandi. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.

CHISS, J-L e PUECH, C. Le langage et ses disciplines: XIXe – Xxe siècles. Paris, Bruxelles: Duculot, 1999.

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. Trad. Laura F. de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

GALLO, S. L. Discurso da escrita e ensino. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1992.

GUIMARÃES. E. Enunciação e política de línguas no Brasil. Texto apresentado em seminário realizado na Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria/RS. 2004.

HENRY, Paul. Os fundamentos teóricos da “análise automática do discurso” de Michel Pêcheux. In: GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux Trad. Bethânia Mariani ... [et al.]. Campinas/SP: Editora da Unicamp, 1990a , p. 13-38.

ORLANDI, E. P. Cidade dos sentidos. Campinas/SP: Pontes, 2004

ORLANDI, E. P. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Rio de Janeiro: Vozes, 1996.

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