ATOS DE FALA – SUAS REALIZAÇÕES E OPACIDADES NOS EFEITOS DE SENTIDO

 

Maria Teresinha Py Elichirigoity

(UCPel)

 

Palavras-chave: ilocução, enunciação, perlocução

RESUMO: A orientação pedagógica para o ensino/aprendizagem de línguas, inclusive a materna, aponta cada vez mais, para a importância do trabalho com a oralidade na sala de aula. Consciente de que, antes de toda prática pedagógica, deve haver sempre reflexão e estudo, parece-nos oportuno uma revisão da teoria dos Atos de Fala, mostrando um contraponto de abordagens dos fenômenos lingüísticos, feitas por Austin e Searle, de acordo com seus trabalhos datados a partir da segunda metade do século XX. Nossa expectativa é de, com essa retomada teórica, mostrar a importância de uma visão filosófica na linguagem para a compreensão de efeitos de sentidos, o que influirá diretamente na própria prática pedagógica do professor de Letras, numa escola ainda, muitas vezes, essencialmente focada no ensino da escrita e dos tipos textuais.

 

Introdução

“..o critério mais importante para a determinação da significação é o uso das palavras em diferentes jogos.”(Wittgenstein, 1994:19 e 20)

 

Todos nós, professores de línguas, sabemos que falar ou escrever bem não é igual apenas a ser capaz de adequar-se a regras da língua, mas, sim, a usar esta língua adequadamente, ou seja, produzir um efeito de sentido pretendido numa dada situação. Então, o importante é saber como se chega a um discurso significativo pelo uso adequado às práticas e à situação a que se destina.

Ultimamente, muito se tem incentivado na escola, a oralidade, as atividades de retextualização, da fala para a escrita, o que nos lembra mais diretamente o trabalho de Marcuschi (2001:16), que vê a oralidade e o letramento como “atividades interativas e complementares no contexto das práticas sociais e culturais”. Embora faça a diferença entre o “letramento social” - que se desenvolve à margem da escola, e a aquisição da escrita- que também é uma forma de letramento, Marcuschi (2001:19) enfatiza o valor social do uso da escrita, desde os contextos mais básicos da vida e inclusive sua valorização como aprendizagem na escola, em detrimento da oralidade.

Mas os gêneros discursivos, oriundos das relações e necessidades sócio-históricas de uma comunidade lingüística, tanto podem constituir textos orais, como escritos. Surgem, assim, gêneros discursivos em textos verbais orais e escritos cujo uso e demanda estão estreitamente relacionados com as formas de relação dessas comunidades sócio-lingüísticas e tais textos são reconhecidos por suas características não só discursivas como também estruturais.

Entretanto, falar é fato biológico-histórico que distingue o homo sapiens das outras espécies. É constitutivo dele. Ler e escrever, não. Então, não seria importante perguntar até que ponto nossos cursos de graduação em Letras preparam os futuros professores de línguas em relação a aspectos da fala e das teorias que buscam esclarecê-la? Por que insistimos tanto na importância da escrita e na superação da dificuldade da leitura e interpretação do texto escrito e esquecemos, na escola, que o critério mais importante para a determinação do sentido é entender o jogo das palavras em diferentes situações e que isso começa pela fala, pela interlocução - quando se compreendem as intenções do que é falado.

Acreditamos que é preciso expor, ainda que em síntese, princípios teóricos que embasam conteúdos, procedimentos e metodologias sugeridas aos professores nos livros didáticos atuais, pois a maioria deles não tem acesso a cursos de pós-graduação, em que tais teorias são mais amplamente focalizadas e estudadas, nem a bibliografias específicas que por ventura sejam encontradas nesses livros escolares. Então, este trabalho abordará a Teoria dos Atos de Fala, mostrando como as características desses fenômenos lingüísticos foram percebidas diferentemente por dois filósofos - Austin e Searle-, durante a segunda metade do século XX.

 

1  Um pouco de História

1.1  A Filosofia Analítica de Oxford e John Langshaw Austin

Os filósofos de Oxford – em especial, Austin - e seus estudos da linguagem vulgar (a língua tal como é falada), além de renovarem as concepções da filosofia analítica, despertaram o interesse dos lingüistas que tendem, em geral, a análises formais dos fatos lingüísticos. Em Royaumont foi realizado um colóquio em que os participantes expressaram e discutiram tal filosofia: suas conclusões foram editadas em 1962.

Aproximando-se das humanidades clássicas, tais filósofos interessam-se pelo exame de uma língua em si mesmo: suas palavras, sintaxe e idiotismos. Assim como Aristóteles , em sua segunda fase (Tópicos), diferencia razão de verdade, mostrando que há verdades que não podem ser empiricamente verificadas, portanto, dependem do consenso, também a filosofia analítica de Oxford considera que as línguas naturais contêm conceitos e distinções sutis e preenchem inúmeras funções não percebidas por outros filósofos. Julgam ainda, os filósofos analíticos de Oxford, que essas línguas retêm apenas os conceitos úteis e as distinções suficientes, uma vez que se desenvolveram para responder às necessidades dos que delas se servem. Por isso, esses filósofos se dedicaram a estudos profundos da linguagem vulgar, para distinguir e classificar usos e funções das expressões lingüísticas, inclusive das que parecem sinônimas, investigando os contextos de utilização e tentando demonstrar o princípio implícito que preside a escolha.

Para os lingüistas que não se afastam dos problemas da significação em seus estudos, os filósofos de Oxford representam um grande foco de interesse. O objeto da filosofia analítica é a especificidade da linguagem nas circunstâncias em que são válidas as formas lingüísticas escolhidas para serem estudadas. A delimitação exata de fenômeno de língua importa tanto à análise filosófica como à descrição lingüística, pois os problemas de conteúdo, pelos quais o filósofo se interessa mais particularmente, mas que o lingüista também não negligencia, ganham em clareza, se forem tratados dentro dos quadros formais.

Para Ruth Kempson (1977:188), na medida em que o domínio da verdade lógica for se expandindo, o objetivo de escrever uma lógica com complexidade suficiente para todos os acarretamentos de sentenças de uma linguagem natural tornar-se-á cada vez mais realista. A semanticista conclui que se devem criar condições sofisticadas de avaliação críticas das hipóteses apresentadas tanto em lingüística, quanto em filosofia da linguagem e lógica para que lingüistas, lógicos e filósofos apresentem um trabalho conjunto proveitoso. 

Austin surge no cenário da discussão sobre a linguagem num momento histórico preciso – na Inglaterra, na escola de Oxford, na década de 40 (pós-guerra), observa Ottoni (2202:117), e será um porta-voz de todo um processo histórico da filosofia contemporânea, ao revolucionar tanto a filosofia analítica daquele momento quanto a lingüística como ciência autônoma. Em suas reflexões discute as fronteiras entre a filosofia e a lingüística nos estudos de linguagem.

J. L. Austin nasceu em Lancaster (1911) e foi educado em Oxford, onde se tornou professor de filosofia, após vários anos de serviço na Inteligência Britânica, durante a Segunda Guerra Mundial. Apesar de grandemente admirado como professor, Austin publicou pouco de seu trabalho filosófico durante sua breve vida (48 anos). Estudantes compilaram seus escritos e conferências em livros que foram publicados após sua morte (1960): “Philosophical Papers” (1961); “Sense and Sensibilia” (1962) e, inclusive, “How to do things with words “(1962).

Mas, já em 1956, em “A Plea for Excuses”, Austin explicou e ilustrou seu método de abordagem de itens filosóficos, em que primeiramente analisava, com sua paciência peculiar, as sutilezas da linguagem ordinária. A aplicação desse método conduziu-o à distinção entre o que dizemos e o que fazemos ao dizer ou entre o locucionário e o ilocucionário (performativo). Este filósofo britânico é, sem dúvida, uma das mais importantes figuras da Filosofia Analítica e Lingüística do século XX.

 

1.2.John Searle

John Rogers Searle (nascido em Denver, 1932), professor da Universidade da Califórnia, em Berkeley, é considerado um dos maiores “Filósofos da Mente” da atualidade. Condenando a crença de que “nosso mundo depende da concepção que temos dele”, insiste que “há um mundo real” ao contrário de muitos teóricos, entre eles Thomas Kuhn, Derrida, Richard Rorty e Paul Feyeraband.

Para Searle, o realismo (o qual ele denomina realismo externo) é uma estrutura dentro da qual são possíveis as teorias. Entre suas obras destacam-se: Mente, linguagem e sociedade, O Mistério da Consciência e A Redescoberta da Mente.

Começou seus estudos sistemáticos na Universidade de Wisconsin, mas foi na década de 1950, quando freqüentou Oxford, que seus estudos filosóficos se aprofundaram, graças aos filósofos de primeira linha que lá atuavam na ocasião, entre eles, Peter Strawson, John L. Austin, Isaias Berlin, Bernard Williams, Paul Grice e David Pears (com ênfase em Austin e Strawson). Entre 1952 –1959, Searle esteve em Oxford, tanto como estudante como membro da faculdade e considera o grupo de filósofos ativos deste período, o melhor que o mundo já teve, ao mesmo tempo, desde a antiga Atenas.

Searle que nunca levou muito a sério, tanto as exageradas exigências a respeito do valor dos métodos de analisar expressões na linguagem ordinária quanto os poucos razoáveis ataques a esses métodos na filosofia. Achou-se, no entanto, beneficiado pela obsessão com o rigor e a clareza que caracterizavam Oxford nesta época. E, apesar de confirmar as limitações sobre o quanto se pode alcançar com a análise da linguagem ordinária para resolver problemas filosóficos, acredita que os métodos de análise lógica, aprendidos em Oxford, são universais em aplicação e ele tem tentado aplicá-los a problemas de filosofia da mente tanto quanto na filosofia social.

 

2  Os estudos de linguagem de Austin

Para Austin, o objetivo da Filosofia Analítica é estudar o funcionamento da linguagem antes de estabelecer modelos lógicos, ideais que dêem conta de questões filosóficas. Austin não se interessa pela linguagem ideal, mas pelas dificuldades criadas pela linguagem ordinária em que uma palavra não expressa um conceito preciso ou mesmo uma frase não expressa um pensamento claro. Aborda, de maneira inédita, a questão do sentido, do significado e da referência, abalando com sua originalidade certas questões fundamentais da lingüística descritiva e da filosofia tradicional. Também introduz, de forma definitiva, os conceitos de performativo, ilocucionário e atos de fala, que se perpetuaram em posteriores discussões da filosofia analítica e da lingüística. A interdependência desses três conceitos é fundamental no interior da argumentação da obra de Austin, o que fez surgir uma “lingüística filosófica”, reflete Ottoni (2002:120) em seu estudo. Considerado um desconstrutor de uma filosofia tradicional e até da própria lingüística tradicional, Austin funde essas ciências ao discutir performativo e constatativo, verdadeiro e falso. Não há fronteiras nem linearidade no interior de sua própria obra.

As discussões iniciais sobre performatividade partem da discussão da certeza de saber algo que, segundo Austin, é uma falácia descritiva. Na visão performativa, há inevitavelmente, uma fusão do sujeito e do objeto, a fala com o uso feito pelo sujeito.

Para o filósofo, o ato de fala é composto de três atos simultâneos:

-um ato locucionário- que produz sons e articulação entre a sintaxe e a semântica (lugar em que se dá a significação no sentido tradicional);

-um ato ilocucionário- que é a realização de uma ação através de um enunciado (por exemplo: “eu prometo”- ato de promessa);

-um ato perlocucionário- que produz efeito sobre o interlocutor.

Entretanto, ao dizer, por exemplo, “eu prometo”, posso produzir também uma “ameaça”, daí não haver mais distinção de um sentido único em relação ao significado quando se trata de performatividade. Logo, a ação é uma atitude independente de uma forma lingüística: o performativo é o próprio ato de realização da fala-ação.

Inicialmente, percebe duas formas normais para a expressão do performativo:

1-     no início do enunciado há um verbo na primeira pessoa da singular, no presente do indicativo, na voz ativa (por exemplo: “eu te prometo que...; eu juro que...);

2-     há um verbo na voz passiva, na segunda ou terceira pessoa do presente do indicativo (por exemplo: “os passageiros estão convidados a utilizar a passarela para atravessar as pistas”).

Mas Austin reconhece que há outros performativos além dessas “formas normais”, como o uso do imperativo ou até de uma estrutura nominal. Exemplos: Feche a porta = Eu ordeno que feche a porta; Cão! = Previno-o que o cão vai atacar.

Portanto, os atos ilocucionários, que são convencionais, possibilitam enunciados performativos sem que seja possível identificar uma forma gramatical específica para eles. Por isso, conforme conclui Austin, uma afirmação, antes considerada um constatativo apenas, é um performativo mascarado (no constatativo, por exemplo, pode haver um performativo de pedido ou ordem, percebido apenas em relação à enunciação). Assim, Austin identifica um enunciado com um “sujeito falante” para que possa praticar uma “ação”. Por exemplo, na afirmação dita por alguém - “Ele é um péssimo individuo”- há implícitos performativos, que poderiam ser, de acordo com o lugar em que está sendo dito, explicitados como: “Eu afirmo que...”, “Eu imagino que...”.

Dilui-se, dessa maneira, a distinção constatativo/performativo. Daí, verdade e falsidade não terão mais um papel relevante nem prioritário para Austin. Não é mais possível analisar a fala desvinculada do sujeito. Então, a questão do eu-sujeito (entidade extra-lingüística) e sua relação com a apreensão entre os interlocutores de que “algo está assegurado”, estabelece uma nova concepção de referência e intencionalidade. Qualquer enunciado tem, implicitamente, um sujeito, um “eu” que produz a fala; o significado depende do sujeito e do momento de sua enunciação. Mas é preciso observar que Austin começa a pensar a partir de um “eu” com a linguagem e chega a um “eu” na linguagem e da linguagem. O “eu” não tem sozinho o domínio da significação: esse domínio se constitui na interlocução, no momento da enunciação. Ottoni (2002:134) enfatiza a utilização do conceito de “uptake” (compreensão) utilizado por Austin para este “controle” do significado. O “eu” não deve mais ser confundido com o “sujeito” falante empírico, uma vez que é só por meio da compreensão (uptake) que se constitui como sujeito.

A relação de intencionalidade e significação subverte, então, a sua própria teoria, tendo em vista que não mais se pode calcar no papel centralizador do sujeito falante, já que a intenção também não pode ser unilateral. Reconheceu-se assim, a impossibilidade de controle do sujeito em qualquer situação de fala, sobre sua intenção, já que ela se realiza juntamente e por meio da compreensão com seu interlocutor. Isso significa que o ato de fala é produzido pela compreensão (uptake), quando há um descentramento do papel do sujeito falante.

Ottoni (2002:135) conceitua uptake (compreensão) como lugar onde se complementam o “eu” e o “tu”, onde se assegura a fala. E numa versão mais forte, “uptake” é o lugar de desmantelamento da intenção, o caminho próprio da desconstrução. Então, na visão performativa o que vai importar não é o que o enunciado ou as palavras significam, mas as circunstâncias de sua enunciação, a força que ela tem e o efeito que ela provoca.

Na oposição entre “dizer algo” e “fazer algo ao dizer”, Austin faz intervir a noção de Força Ilocucionária (FI) – que é a doutrina dos diferentes tipos de função da linguagem- cuja constituição se dá de acordo com as circunstâncias especiais de ocasião em que o proferimento é emitido. Assim, a constituição da FI se localiza no ato ilocucionário e coloca a exterioridade como fator determinante na questão da significação. Austin tenta classificar os proferimentos, considerando os que somente descrevem o mundo e os que produzem alguma mudança no mundo, a partir da enunciação, tomando os verbos como categoria. Reúne os verbos em cinco classes, a partir da FI predominante, localizada por critérios lexicais:

- veriditivos - exercício de julgamento;

- exercitivos - afirmação de influência ou exercício de poder;

- comissivos - obrigação ou declaração de intenção;

- comportamentais - adoção de uma atitude;

- expositivos - esclarecimento de razões, argumentos e comunicações.

No entanto, o próprio Austin reconhece que todos os aspectos podem estar presentes em todas as classes e isso se manifesta na situação em que ocorre: não há possibilidade de simetria entre proferimento e feitos. A partir daí, a questão da performatividade começou a ser muito mais discutida, gerando desentendimentos nas “teorias dos atos de fala”, quanto às abordagens das propostas austinianas.

Ottoni (2002:132) parte do princípio de que essa possibilidade de as reflexões de Austin darem conta dessa amplitude de posicionamentos divergentes se deve à maneira especial de encarar o relacionamento dos conceitos de ato de fala, performativo e ilocucionário, já que ele não fez um desdobramento sistematizado desses três conceitos, mas estabeleceu uma doutrina geral, partindo de uma visão performativa que mantém certas relações com a percepção humana. Pela complexidade das reflexões de Austin, justificam-se as abordagens diferentes, conflitantes e contraditórias dadas “as propostas austinianas. E daí, surge a questão: como o filósofo Searle tentou uma análise “lógica” da linguagem humana, envolvendo a questão da performatividade?

 

3  Os estudos de linguagem de Searle

Searle, embora tenha sido discípulo de Austin, vai causar alguns retrocessos na teoria dos Atos de Fala, pois ignora o jogo literalidade X opacidade, com a determinação de que a língua é soberana e capaz de dar conta dos atos ilocucionais e suas respectivas Forças Ilocucionais, sem remeter à exterioridade. Formalista, Searle recorre à convenção e às regras da língua que, para ele, regem todo  comportamento lingüístico. A língua é que sobredetermina os atos de fala, delimita as intenções, as quais têm de ser apresentadas com clareza para que haja perfeita simetria entre sentido e intencionalidade. Para Searle, a unidade mínima de comunicação lingüística são os atos de fala – produzidos com certas intenções adequáveis às possibilidades da língua. Portanto, os atos de referir e predicar se apresentam como possíveis de serem repetidos em diferentes atos de fala completos.

Assim como Austin, mas de modo diferente, Searle busca classificar na enunciação de qualquer enunciado, três tipos de atos distintos, os quais no seu conjunto constituem aquilo que denomina atos de fala:

1-atos de enunciação ( com o sentido de enunciar palavras, morfemas e frases);

2-atos proposicionais (com o sentido de referir e predicar);

3-atos ilocucionais (afirmar, perguntar, ordenar, prometer etc.).

A proposição é o conteúdo do ato, a expressão da referência e da predicação, dadas pelo conteúdo semântico que adquiriu estatuto de ato ilocucional pela presença de um marcador de força proposicional, o que Searle chamou de força ilocucional. É a força ilocucional que indica o modo pelo qual se deve buscar a significação da proposição (como uma advertência, uma promessa, um agradecimento etc.). Portanto é a FI que indica o ato ilocucional realizado pelo falante quando da enunciação.

O ato ilocucional é então representado por Searle como F(p), onde (p) contém a referência e a predicação e F, a força ilocucional. E cria um conjunto de 5 regras às quais submete a FI, apoiando-se em Grice[1], com a intenção de comprovar que a língua é transparente:

1ª- regra do conteúdo proposicional;

2ª e 3ª- regras que dizem respeito ao comportamento do falante e do ouvinte;

4ª - o ato ilocucionário, feito a partir do conteúdo proposicional deve ser realizado;

5ª - ao enunciar a proposição, o falante assume o compromisso de realizar o ato ilocucionário.

Vê-se, portanto, que no ato de fala, Searle, assim como Grice, pressupõe um locutor ideal e, se por acaso ele causar problemas à significação, constituirá um ato ilocucional defeituoso.

 

4  O contraponto entre a Teoria de Atos de Fala de Austin e Searle

Zandwais (2002:105) considera a possibilidade de se falar em teorias de Atos de Fala de Austin (1976) e Searle (1969), no plural, devido a serem obras descontínuas em relação aos princípios adotados para a descrição do estatuto/funcionamento dos atos de fala da linguagem.

A partir de Wittgenstein[2] (1979), a conduta logicista imposta ao tratamento semântico da língua, em que a linguagem somente significa enquanto representação literal do mundo, passa a ser questionada, pois, para este filósofo, a linguagem tem na incompletude uma de suas características constitutivas de tal forma que a opacidade do sentido precisa ser entendida como um efeito da não correspondência simétrica entre o que se tem em mente (meinen) e o que se designa como significação. A significação dá conta de definições enquanto que “o que se tem na mente” deve vincular-se aos processos concomitantes às ocorrências da fala e que dizem respeito a seus vínculos com acontecimentos, retrospecções, intenções, sentimentos e juízos. Portanto, as regras formais de significação das palavras tornam-se insuficientes e pouco esclarecedoras para essas últimas representações, ressaltando-se as relações de incompatibilidade entre os pressupostos da lógica formal e os das línguas naturais.

Então, Wittgenstein é o primeiro a deslocar para o âmbito da exterioridade lingüística a tarefa de determinar o que as palavras significam. E é a partir desses posicionamentos que Austin inicia sua caminhada filosófica para a construção de sua Teoria de Atos de Fala sobre a qual já se falou neste artigo. Austin, altamente crítico e ético, reconhece que, apesar de todas sua análise, a noção de força ilocucionária é precária para conter fatos como a ambigüidade de efeitos, até porque a tentativa de reduzir o ato ilocucionário a classificações taxonômicas mostrou-se também imprecisa. Rajagopalan (1992) discute muito apropriadamente a irredutibilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas.

Searle critica Austin por este ter pensado que houvesse biunivocidade entre atos ilocucionários e os verbos performativos( apresentando exemplos de sua língua materna, o inglês). Para Searle, ilocuções fazem parte da linguagem enquanto verbos ilocucionários pertencem às línguas em particular. Rajagopalan (2002:98) observa que Searle se esquiva de situar os atos ilocucionários, mas, ao rejeitar a classificação de Austin e ao propor sua taxonomia alternativa, baseda em “doze dimensões de variação” elaboradas em termos de conceitos extralingüísticos, parece comprometer-se com critérios de classificação universais, acima das especificidades das línguas particulares.

Ao denunciar a falta de princípio na taxonomia de Austin, Searle adota um conjunto de princípios e define cada ato como um encruzilhado de vários contínuos distintos. Mas Rajagopalan (2002:99) aponta alguns críticos de Searle, como Holdcroft e Leech que também o acusam de confundir ato ilocucionário com verbo performativo, ao considerar o performativo como forma canônica de cada ilocução. Na verdade, tanto Austin quanto Searle sempre tiveram presente um esforço taxonômico, embora o primeiro, metodicamente questionasse a validade de uma proposta que acabara de esboçar e reconhecesse até a precariedade de sua própria taxonomia.

Rajagopalan (2002:116), após análise de posicionamento de inúmeros estudiosos sobre atos de fala, ao longo das últimas décadas, concluiu que não há como reduzir ou decompor um ato em algo que seja de qualquer outra natureza, pois os atos ilocucionários são as unidades mínimas da teoria. Com isso, resgata o papel originalmente reservada por Austin para os atos ilocucionários – o de serem unidades de análise indissoluvelmente culturais, compreensíveis tão-somente enquanto fatos institucionais, específicos de cada comunidade de fala.

Conclusão

Como se pode perceber, as diferenças se desencadeiam a partir da afirmação de Searle de simetria entre sentido e intencionalidade e da possibilidade de assimetria entre sentido e intencionalidade em Austin. Para Searle (1995: VII,VIII), a representação de uma sentença deriva da intencionalidade da mente. A capacidade de os atos de fala representarem objetos e estados de coisas do mundo é uma extensão das capacidades mais biologicamente fundamentais da mente (ou do cérebro) para relacionar o homem ao mundo por meio de estados mentais como a crença e o desejo, e em especial através da ação e da percepção. Uma vez que os atos de fala são um tipo de ação humana e uma vez que a capacidade de fala para representar objetos e estados de coisas faz parte de uma capacidade mais geral da mente para relacionar o organismo ao mundo, qualquer explicação completa da fala e da linguagem exige uma explicação de como a mente/ cérebro relaciona o organismo à realidade. E Searle diz mais: “uma sentença é um objeto sintático ao qual são impostas capacidades representacionais: crenças, desejos e outros estados intencionais não são objetos sintáticos e suas capacidades representacionais são intrínsecas, pois a linguagem é, essencialmente, um fenômeno social e as formas de intencionalidade a ela subjacente, são formas sociais”. Apesar disso, Searle admite a construção do sentido realizada apenas por um sujeito e pretende a garantia do entendimento da força ilocucionária do ato indireto de fala, baseando-se no princípio de cooperatividade de Grice em que os interlocutores são idealizados -  Grice ignora todas as situações de malogro apontadas por Austin.

Austin declina da relação biunívoca entre linguagem e ação e de tomar, simplesmente, a última, como efeito inequívoco da intencionalidade. Não se trata, portanto, de negar o efeito, mas não se pode mais vinculá-lo a uma intencionalidade, à razão lógica, puramente, à moda cartesiana.

Enfim, conforme enfatiza Zandwais (2002:114), ao colocar o estatuto da intencionalidade como condição determinante para a produção de atos de fala indiretos, Searle afasta-se do percurso de Austin e acaba por alicerçar suas hipóteses a respeito do funcionamento dos atos de fala  em bases distintas das de seu mestre.

E toda essa percepção dos fenômenos lingüísticos, com suas realizações e opacidades nos efeitos de sentido, a forma como se entende isso, influirá na própria prática pedagógica do professor de Letras, numa escola ainda, muitas vezes essencialmente focada para o ensino da escrita, e onde o professor atua orientado por parâmetros, apenas como um executor de teorias e metodologias que, muitas vezes não conhece suficientemente, ou não se envolve criticamente, por falta, inclusive de oportunidades de uma educação continuada que lhe possibilite outros posicionamentos. Acredita-se que discussões como a apresentada sobre Atos de Fala, mesmo com toda a imprecisão que a Filosofia da Linguagem aponta para essa questão, incentivarão o professor a repensar sobre a importância da compreensão da performatividade e da percepção da força ilocucional, essenciais para o desvendamento das opacidades nos efeitos de sentido no seu trabalho com a linguagem na sala de aula.

BIBLIOGRAFIA

AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazerpalavras e ação. Trad. de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

KEMPSON, Ruth. Teoria Semântica. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1977.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da Fala para a Escrita – atividades de retextualização. São Paulo:Cortez, 2001.

OTTONI, P. R. John Langshaw Austin e a visão performativa da linguagem. In: D.E.L.T.A. Vol. 18 Nº1. São Paulo:EDUC, 2002 (117-14).

RAJAGOPALAN, K. A irredutibilidade do ato ilocucionário como fator inibidor do êxito das tentativas taxonômicas. In: D.E.L.T.A, vol.8 Nº1, 1992 (91 a133).

SEARLE, J. R.. Os Actos de Fala – Um Ensaio de Filosofia da Linguagem. Coimbra: Almedina, 1981.

_____________. Expressão e Significado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

_____________. Intencionalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

STOEKER, R. http://www.uni-bielefeld.de/ZIF  – Interview mit Professor John R. Searle., 24-02-2000.

ZANDWAIS, Ana. Tratamento das significações não literais. In: ZANDWAIS, A (org.). Ensaios: Relações entre Pragmática e Enunciação. Vol 17. Porto Alegre: Sagra Luzzatto, 2002.(105 a 115).



[1] GRICE. H. P. . Logic and conversation. In :COLE; MORGAN (eds.) Sintax and semantics.3:Speech acts. New York: Academic Press.

[2] WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. 2ª ed. Emmanuel Carneiro Leão; Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.