PRÁTICA DE LÍNGUA ORAL NA SALA DE AULA: UMA EXPERIÊNCIA EM CURSOS DE GRADUAÇÃO

 

 

INTRODUÇÃO

 

                       Cada vez mais estudiosos preocupam-se com a língua oral e sua relação com a língua escrita. O que já se sabe é que não basta conhecer todas as regras da língua para transmitir idéias e sentimentos de modo claro e coerente. Ou seja, não se produz um texto ideal, oral ou escrito, pelo emprego correto de formas gramaticais, mas pelo uso de língua mais adequado ao contexto e à situação do momento. Por outro lado, não se produz um texto ideal sem um conjunto de regras da gramática da língua adequada à situação.

                        Sabemos que não se considera, já há duas décadas (Street, 1984), a fala e a escrita em posições antagônicas, com supremacia cultural, ideológica, da segunda em relação à primeira (Kleiman, 1995 a), embora, na nossa sociedade, a escrita chegue a simbolizar a educação necessária para a ascensão social, econômica, cultural do indivíduo, por ser indispensável no dia-a-dia, quase essencial à sobrevivência e adquirida como um bem, no contexto formal, institucional da escola, enquanto a fala, como manifestação da prática oral, é adquirida em contextos informais do dia-a-dia, como forma de inserção no grupo social. (Marcuschi, 2001)

                    A oralidade e a escrita são usos diferentes da língua, com características próprias, mas não opostas. Nas duas, há textos coesos (ou não), é usado o raciocínio abstrato (ou não), há exposições formais e informais, com variações estilísticas, sociais, dialetais.

                    O que existe, de fato, é um contínuo das duas práticas  lingüísticas, nas forma de gradação ou de mesclagem (Marcuschi, 2001), que vai desde a realização mais informal à mais formal, em vários contextos de uso, com vários gêneros textuais. Um exemplo da escrita mais informal poderia ser o letramento não escolarizado:  o indivíduo conhece o valor das moedas nacionais, identifica ônibus, marcas de mercadorias, faz cálculos, sabe assinar o nome; e da fala mais informal, a conversa entre duas irmãs:

-         E aí?

-         Nada ainda.

                    A escrita é utilizada em contextos sociais, em paralelo com a fala: no trabalho, na escola, na família, na vida burocrática, na atividade intelectual, mas nem sempre com a mesma intensidade por todos os usuários. Alguns escrevem e lêem muito pouco durante toda a sua vida e se, porventura, têm necessidade desta prática, solicitam a ajuda de terceiros. Já a fala é um uso comum a todos os falantes da língua. Por isso, interessam-nos os estudos sobre a oralidade, não só em todos os contextos de uso diário, mas também, como professores que somos, principalmente nos de formação escolar formal.

                      Os nossos alunos, desde que dominem o assunto sobre o qual falam, utilizam a norma adequada a seu grupo social e etário. Sua diversidade socioeconômica e regional se reflete nos usos lingüísticos de sua fala, que são a base de sua escrita. Entretanto, eles devem pelo menos ser conscientizados pelo professor da existência de outra norma dialetal, exigida em determinadas situações sociais e profissionais, de um indivíduo com curso universitário.( Silva, 2004)

                        O trabalho de ensino da língua materna deve ser um processo de enriquecimento do potencial lingüístico do falante nativo, que é um sujeito ativo da comunicação, por outro falante nativo (o professor), que também é um sujeito ativo e não um aplicador de conteúdos lingüísticos programáticos e de metodologias (GERALDI,1984).

                          Fugindo das duas posições extremistas no ensino da língua portuguesa: a que todos devem se curvar e obedecer às regras da gramática normativa, como a única norma a se seguir e a de que devemos “respeitar” o dialeto com que o aluno chega à escola, sem impor-lhe a norma dialetal “da classe dominante”, por considerar que qualquer uso lingüístico é adequado a qualquer usuário em qualquer situação de comunicação, defendo que devemos dar aos nossos alunos a possibilidade de conhecer a multiplicidade de usos da língua, além do que já utiliza, desde os mais populares até os acadêmicos, passando pelos regionais. O sujeito da comunicação deve ter o poder de escolher, dentre as normas dialetais que conhece da sua língua materna, qual a que melhor lhe convém em cada situação, presente ou futura.

                         Consciente desta diversidade natural, o estudante deverá ser capaz  de discernir quando utilizará uma ou outra variante, conforme as necessidades, exigências sociais e situações comunicativas em que se encontre.

                          A maioria dos alunos ingressantes nas universidades são provenientes de segmentos populares em que a oralidade é o uso lingüístico dominante e, às vezes o único (muitos são a primeira geração da família a ir para a escola). Por isso, trabalho, no aperfeiçoamento da língua materna para novos usos, primeiro a oralidade, depois a escrita, aproximando o dialeto do aluno ao do professor, comparando-os para mostrar quais as regras de um e de outro e como passar de um para o outro, sem nunca estigmatizar qualquer um deles.

                         Para regular a fala e a escrita do aluno aos padrões de uso da instituição-escola, cujas formas de comunicação “ideal” para a socialização do aluno são a escrita e a leitura, é necessário ensinar alguma gramática. Ela terá, portanto, por objetivo ajustar os usos diversificados do falante nativo, antes livre da instituição, às normas do uso idealizado como “corretas/adequadas”[1]. Mesmo sem uma rigorosa sistematização, o aluno vai sendo capacitado a decodificar textos falados, escritos, lidos, a observar as possibilidades dos usos lingüísticos, a reconhecer estruturas possíveis e impossíveis na língua materna, incompatibilidades semânticas, traços fonológicos que se manifestam em alofones, enfim, a pensar o funcionamento da língua, sem grandes teorizações gramaticais. Noções explícitas, coerentes, conectadas sobre a estrutura interna da língua levam o aluno a considerar este tipo de estudo necessário e até mesmo útil ao seu uso claro e coerente. Dá-se, então, a tomada de consciência gramatical da língua, que alguns lingüistas julgam desnecessário, como se pudéssemos desenvolver nossas competências comunicativas sem explicar as regras que estruturam as línguas e permitem o seu funcionamento.

 

 

                        

METODOLOGIA

 

 

                            No início do contato com uma nova turma de alunos, geralmente do 1º ou 2º ano de graduação de qualquer curso em que eu vá atuar (Letras, Relações Públicas, Turismo, Ciências Contábeis), explico aos alunos o trabalho que vou desenvolver em sala nos primeiros quinze minutos de cada aula, para mim prioritário, embora não envolva um conceito ou nota de avaliação, com que eles sempre se preocupam: serão chamados dois ou três alunos, que deverão comentar uma notícia ou reportagem da semana que leram em jornal ou revista de informação. Falarão sentados em seus lugares, enquanto anoto o que vou comentar: marcadores conversacionais, pronúncia de palavras, emprego do léxico, concordância, regência, emprego e colocação de pronomes. A linguagem de todos os alunos será avaliada no semestre, sem prévia determinação, mas eles poderão oferecer-se como voluntários, em qualquer aula.

                            Explico-lhes, repetidas vezes, o objetivo do trabalho: sem estigmatizar qualquer uso de qualquer aluno, quero mostrar-lhes a diferença entre o emprego da forma em questão na fala formal e por quê.

                            Em poucas semanas, o trabalho torna-se rotineiro e a apreensão de falar em “público” desaparece, para a maioria dos alunos.

                            No final do semestre, peço aos alunos que avaliem este trabalho anonimamente ou não, como preferirem.

 

 

ANÁLISE DOS DADOS

 

Vou separar algumas das ocorrências apenas para uma apresentação didática dos fatos lingüísticos observados, pois, quando o aluno termina de falar, faço os comentários para toda a sala (raramente me dirijo a um só).

 

 

Fonética:

 

hómem ou ómi > ômey     /   fómi, pronómi, nómi > fômi, pronômi, nômi

õti > õtey

tá > stá

subizidiados > subsidiados

quero vim > vir

tudas menina > todas as meninas

tudu mundo > todo mundo

tamém  > também

déis, treis, portugueis, arrois > dez, três, português, arroz

cadera, mantega, pexe, dotor, oro > cadeira, manteiga, peixe, doutor, ouro

num vô > não vou

róba > rouba

 

Léxico

 

são categóricos e convencidos > convincentes

era muito dificultoso...

quais são os maus (males)...

algo que é tomado contato...

área que dá assessoramento a toda a diretoria...

virtualmente por enentualmente...

exerci este sistema até...

pessoas alcoólicas...

 doença é no sentido dos frangos para o homem...

 

Regionalismos:

 

Vim estudar pra cá.

Nós somos em sete funcionários...

 

Gíria :

 

Meter a cara

Eles tão dando uma força...

monte de gente...

monte de coisa...

é onde que estraga...

não esquento a cabeça...

vou me virar...

foi uma armação...

influencia pra caramba as pessoas...

super pouca gente...

o preço era super caro...

está sendo uma barra...

roubalheira...

é muito legal...

é uma coisa...

 

Morfologia

 

Verbos:

 

Estar incentivando ela...

pra ela tar se informando...

pra que eles possa estar se integrando na sociedade...

pra que eles possa tar se desenvolvendo...

que eles deveriam estar procurando.

a não ser que quiser...

embora eu faço...

talvez eu usei...

talvez ele pode transmitir...

 

Nomes:

 

degrais

corrimões

 

 

Sintaxe

 

 

a) concordância nominal e verbal:

 

não é usado muito a escrita..

deveria ser feito alguma coisa...

foi feito uma reportagem...

eu vi como as pessoas são maltratados...

está limitado pra mim os serviços...

tenho uma dó...

a prefeitura tem livre os 34%...

com as entidade doadora...

elas mesmo faz tudo....

entre nós mesmo...

umas colocações muito interessante...

foi maravilhoso a minha experiência...

as pessoa tenha consciência...

quando entra casos como este...

começa a surgir várias pessoas...

pessoas que não faz parte deste mercado...

o pessoal que eu vou trabalhar são legais...

aparece várias cenas pronográficas...

veio os gastos...

Os Estados unidos seria o mais desenvolvido...

seis matéria que cai no vestibular...

fazem vinte dias...

pra ela não ficar na rua até tarde...

ia crescendo os clientes...

todos os documentos que vai pro banco...

a maioria não acreditam...

ocorram tratamento igual...

eles procuraram uma forma de se vingarem...

o serviço e a escola é tão cansativo que...

 

 

b) regência nominal e verbal:

 

medo em errar...

tenho certeza que eu seria...

até ao centro...

fico insegura em não ter...

estou procurando já para dar aula...

eu tô dedicando na faculdade pra...

ou optei certo...

debatendo em cima disso...

são cobrados integralmente da tarifa...

impor sobre gerentes que antes eu era subordinado...

por ser de cinco anos as crianças...

não estão preocupando sobre este aspecto...

eu estava lendo sobre uma reportagem...

 

c) emprego e colocação dos pronomes:

 

saná ele

pra mim vim trabalhá...

pra mim ter um cálculo...

gostaria de te informar que você...

levar ele...

estar incentivando ela...

acompanho ele...

mais fácil você manipula...

 

d)     emprego do pronome relativo que:

 

o pessoal que eu vou trabalhar...

assunto que eu li alguma coisa esta semana...

muitas pessoas que eu tenho contato...

uns bolinhos que ela presenteava todo mundo...

O hospital que meu pai trabalhava...

...um menino de cinco anos que ele...

é uma coisa que eu gosto...

uma coisa que eu não estava acostumada...

garota que eu nem sei o nome dela...

trabalho numa firma que eu faço tudo...

 

e) emprego do pronome relativo onde:

 

estou falando daonde es estou trabalhando...

na carta dela aonde...

nos países aonde a pena de morte foi aceita...

aula onde o professor falou...

linguajar especial onde inclui uma série de palavras...

...um roteiro a pé mesmo, onde...

uma língua onde todos pudessem falar a mesma língua...

 

                   Além de mostrar aos alunos como seriam ditas essas suas palavras e expressões em um uso formal, alerto-os, ainda, sobre o emprego excessivo dos marcadores conversacionais né?, entendeu? , sabe..., assim ..., tá?, aí..., daí..., daí então..., sei lá..., certo?, a ponto de perturbar sua comunicação com o seu interlocutor . Neste caso, considero que eles passam a ser cacoetes que precisam ser eliminados da fala culta pela conscientização de seu uso.

 

 

CONCLUSÃO

 

 

                        Por a oralidade e a escrita serem duas práticas sociais de produção textual, suas diferenças acontecem em um contínuo que vai desde a fala mais informal até a escrita mais formal. Apesar de esta ser uma verdade lingüística, a fala informal, marcada por desvios da norma-padrão consagrada pela escola como instituição pode levar à estigmatização do indivíduo na nossa sociedade, impedindo-o de ter acesso, por exemplo, a um emprego em que possa demonstrar a sua capacidade intelectual.

                        Por outro lado, as diferenças entre as regras de uso da fala informal utilizada pelo aluno e da formal, que são praticamente as mesmas da escrita, podem ser tantas e tão variadas, que o impeçam de entender o que lê, mesmo que seja uma notícia de jornal. Isto é trágico, se imaginarmos alunos do 3º grau, que é profissionalizante, que só adquiram o conhecimento em aulas presenciais, pois não conseguem ler e entender nem mesmo uma apostila simplificada pelo professor, que, por isso mesmo, em sua grande maioria, nem se atreve a pedir-lhes que leiam livros completos.

                          Venho fazendo o trabalho de adaptação do dialeto do aluno ao registro culto há vários anos e vou continuá-lo, porque noto, ao fim de cada semestre, uma  mudança significativa no seu comportamento lingüístico: eles passam a fazer perguntas sobre usos da língua, a fazer observações que denunciam o seu interesse pela língua materna, e isso é gratificante.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

GERALDI, W. 1984 . Escrita, uso da escrita e avaliação. In: O texto na sala de aula, leitura e produção. Campinas, UNICAMP.

KLEIMAN, Ângela. 1995a. Modelos de letramento e as práticas de alfabetização na escola. In KLEIMAN,  A. (org.) Os Significados do Letramento. Uma nova perspectiva sobre a Prática Social da Escrita. Campinas, Mercado das Letras.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. 2001. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 3ª ed.. São Paulo, Cortez

STREET, Brian V. 1984. Literacy in Theory and Practice. Cambridge, Cambridge University Press.

SILVA, Rosa V. Mattos e. 2004.  O Português são dois: novas fronteiras, velhos problemas. São Paulo, Parábola Editorial.



[1] O “certo/errado “ da tradição gramatical, depois das teorias lingüísticas da Análise do Discurso, foi substituído por expressões menos coercitivas: “adequado / inadequado”.