O ENSINO DE LITERATURA COMO FORMA DE CONSTRUÇÃO DO PENSAMENTO

 

Madalena Teixeira Paim

 

          Segundo a autora de Envisioning Literature, Judith Langer, é através da literatura que os alunos podem ser orientados a explorar e analisar as possibilidades de vida assim como  as opções que estão disponíveis para si mesmos e para a sua comunidade. Também é através da literatura que eles podem se encontrar, serem outras pessoas, valorizar as diferenças, engajar-se e, ao procurar a ampliação de seu mundo, lutar por justiça. Esta visão de literatura como possibilidade de crescimento e fortalecimento do aluno é alcançada através da reflexão sobre os textos, sobre si mesmos e sobre o mundo. Como diz Marisa Lajolo em sua introdução à obra  Do mundo da leitura para a leitura do mundo, “lê-se para entender o mundo, para viver melhor”  (2005, p.7).

          Até mesmo os alunos com baixo aproveitamento escolar no que se refere à leitura e, conseqüentemente, apresentando diversos problemas escolares, conseguem se encontrar no estudo literário trabalhado sob essa perspectiva, envolvendo-se de tal forma no processo que desenvolvem suas próprias interpretações e procuram um significado pessoal no momento em que discutem os possíveis significados das atitudes das personagens do texto literário, pois estas personagens, como os próprios seres humanos, são complexas e imperfeitas, sempre à procura de um significado de vida. Mais ainda: os alunos aprendem a defender suas interpretações ao compararem seus trabalhos com os dos outros colegas.

          O que realmente acontece nesses momentos de troca de idéias é a oportunidade de usar a literatura como o ponto inicial para o crescimento das suas próprias visões de mundo. Estes alunos começam a fazer parte de uma comunidade de “alfabetizados”. Pois eles estão interiorizando as várias leituras já realizadas, de uma forma muito pessoal, e recebendo os comentário dos outros alunos, e seguem, simultaneamente, enriquecendo e se desafiando quanto a sua própria compreensão do texto. É óbvio que eles podem concordar, discordar e mudar suas opiniões com o decorrer do tempo, pois a literatura nunca é um círculo fechado; há sempre pausas em seu caminho e possibilidades futuras a serem exploradas. Assim concebida, a literatura tem um papel crítico nas vidas dos leitores, muitas vezes sem que se perceba. Ela permite ver vários ângulos e examinar múltiplos pensamentos, crenças e ações, provocando nos leitores uma atitude de permanente construção de pensamento que pode significar uma mudança total de posicionamento frente ao mundo em que se vive. Esta será, certamente, uma experiência subjetiva, por ser um momento em que a literatura passa a ser  interiorizada, ou seja, recorre-se ao mundo interior para procurar significados e proporcionar a perspectiva de ver e  experimentar a literatura dentro de si. Como afirma Ricardo Azevedo: “Tal tipo de discurso tende à plurissignificação, à conotação, almeja que diferentes leitores possam chegar a diferentes interpretações. É possível dizer que, quanto mais leituras um texto literário suscitar, maior será sua qualidade” ( 2004, p.40).

          Quando Judith Langer emprega a palavra “envisioning” (1995, p. 10) esta se refere à totalidade de compreensão que uma pessoa tem, em um determinado momento, acerca de um assunto específico. Esta compreensão abrange as visões particulares do mundo e, portanto, diferem de indivíduo para indivíduo. Também se deve entender que essa compreensão ou visões são dinâmicas e estão sempre abertas para mudanças e novas construções, não podendo ser vistas apenas como uma mera  atividade literária. Sempre que se está lendo, escrevendo ou falando, também se está recebendo visões diferenciadas que chegam à mente do leitor e ajudam a estabelecer sentido no mundo interno e no mundo externo. Assim, conseqüentemente, “envisionments” podem crescer e mudar ao longo do tempo, através do pensamento e através da experiência do leitor, ou seja, a “aprendizagem de um saber sempre é o desenvolvimento de uma “nova maneira de ser” no mundo” (FOUCAMBERT, l994, p. l56).

          A leitura dos textos está diretamente ligada às experiências e valores de vida de cada um. Conforme Bakhtin, “A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida.” (BAKHTIN apud RÖSING, 2003, p.63) Portanto, o leitor experimenta muitas mudanças quando ele interage com um texto em particular. As expectativas vão mudando na medida em que se segue na leitura e se passa a interagir com o texto. O leitor é chamado a preencher as lacunas deixadas pelo autor, usando tudo o que  já sabe e experimentou até aquele momento, pois, como afirma Freire, “a leitura de mundo precede a leitura da palavra” (FREIRE apud RÖSING, 2003, p.62). Esta construção ou participação nada mais é que uma tentativa particular de dar sentido à obra. É um encontro exclusivo  entre o autor e o leitor,  e certamente não se trata de  uma mera experiência lingüística.

          Ao ler, o aluno está desenvolvendo novos pensamentos a partir do texto escrito por outra pessoa  e, mesmo após ter concluído sua leitura, ele poderá apresentar  a sensação de que ainda  é possível somar novas considerações ou discussões em torno do texto. Como diz Vincent Jouve, “sem chegar necessariamente às conclusões extremas do desconstrucionismo, parece que a parte ativa do leitor na construção do sentido afasta a própria idéia de uma interpretação definitiva.” E acrescenta: “o eu que se engaja na obra sempre é, de fato, ele próprio um texto: o sujeito não é nada mais do que a resultante de influências múltiplas”. (1993, p.102) Daí esta atividade ser um processo de natureza essencialmente individual e sem um fim previsível.

          Em relação às atitudes durante a construção do pensamento, Judith Langer coloca que   compreensão é interpretação e que esta interpretação só é possível dentro das opções disponíveis que as pessoas trazem em si – chamadas então de atitudes. Essas atitudes não são lineares e podem acontecer a qualquer momento da leitura, ou até mesmo após ter sido encerrada a leitura do texto, ou seja, em discussões posteriores e se modifica de indivíduo para indivíduo, já que se baseia em padrões pessoais de leituras e as expectativas pessoais que surgem quando da leitura do livro em questão.

          As diferentes atitudes também podem ocorrer simultaneamente e ainda existe a possibilidade de simplesmente não acontecerem. Elas  não  são  ensinadas ou verificadas separadamente, mas mostram como os professores podem orientar o diálogo a ser desenvolvido com os alunos leitores no decorrer do processo da leitura. A divisão em quatro atitudes tem como objetivo dar suporte ao trabalho dos professores, na tentativa de melhor conduzir a construção do pensamento. Nas palavras da autora (LANGER, 1995, p. 14)  há algumas características em cada atitude que devem ser consideradas.

          A primeira atitude é a de estar por fora do texto e começar a caminhar para um pensamento: no início de qualquer leitura, quando ainda o aluno não imergiu na leitura propriamente dita, ele desenvolve uma tentativa de juntar idéias que sejam suficientes para dar algum sentido ao texto, que será lido a seguir. No entanto, não é apenas no início da leitura que isso ocorre – durante todo o processo de leitura, especialmente quando o leitor se depara com novas idéias ou conceitos, ou até mesmo após finalizada a leitura, essa atitude pode ainda permanecer, porque o texto sempre  continua  inconcluso e aberto a novas especulações. Nas palavras de Vincent Jouve, “esse trabalho de previsão, portanto, é tudo menos superficial. Obrigando o leitor a questionar suas interpretações, está na origem dessa  “descoberta de si”, que é um dos efeitos essenciais da leitura [...]” (l993, p. 77).

          Como segunda atitude temos aquela de estar por dentro do texto e mudar através de um pensamento: neste estágio, o leitor está imerso nas leituras de mundo e no texto em si. Agora os significados demandam outros significados e o leitor se sente preso ao texto, testando idéias e mantendo seu pensamento pronto para mudar. É o momento em que os novos dados são processados, a fim de projetar o raciocínio para além do que já se sabe.

          A terceira atitude se caracteriza pelo sair do texto e repensar sobre o que se sabe: este momento é distinto de todos os outros, pois acontece o contrário das outras atitudes. Até agora o conhecimento e as experiências prévias eram usadas para a compreensão e construção do texto. Nesta atitude em particular, o leitor usa o texto para  refletir sobre o que ele já sabia antes da leitura do mesmo. É possível perceber que há uma reciprocidade entre o mundo da ficção e o mundo real e que a literatura pode influenciar a vida, bem como a vida pode influenciar a própria literatura. Apesar da importância desta atitude, ela nem sempre ocorre com a mesma freqüência que as outras, muitas vezes porque não se encontram ligações com a vida real ou também porque não existe uma grande experiência literária que acumule conhecimentos necessários para que ela ocorra.

          Como quarta e última atitude, temos o sair de si e objetivar a experiência: agora acontece um distanciamento do pensamento desenvolvido pela leitura e surge uma reflexão em torno da mesma. Trata-se de um momento em que o leitor se torna crítico, refletindo, analisando, julgando e relacionando o texto com  outros textos e com outras experiências. Percebem-se os pontos de tensão ou de conflito que a obra explora e o leitor questiona-se e reflete sobre o que leu.

          A noção apresentada através das atitudes levanta um outro aspecto importante da literatura, quer seja, a natureza da própria experiência literária. O que faz a diferença entre as maneiras que se compreende a literatura e se sente engajado a ela ou quando seu foco principal é apenas o discursivo? Na verdade, o leitor literário se envolve de muitas maneiras no momento de sua leitura e, dependendo de seus objetivos, ele escolhe onde colocar suas opções referenciais.

          Normalmente a comunidade do leitor, através de sua fala e pensamento, influencia sobre o que ele sabe ou sobre o que ele pensa. A comunidade cultural na qual ele está inserido, com todo o seu legado histórico e sua individualidade, afeta profunda e diretamente a maneira como ele formula as idéias, o que significa que as pessoas abordam a sua experiência literária de diferentes maneiras quando seus objetivos são primeiramente a experiência subjetiva em oposição à situação de ser discursivo. Por subjetiva, considera-se a possibilidade de viver a situação e por discursiva se considera a situação de obter informações. No entanto, isso não quer dizer que uma experiência elimina a outra. Em outras palavras, o que fica colocado é que, em cada experiência literária, há, pelo menos, uma das duas situações, dependendo do propósito da pessoa envolvida na atividade. E em qualquer delas que seja, o leitor tem o sentido do todo, o que o orienta à construção do pensamento e diferentes perspectivas desde o início da leitura.

          Em relação à exploração daquilo que Judith Langer denomina de “um horizonte de possibilidades” (l995, p.26) ela coloca que, quando o leitor trabalha com o texto literário, sua mente se abre para um número infinito de questionamentos, que o podem levar a outras novas e diferentes possibilidades, o que não se afasta muito do que ele faz no mundo real, quando é levado a criar hipóteses sobre determinados fatos que está vivendo. A autora chama a isso de “explorando possibilidades” para ressaltar o fato de que a experiência literária requer abertura e questionamento, ou seja, levantamento de alternativas para o momento e para o futuro.

          Novamente é possível citar Marisa Lajolo que afirma: “Em movimento de ajustes sutis e constantes, a literatura tanto gera comportamentos, sentimentos e atitudes, quanto, prevendo-os, dirige-os, reforça-os, matiza-os, atenua-os, pode revertê-los, alterá-los.” (2005, p.26) É assim que são deixados  espaços abertos e as  interpretações caracterizam-se como inconclusas;  as leituras passam a ser críticas, e os pontos de vista evoluem como questões  ainda não resolvidas.

          Na relação entre a vida e o pensamento, as projeções ou pensamentos elaborados pelos leitores de literatura são marcados por suas próprias experiências, seus objetivos de leitura, suas expectativas quanto ao que o professor deseja e ainda sobre suas percepções do que seja politicamente ou socialmente correto. Portanto, a experiência é única para cada pessoa, na mesma situação ou para a mesma pessoa em outro momento e assim por diante. Se por um lado o leitor é responsável por um importante papel no processo de “aquisição” do texto, não se pode desprezar que o texto e seu autor também influenciam a leitura. Esta tensão existente entre o texto e o leitor ou leitores soma-se a um mundo literário em si mesmo. Em se falando de educação, isso não significa anarquia e sim aspectos que devem ser levados em conta quando da análise do resultado da leitura. A literatura, assim trabalhada, é uma disciplina que pode sistematicamente oferecer oportunidade para que o aluno pratique e desenvolva auto-suficiência de seu pensamento. Veja-se a afirmação de Baudry, citado em Vincent Jouve: “A criança que lê é o objeto de uma transmutação” ( l993, p. 140).

          Dentro do conceito da construção do pensamento, torna-se necessário que o aluno seja considerado como um pensador autônomo, apesar de ser altamente influenciado pela comunidade em que vive. Mais: o aluno, na verdade, está relacionado e participa de várias outras comunidades o que o caracteriza como um ser socialmente complexo, exatamente por associar-se a vários grupos e com eles se identificar. O professor, através dos estudos literários e sendo parte de um desses múltiplos mundos, pode funcionar com um orientador para o aluno, no sentido de fazê-lo conscientizar-se desses inúmeros círculos em que está inserido, como eles se relacionam e/ou se chocam entre si. Também o professor deve saber que cada leitor tem algo para aprender e algo para ensinar, assim como ele próprio, como professor e pessoa. Levando tudo isso em consideração, fica claro que se está trabalhando com uma comunidade que tem sua natureza essencialmente dinâmica em virtude de seus próprios membros que não param de interagir.

          As perguntas exigirão que os alunos exponham seus pensamentos, e o que acontece logo após é que outras e novas idéias vão surgindo e eles começam a encontrar respostas para seus questionamentos e vão acrescentando idéias sobre as quais talvez tenham ou não pensado previamente. Portanto, mesmo que não partilhem das mesmas projeções, eles refletem sobre diferentes idéias e seguem na elaboração de seu pensamento, pois o que acontece nesse momento é resultado de um profundo sentido de abertura e confiança, apesar das diferentes opiniões.

          No decorrer das discussões literárias  os leitores devem estar prontos para ouvir idéias que são ou não iguais as suas, confrontá-las, dar-lhes fundamentação e argumentar. Em resumo: trata-se de uma forma muito especial de preparação para a vida, neste momento de interação e vivência da comunidade literária, quando são respeitadas todas as experiências de vida, anteriores ou não às da escola, e são expostas as habilidades ou aprendizagem que eles (os alunos) conseguiram em suas diferentes comunidades. O professor, como orientador, não deve desprezar este “passado” do aluno e, principalmente, deve orientá-los para que não julguem as idéias como certas ou erradas – são apenas considerações sobre um determinado tema, em uma situação específica, e não conclusões. Este crescimento permanente poderia ser chamado de scaffolding, termo rejeitado por Lange (l995, p.98), mas assim definido por Bortoni “termo metafórico usado para denominar o processo interativo por meio do qual  o professor, como um parceiro mais competente, ajuda o aluno a construir seu conhecimento” (BORTONI, 1999, p. l42).

          Na obra Questões de leitura, Max Butlen assim se manifesta sobre o assunto, em sintonia com Judith Langer:

 “Em face das interrogações dos alunos, os professores devem evitar apressar-se a responder no lugar dos jovens leitores. (...) Daí o interesse e a importância dos momentos de debates, de confrontações e de interpretações. Compete aos professores favorecer o andamento dos alunos em seus percursos interpretativos (...)” (2003, p. 67).

 

          Os alunos são vistos como donos de idéias que podem ser partilhadas e pensadas em grupo de amigos que também são pensadores e com quem repartem o que sabem. Mas, para que isso aconteça, faz-se necessário que se estabeleça que as perguntas feitas pelos alunos são necessárias e absolutamente normais, pois estão todos – alunos e professores – explorando hipóteses e não procurando respostas definitivas. As perguntas são instrumentos capazes de levar o pensamento a se tornar mais complexo e profundo, convidando a uma exploração das infinitas possibilidades. Diferentemente da maioria das abordagens de ensino, a elaboração de perguntas é um padrão de comportamento desejado e reforçado dentro do método proposto por Lange, e as aulas de literatura são momentos para o seu desenvolvimento intelectual.

          Alunos e professores devem ter bem claro que o comportamento inicial em relação a determinado assunto será um, no começo das aulas, e outro, ao final das mesmas, porque as perguntas e respostas formuladas durante este momento deverão promover uma exploração de questionamentos ainda não trabalhados anteriormente. Portanto, ao se deparar com novas idéias, através das respostas do grupo, o aluno terá algo mais com que ampliar, defrontar, comparar e criticar suas próprias idéias, além do crescimento como cidadão que aprende a ouvir e respeitar a opinião dos outros, sem tentar categorizá-las como certas ou erradas, conscientes de suas diferenças e de que todos são participantes e responsáveis pelo processo de construção do pensamento. Eles devem saber que só é errado não formular perguntas e não tentar oferecer respostas.

          Frente ao que até agora foi exposto, o professor assume um papel decisivo. O professor passa a ser o responsável por criar um ambiente onde a provocação mental seja uma constante e a interação entre os alunos e entre estes e o professor seja responsável pelo crescimento de uma necessidade social e comunicativa. Não se pode esquecer que o estudo de literatura, como afirmado anteriormente, é uma atividade essencialmente social e que as decisões tomadas pelo professor devem se fundamentar nessa característica, ao mesmo tempo em que ele respeita a perspectiva dos alunos, conseguindo, assim, sua melhor intervenção.

          Quanto ao apoio dado pelo professor em relação às formas de pensar, ele  deve tornar o aluno alerta para repensar suas idéias e fornecer estratégias para o fazer. O professor deve se concentrar nas idéias que os alunos estão desenvolvendo, ajudando-os a racionalizá-las, a torná-las mais apuradas, e também expandi-las. Em todos os momentos, o professor deve agir como um profundo conhecedor da disciplina e dos seus alunos. Trata-se de uma mudança muito significativa (talvez mesmo radical) na atitude do professor, quando ele passa a ouvir seus alunos e, a partir dessas colocações, desenvolve sua aula, em oposição ao sistema tradicional, quando, mesmo que seja  afirmado que a aula é centrada no aluno, toda a ação do professor é realizada dentro de esquemas previamente estabelecidos, onde ele age como centro da ação educativa.

          Mas o que rejeitar ou aceitar quanto às idéias dos alunos?  Como ponto de partida, todas as idéias serão aceitas, para que o aluno seja estimulado a pensar e estabelecer sua maneira de pensar. Mas da mesma forma que o aluno expõe suas idéias, ele também vai incorporando novas idéias e talvez vai abandonando outras por serem irrelevantes ou não pertinentes. São duas forças que se cruzam neste processo de construção de pensamento. Daí surgir outro questionamento sobre para que avaliar e quando avaliar. Na verdade, dentro desse tipo de ensino de literatura, a avaliação acontece antes, durante e depois; é uma avaliação reflexiva colocada sobre o que os alunos pensavam, pensam e poderiam ter pensado e ainda sobre o que eles poderão pensar no futuro. Mais: esta avaliação reflete sobre a interação que os alunos estabelecem com o texto, levando em conta o que o pensamento do aluno pode mudar em seus diferentes círculos sociais. O professor deve elaborar seus objetivos de avaliação basicamente a partir das estratégias usadas durante as aulas.

          “A criança que não domina as habilidades privilegiadas pela escola não é vista conforme seu desenvolvimento, mas conforme o que lhe falta para atingir o padrão pressuposto pela escola, ou seja, o seu déficit.” (TERZI, 1999, p.95) Ora, a literatura, trabalhada da maneira como tem sido exposta, pode representar um meio eficaz para a inclusão de alunos que representam um desafio ou um problema para o sistema regular, através do desenvolvimento de seu pensamento. Independente de suas deficiências apresentadas pelos alunos, usando a literatura como agora está sendo proposto, os professores podem alcançar bons resultados e desempenhar um papel importante em relação aos problemas que estes alunos enfrentam. Se considerarmos que a literatura é um excelente meio para se refletir sobre si mesmos, sobre os outros, sobre ao modo como vivem e como vivemos, sobre as opções que fazemos, sobre a condição de pessoas humanas, pode-se divisar a importância da literatura como forma de crescimento integral para esses alunos. Através dela os alunos conseguem desenvolver sua auto-estima, desenvolver seu raciocínio e melhorar suas habilidades de leitura.

          A literatura, portanto, torna-se uma forma importante para os professores chegarem até os alunos e para os alunos caminharem para uma melhor condição escolar e social. Como afirma o lingüista argentino Fernando Avendaño “Devemos ler porque é importante, converte-nos em outras pessoas, permite apropriar e modificar a realidade e a si mesmo, dialogar com outros através do tempo e do espaço” (AVENDAÑO apud VASCONCELOS, 2005 p.7).

          Por outro lado, as aulas de literatura podem colocar os alunos como elos entre a comunidade ou suas famílias e a escola, ao valorizar aquilo que é a herança cultural de cada sociedade. No momento em que os alunos são incentivados a trazerem para a sala de aula suas histórias familiares ou as histórias referentes à sua comunidade, a escola está respeitando uma cultura e seus respectivos valores, estabelecendo um caminho de diálogo entre os diferentes mundos, e oferecendo suporte para uma melhoria das condições humanas do próprio aluno. Ratificando com as palavras de Miguel Rettenmaier:

 “Somente na reflexão sobre a maneira como lemos os materiais que se caracterizam como patrimônio cultural de determinadas comunidades, principalmente as excluídas, somente  colocando em crise nossa forma de olhar supostas alteridades culturais, percebendo o quanto de ideológico há em nossas formações científicas, poderemos realmente investir numa forma de estudo que não nos afaste das culturas as quais pretendemos “ler””   ( 2004, p.197).

 

          Assim, o trabalho desenvolvido entre alunos com diferentes carências e problemas, toma uma nova perspectiva. No entanto, e apesar de alguns alunos no início das aulas se manterem calados, para todos eles o ensino da literatura como construção de pensamento pode representar um crescimento significativo, através de uma importante  melhora na leitura, ou no aumento de vocabulário e conhecimentos lingüísticos, ou na aprendizagem e crescimento das habilidades de relacionamento interpessoal, ou no desenvolvimento do raciocínio como um todo.  De uma maneira ou outra, eles têm uma oportunidade de aprender a questionar, respeitar os outros e suas opiniões, usando estratégias úteis ao ambiente escolar e também fora dele. Como diz Vera Teixeira de Aguiar, em seu artigo “Leitura da literatura à luz da história” em Questões de Leitura: “Ensinar literatura, pois, é o modo de resistência do educador à massificação desumanizante operada pela vida cotidiana”. (2003, p. 111).

          No entanto, o ato de pensar nunca vem isoladamente e há uma outra preocupação em relação aos alunos e sua formação acadêmica – como os alunos aprendem os conceitos e o vocabulário técnicos  que estão subjacentes aos textos literários?

          Segundo Judith Langer (l995 p 122), acontecem momentos próprios para o ensino dos conceitos ou da nomenclatura, relacionados com a curiosidade mental dos alunos e com seu desejo de se comunicar melhor. Cabe ao  professor decidir como agir em relação aos alunos, porque são quatro diferentes situações possíveis de acontecer: a) os alunos não sabem nem os conceitos e nem os termos sobre o que estão falando. Quando os alunos não dominam nem os conceitos nem os termos, o professor deverá apresentá-los em momentos em que se concretizar a vontade dos alunos quanto à aquisição dos mesmos; b) os alunos sabem os conceitos, mas não os termos adequados; c) os alunos  não sabem toda a abrangência do termo que usam; d) os alunos têm domínio sobre o conceito e o termo e estão prontos para ampliar seus conhecimentos em torno dos mesmos.

          Dentro dessa abordagem, e mesmo tendo a literatura presente no currículo escolar como disciplina, seu trabalho não estará atrelado meramente a um tipo de texto ou  a um determinado conteúdo, dentro de uma mesma ótica. Em conseqüência, os objetivos do ensino de literatura devem ser diferentes daqueles traçados para o uso do texto literário como disciplina em si mesma.  Apesar dos livros ou textos escolhidos serem fonte de inspiração para o trabalho, ou melhor, ponto de partida para o trabalho, nem sua presença nem seu uso necessariamente oferecem as alternativas necessárias para a ampliação da compreensão advinda da perspectiva literária.

          A integração da literatura às outras disciplinas pode estabelecer laços tanto dentre as atividades como através das disciplinas, e o diálogo deve se manter aberto para perguntas e respostas entre alunos e professores. Mas o processo de “co-ensinar” não precisa ser contínuo, permanente ou mesmo regular e sim tão somente quando parecer produtivo ou benéfico para o aluno, no sentido de estabelecer conexões entre os diversos conteúdos  e o texto, objetivando a  melhor compreensão individual.

          É nesse sentido que a escrita/redação não é vista como algo aparte, mas sim totalmente engajada nesta rede que formam o pensamento e a linguagem.  A integração ocorre naturalmente e sob tão diferentes modalidades que se confunde e é vista apenas como instrumento da própria língua que está disponível para aperfeiçoar  o desenvolvimento do pensamento dos alunos. Pois assim como ele fala sobre a literatura, lê literatura e escreve sobre ela, ele também lê, escreve e fala sobre sua própria literatura criada durante o processo. A escrita, em especial, é vista com a possibilidade de interligar as idéias, fixá-las no tempo e demonstrar uma compreensão que irá impulsionar o crescimento do aluno-leitor. A escrita permite que os alunos desenvolvam seus próprios pensamentos e voltem a discuti-los em outros momentos, tornando-os mais amplos e profundos.

          Em um momento histórico, em que se debate intensamente a marginalização e o poder, a literatura oferece uma possibilidade de criar  perspectivas diferentes para o futuro dos alunos. Isto é possível através de aulas que não projetam tornar os alunos iguais e sim respeitá-los em suas múltiplas vozes, aceitando-os como diferentes e sabendo que é dessa   diversidade que dialoga entre si, dentro do próprio aluno, é que haverá crescimento, sem massificação. Segundo Renata Junqueira de Souza, “O caráter formador da literatura é diferente da função pedagógica. Enquanto o pedagogismo empenha-se em ensinar, num sentido positivista, transmitindo conceitos definidos, a ficção estimula o desenvolvimento da individualidade” (2004, p.64).

          É esperado que o contexto comunicativo desse ensino provoque mudanças e que delas todos participem plenamente. Pois a escola deve ser o lugar onde deve acontecer educação e onde devem ser geradas as mudanças não só dos alunos como também de toda a comunidade em que ele está inserido e com que se relaciona.. Isso deve basear-se na diversidade, ouvindo as variadas vozes e, sabendo-se que se é marcado por todas as experiências vividas, a escola deve ensinar seus alunos a olhar através das muitas perspectivas possíveis para que eles possam construir pontes entre as mesmas e assim mudar o que aí está. É quando a literatura pode ajudar a transformar os alunos em pensadores, oportunizando-lhes atividades que os levem a ver que há sempre alguém que pensa diferentemente, o que não significa erradamente, e que pode ver coisas que ainda não existiam até aquele momento. Ao ouvir as outras vozes, eles crescem em seu próprio conhecimento e percebem como existem diferentes maneiras de ler e ser, baseadas nas individualidades. Assim, o poder das vozes deve ser respeitado para que se possa ser mais humano.

 

REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Ricardo. “Formação de leitores e razões para a literatura.” In: SOUZA, Renata Junqueira de. (org.) Caminhos para a formação do leitor. São Paulo: DCL, 2004.

BUTLEN, Max. “Ler, compreender e interpretar textos literários na escola”. In: RÖSING, Tania e RETTENMAIER, Miguel. (org.) Questões de Leitura. Passo Fundo: UPF, 2003.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: UNESP, 2002.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

LANGER, Judith A.. Envisioning Literature. New York: Teachers College Press, 1995.

LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 2005.

RETTENMAIER, Miguel, “Cultura, escrita e identidade(s): difíceis contornos”. In: RETTENMAIER, Miguel; BARBOSA, Márcia e RÖSING, Tania. (org.) Leitura, identidade e patrimônio cultural. Passo Fundo: UPF, 2004.

RÖSING, Tania M. K.. A formação do professor e a questão da leitura. Passo Fundo: UPF,  2003.

TERZI, Sylvia Bueno. “A oralidade e a construção da leitura por crianças de meios       iletrados”. In: KLEIMAN, Angela. (org.) Os significados do letramento. Campinas (SP): Mercado de Letras, l999.

VASCONCELOS, Maria José. A leitura encanta, instrui e diverte. Correio do Povo, Porto Alegre, 19 de setembro de 2005.