FUNDAMENTOS DO SISTEMA ALFABÉTICO DO PORTUGUÊS DO BRASIL: PRINCÍPIOS APLICADOS PELO LEITOR        

 

Leonor Scliar-Cabral [1]

 

Neste artigo, examinaremos como se aplicam os princípios do sistema alfabético do português do Brasil por um leitor proficiente.

1 Intencionalidade

A leitura começa por uma intenção por parte do leitor, desde a busca de informação, de um momento de lazer, de prazer estético e assim por diante.

2 Pré-leitura

 Suponhamos que esteja lendo um jornal, no qual terá preferências por seções como os editoriais, o noticiário internacional, a página esportiva, os anúncios classificados, ou a coluna social. Ao selecionar qualquer uma destas seções, os títulos ou subtítulos acionam um ou mais esquema(s), ou marco(s), ou roteiro(s) de sua memória (isto é chamado de pré-leitura), o que garantirá a atribuição dos sentidos às palavras, adequados ao texto.

3 Fixação e fatiamento

Iniciada a leitura do texto propriamente dito, no momento de fixação do olhar, que é precedido e seguido por movimentos em sacada, ocorre o primeiro fatiamento, através das pistas fornecidas pelo impresso, em geral, sinais de pontuação, maiúsculas ou outros operadores, combinadas com o conhecimento sintático internalizado (conforme se verifica, adotamos um modelo de processamento interativo e compensatório).

4 Descodificação propriamente dita

Uma vez reconhecidas e identificadas as letras, pelos princípios que explicaremos a seguir, um certo número delas é suficiente para a identificação da palavra (o que se costuma denominar por descodificação propriamente dita), com suas informações sobre se é substantivo ou verbo, se está no singular ou plural, etc.; a seguir, é atribuído o sentido.

5 Do processamento das microestruturas à compreensão textual

A articulação dos sentidos das palavras numa frase constitui uma micro-estrutura provisoriamente arquivada na memória operacional e assim sucessivamente, até se chegar à compreensão do texto. Quando o leitor não possui em sua memória lexical o item cujas letras identificou (uma palavra com a qual esteja se defrontando pela primeira vez), terá que atribuir o sentido graças principalmente à informação que provém do impresso.

O reconhecimento e identificação das letras que representam os grafemas e seus respectivos valores para que se dê a busca das palavras e seu acesso, no sistema da língua portuguesa do Brasil, ocorre através de quatro meios, fundamentalmente. (Observe que nas regras de conversão usamos a transcrição fonológica, por economia. Na realidade, o leitor converte os grafemas às unidades tais como são realizadas em sua variedade sociolingüística.) Ilustraremos com algumas regras de descodificação, tais como foram formalizadas por Scliar-Cabral (2002):

Regra D1: correspondência grafo-fonêmica independente de contexto

Regras D2: correspondências grafo-fonêmicas dependentes do contexto grafêmico

Regras D3: dependentes da metalinguagem e/ou do contexto textual morfossintático e semântico

Regra D4: valores da letra “x” dependentes exclusivamente do léxico mental ortográfico

 

Regras de descodificação

Observe que, na notação “__ V”, a letra V poderá ser lida como a descodificação das letras “i” ou “e” e “u” ou “o” na semivogal /w/ ou /j/, se o hiato puder ser dito como ditongo crescente.

 

Regra D1

Regra de correspondência grafo-fonêmica independente de contexto (veja a interpretação dos símbolos no final).

A correspondência grafo-fonêmica independente de contexto significa que uma ou duas letras (os grafemas) sempre corresponderão à realização do mesmo fonema, seja em que posição ocorrerem na palavra. Daremos a seguir cada uma das correspondências, com o respectivo exemplo:

“p”à /p/ “pato”; “b”à /b/ “bola”; “t”à /t/ “tatu”; “d”à /d/ “dado” (os fonemas são [-contínuos] e sua realização não pode ocorrer isoladamente). Observe-se que, quando “t” e “d” estiverem antes da letra “i” ou da letra “e” lidos como [i] ou semivogal [j], na maior parte das variedades sociolingüísticas africam e palatizam, lendo-se como [d½] e [t§], respectivamente, como em “dia” e “tia”. O grafema “lh” em algumas variedades se converte em /j/, como em “folha”à /foja/. “f”à /f/ “café”; “v”à /v/ “uva”; “ss”à /s/ “massa”; “ç”à /s/ “moça”; “sç”à /s/ “desço”; “ch”à/§/ “chave”; “j”à/½/ “janela”; “nh”à /µ/ “tinha”; “lh”à /ñ/ “velha”; “rr”à /R/ “carro”; “â”à /‘ã/ “lâmpada”; “á”à /‘a/ “água”; “ó”à /¿/ “óculos”; “ü”à /w/ “sagüi”; “ã”à /ã/ “rã”; “õ”à /õ/ “põe”.

Por favor, não utilize cartilhas que enfileiram “textos” como pretexto, os chamados textos matraca, para introduzir os grafemas: os textos para receberem tal nome devem fazer sentido para o leitor!

 

Regras D2

Regras de correspondência grafo-fonêmicas dependentes do contexto grafêmico

Há regras de correspondência grafo-fonêmicas, pelas quais os valores fonéticos atribuídos a uma ou duas letras (grafemas) dependem da(s) letra(s) que a(s) precede(m) e/ou segue(m), e/ou da posição que ocupam no vocábulo. Para fins de generalização, usamos a transcrição fonológica, mas deve ser entendido que o leitor converte os grafemas aos sons da variedade sociolingüística que internalizou. (Obs.: o que está entre colchetes é o traço fonético constante do fonema representado pelo grafema à esquerda.)

 

Regra D2.1                    

                             

               /s/                               # __                           

“s”à                     /     “n”+,“l”+,“r”+__                                                                    

              /z/                        “V”+   __  “V”                      

                                                                      

 

 

Deve-se ler a regra acima, da seguinte forma: o grafema “s” se lê como a  transposição à realização do fonema /s/, quando estiver em início do vocábulo, como em “sapo”, ou quando, em início de sílaba, estiver depois das letras “n”, “l” ou “r” como em “ganso”, “bolsa” e “urso”; o grafema “s” se lê como a transposição à realização do fonema /z/ quando estiver entre as letras que representem as vogais ou semivogais como em “mesa”, “deusa”, “casual”, “Ásia”. Observe-se que a letra “n” na regra D2.1 está nasalizando a vogal precedente e que o “l” é lido na maioria das variedades sociolingüísticas como a semivogal [w], mas, como estamos vendo, o valor dos grafemas é determinado pelas letras que os circundam e não pelos fonemas.

 

 

Regra D2.2

 

        “c”

    “sc”                /s/          __“V[-post]”

    “xc”

                             à                  /

     c”                   /k/               “V[+post]”

                                        __        “l”

                                                   “r”

 

 

 

Deve-se ler a regra 2.2 da seguinte forma: os grafemas “c”, “sc” e “xc” se lêem como a transposição à realização do fonema /s/ quando estiverem antes das letras que representam a realização das vogais [-post], com ou sem diacríticos, como “i” e “í”; “e”, “ê” e “é”. Exemplos: “cinema”, “cinco”, “nasce”, “prescindir”, “excitar”; o grafema “c” se lê como a transposição à realização do fonema /k/ nos demais contextos, isto é, antes das letras que representam a realização das vogais ou semivogal [+post], com ou sem diacríticos, como “u”,  “ú”; “o”, “ó” , “ô”, “õ”; “a”, “á”, “â”, “ã” e antes das letras “l” e “r” (encontro consonantal na mesma sílaba). Exemplos: “cubo”, “seco”, “catacumba”; “percorrer”, “escombro”, “cola”, “facões”, “cândido”, “cães”; “cravo”, “clave”, “coelho”. Exclui-se, pois, da regra a letra “c” quando figura no grafema “ch”.

 

Regra D2.3    “s”  à     S    / __+“C [Œ son]”

 

O grafema “s” em final de sílaba interna de vocábulo vai ser lido de várias formas, dependendo da variedade sociolingüística do leitor e da letra que representar consoante na sílaba seguinte. Por exemplo, na palavra “pasto”, se o leitor for carioca, lerá [‘pa§tu], (isto é, usará a [+obstr, +cont, -ant, +cor, -son], tradicionalmente conhecida por fricativa palatal surda); se for gaúcho, lerá [‘pastu], (isto é, usará a [+obstr, +cont, +ant, +cor, -son], conhecida como fricativa alveolar surda). O mesmo leitor carioca lerá a palavra “mesmo” como [‘me½mu], (isto é, [+obstr, +cont, -ant, +cor, +son], conhecida como fricativa palatal sonora) enquanto se for gaúcho lerá [‘mezmu], (isto é, [+obstr, +cont, +ant, +cor, +son], conhecida como fricativa alveolar sonora). Como a palavra não mudou de significado, ocorreu,  em virtude da variedade sociolingüística e do contexto fonético, a neutralização das funções dos traços: por isto, utilizamos o  S  maiúsculo entre barras paralelas, para simbolizar o arquifonema que reúne todos os traços mencionados. O [Œson] significa que  S  , em sua realização, copia o traço sonoro se a letra seguinte representar uma consoante sonora, ou seja, “b”, “d”, “g”, “v”, “m”, “n”, “l”  e “r” e copia o traço [-son], se ela representar uma surda, isto é, “p”, “t”, “c”, “q” e “f”, conforme os exemplos “lisboeta”, “transdução”, “esgoto”, “desvario”.

 

Regra D2.4

 

   “s”    à     S     /  __#

   “z”            

                                                                        

 

Pela regra 2.4 tanto os grafemas “s” quanto “z” quando vierem em final de palavra são transpostos para as realizações do arquifonema   S  . Poderão ocorrer os seguintes contextos escritos: 1) sinal de pontuação que assinala pausa silenciosa: neste caso, se lêem  como [+obstr, +cont, -ant, +cor, -son], se o falante pertencer a uma variedade como a carioca, ou [+obstr, +cont, +ant, +cor, -son], se pertencer a uma variedade como a  paulista, como em “Eu fiz.” ou “Eu quis.”; 2) grafema que represente uma consoante, iniciando a palavra seguinte: neste caso, se estende a regra D2.3 à leitura do grafema “z”, como nos exemplos “Eu fiz tudo.” e “Eu quis brincar.”; 3) grafema que represente vogal iniciando a palavra seguinte: neste caso se estende a parte final da regra D2.1, isto é, no contexto intervocálico, à leitura de “z”, ou seja, “s” e “z” serão lidos como [+ant, +cor, +son], como em: “Eu fiz assim.” e “Eu quis amar.” No contexto 3) ocorre uma reanálise silábica (sândi externo), /ew-ki-za-maR/, conforme a formalização abaixo:

   “s”        à /z/ / “V+__V”

   “z”

 

 

Regra D2.5

 A regra D2.5 diz respeito à leitura de “z” em início do vocábulo como em “zebra” e em início de sílaba, antes de letra que represente vogal, como em “fazer”, “belzebu”, “catorze”, “bronze”, “judeizar”, isto é, terá sempre o valor da realização do fonema /z/, ou seja, [+obstr, +cont, +ant, +cor, +son]:

 

                             

 “z”  à  /z//    # __

                            + __ V”

 

 

Regra D2.6

 

 


           D2.6.1          S             “e__+C[-son]”

           D2.6.2           S            “e__+-C[+son]”

           D2.6.3       /z/             #“(pref) e+ __ V”     (forma marcada: “exu”)

           D2.6.4      /k(i)S/  /  “V”__ #

                “x” à                              #

                                                       “ei+

           D2.6.5         /§/                               “ou+    __V”

                                                         “ai+                        (forma marcada:“trouxe”) 

                                                        “n+                      e derivados)

 

 

A regra D2.6 dá conta da leitura previsível do grafema “x”, conforme o contexto gráfico onde ocorrer.

D2.6.1 Pode ser interpretado como a transposição gráfica do grafema “x” às realizações do arquifonema   S  quando, em final de sílaba, figurar depois de letra “e”, antes de letra que represente fonemas [-son], isto é, as letras “p”, “t”, “c” e “f”; a leitura será, então, [s] ou [§], dependendo da variedade sociolingüística do leitor, como em “explicar”, “texto”, “exclamar”, “exfoliação”. A ocorrência, neste contexto, de letras que representem outras vogais antes do “x” é rara, em empréstimos como “oxfordiano” e “foxtrote”, ficando fora da regra D2.6.1.

D2.6.2 Observe que a ocorrência de “x”, em final de sílaba, depois de “e” e antes de letras que representem as consoantes [+son] é marginal, como em “sexdigital”. Em geral, nestas raras ocorrências, o prefixo “ex” vem seguido de hífen, como em “ex-voto”, “ex-libris”, empréstimos do latim. O “x” é então transposto às realizações do arquifonema  S  , lido como [z] ou [½], dependendo da variedade sociolingüística do leitor.

D2.6.3 Se a palavra for iniciada por “e” e o “x” começar a sílaba seguinte, isto é, estiver antes de uma letra que represente vogal, o fonema que lhe corresponde é /z/. A anteposição de um prefixo não invalida a regra, como em “exato”, “inexato”, “examinar”, “reexaminar”, “exumar”. “Exu” é exceção.

D2.6.4 Se o “x” figurar em final de palavra, depois de letra que represente vogal, os fonemas que lhe correspondem são /kS/, num registro mais elaborado, mas a leitura mais freqüente é interpolar uma vogal epentética, como em /kiS/, seguindo a tendência do português do Brasil de rejeitar encontros consonantais na mesma sílaba que não sejam com /l/ e /r/. São exemplos as palavras “tórax”, “sílex”, “Marx”.

D2.6.5 O “x” corresponderá à realização do fonema /§/ nos seguintes contextos, seguido de letra que represente vogal: em início de vocábulo, como em “xícara”; depois das letras que representam ditongos como em “ei”, “ou” e “ai”, por exemplo, “deixar”, “trouxa” e “caixa”; inciando a sílaba seguinte, depois da letra “n”, ao nasalizar a vogal representada pela letra precedente, como em “enxame”, “xinxim”. Observe a forma marcada “trouxe” e derivados, onde o “x” é lido como [s].

 

Regra D2.7

 

                 /½/            “V[-post]”

                                  

                                                                                     

                                                                      

            “g” à                  /__          “V[+post]”                              

                              /g/              

                                       “l”,“r”                                                                                                                                                              

 

                                              

Pela regra D2.7, o grafema “g” se lê como a realização do fonema /½/, antes das letras, com ou sem diacrítico, que representam as vogais [-post], ou seja, “i”, “í”, “e”, “ê” e “é”. Exemplos: “girar”, “legítimo”, “rege”; “gelo” (subst.), “gênero”, “gente”, “gelo” (verbo), “gélido”, “efígie”; o grafema “g” se lê como a realização do fonema /g/ nos demais contextos, isto é, antes da letra “ü” (que representa a semivogal /w/), como em “ágüe”; antes da letra “ú” (que representa a vogal [+post, +alt]) como em “averigúes”; antes do grafema “u”, seguido das letras “o”, e “a”, com ou sem diacríticos, como em “o”, “õ”, “a”, “á” e “ã”, conforme os exemplos “averiguo”, “saguões”, “água”, “averiguável”, “saguão”; ou antes do grafema “u”, seguido de letras que representam qualquer consoante, como em “agudo”, “alguma”, “agulha”, “segura”; o grafema “g” se lê ainda como a realização do fonema /g/ antes de letras “o” e “a”, com ou sem diacríticos, como “o”, “ô”, “ó”, “õ”, “a”, “á”, “â”, “ã”, conforme os exemplos “golo”, “agônico”, “longo”, “vagões”, “gola” “gótico”, “lago”, “saga”, “agregávamos”, “monogâmico”, “vagão”, “arrogância” (nalguns exemplos, a letra “n” funciona como um diacrítico para nasalizar a vogal precedente); e antes de “l” e “r”, nos encontros consonantais, como em “grade”, “glória”. Observe a distribuição dos valores do grafema “g”, como /½/ antes das letras que representam as vogais [-post] e /g/ nos demais contextos: no caso de letra que represente vogal, esta deverá ser [+post]. Portanto, para que a letra “u”, não invalide a leitura de “g” como a realização de /g/, há duas condições alternativas a serem preenchidas: 1) se for seguida das letras “e” ou “i” com ou sem diacríticos, deverá vir com trema ou acento agudo; 2) ser seguida das letras “o” ou “a”, com ou sem diacríticos. Resumindo a distribuição básica dos valores atribuíveis ao grafema “g”: lê-se como a realização do fonema /½/ antes de letras que representem as vogais [-post] e de /g/ antes das letras que representam as vogais [+post], a semivogal /w/ e de “l”e “r.

 

Regra D2.8

 

“gu”à /g/ /__ “V[-post]”

 

O dígrafo “gu” lê-se como realização do fonema /g/ antes das letras “i” e “e”, com ou sem diacríticos, como em “seguir”, “seguinte”, “amarguíssimo”, “português”; a letra “e”, sem diacríticos, representa tanto a realização da vogal [-post, -alta] /e/, quanto a vogal [-post, +bx] /«/, e a vogal postônica [-post, +alt] /i/, na maioria das variedades sociolingüísticas, como em “guerrear”, “seguem”, “guerra”, “segue”; “é” representa tanto a realização da vogal oral [-post, +bx], quanto da vogal nasalizada [-post, -alt] no ditongo final em oxítonos, como em “gongué”, “alguém”.

 

Regra D2.9

 

“qu” à /k/ /__ “V[-post]”

 

O dígrafo “qu” lê-se como a realização do fonema /k/, antes das letras “i” e “e”, com ou sem diacríticos, como em “quilo”, “quinto”, “químico”, “laquê“; “e”, sem diacríticos, representa tanto a vogal [-post, -alta] /e/, quanto a vogal [-post, +bx] /«/ e a vogal postônica [-post, +alt] /i/ (na maioria das variedades sociolingüísticas), como em “querer”, “quente”, “quero”, “leque”; “é” lê-se tanto como a realização da vogal oral [-post, +bx], quanto da vogal nasalizada [-post, -alt] no ditongo final em oxítonos, como em “caquético”, “aquém”. As letras “i” ou “e” podem, ainda, representar a semivogal /j/ quando o hiato for lido como ditongo crescente, como em “quieto” ou “branquear”.    

 

Regra D2.12

 

 


                                 “e”

                         “m”                            “ê”         

              à /j~/            “é”      __ #                           

 

  “n”                          “e”       __(“s”)#                      

                                 “é”                                   

                     

 

 

A letra “m” depois da letra “e” com ou sem acentos gráficos, quando estiver em final de vocábulo, ditonga e nasaliza a vogal precedente, como em “ele tem”, “eles têm”, “ele contém”, “bem”, “alguém”, “homem”; a letra “n”, seguida ou não da letra “s”, em final de vocábulo, depois de “e” e “é”, tem o mesmo efeito, como em “tu tens”, “tu deténs”, “hífen”.

 

VOGAIS

 

D2.18.1 Leitura do circunflexo

 

 

     “ê”            /‘e~/                  “m”+

                                              “n”+

                                              “m”#

     “ô”  à     /‘õ/      /  __       “m”+                          

                                                   “n”+

 

   “ê”             /‘e/               ...

   “ô”             /‘o/

 

 

As letras “ê”, “ô”, quando não seguidas das letras “m” ou “n”, na mesma sílaba, devem ser lidas, respectivamente, como representando a realização das vogais orais com maior intensidade [-alt, -bx] /‘e/ e /‘o/, inclusive nos monossílabos, como em “lêvedo”, “tônus” e “pôs”. Quando as letras “ê” e “ô” forem seguidas das letras “m” ou “n” na mesma sílaba, devem ser lidas, respectivamente, como a realização das vogais nasalizadas /‘e~/ e /‘õ/ com maior intensidade, conforme os exemplos “têmpora”, “ênfase”, “cômputo” e “ênfase”. Na regra 2.18.1 deixa de figurar o grafema “â”, por ter leitura unívoca e já constar da regra D1. Observe-se que o circunflexo na última sílaba (oxítonos ou monossílabos tônicos) só ocorrerá sobre o “e”, seguido de “m”, nas terceiras pessoas do plural do presente do indicativo dos verbos “ter”, “vir” e seus derivados. Neste caso, o “ê” será lido como [‘e~], centro silábico do ditongo [‘e~j]: o circunflexo atua como um acento diferencial morfossintático, uma vez que diferencia as terceiras pessoas do plural das do singular, como em “eles têm” versus “ele tem”; “eles contêm” versus “ele contém”, servindo, portanto, como marca coesiva.

 

Regras D3

Dependentes da metalinguagem e/ou do contexto textual morfossintático e semântico

Regra D3.1

A forma padrão canônica do vocábulo da língua portuguesa, quanto ao acento de intensidade, é o vocábulo paroxítono, por isto, estes vocábulos, só mediante certas condições recebem o acento gráfico. Em decorrência, todo o vocábulo com duas sílabas ou mais, sem acento gráfico, deve ser lido como paroxítono, isto é, com acento de intensidade na penúltima sílaba, como por exemplo, “casa”, “porta”, “comida”, etc., salvo raros vocábulos com duas sílabas átonos, como, por exemplo, a preposição “para” e a combinação da preposição “por” mais os artigos definidos “o(s)” e “a(s)”, como “pelo(s)”, “polo”, cuja atonicidade só é percebida na cadeia da leitura e não quando lidas isoladamente.

Regra D3.4.1 A atribuição dos valores de vogal [-bx] ou [+bx] às letras “e” e “o” nas demais situações, quando não vierem marcadas por diacrítico, depende da aplicação de conhecimentos morfossintáticos e semânticos à posição que o item ocupa na frase, combinados com o emparelhamento no léxico mental ortográfico e a respectiva realização de seu valor fonológico, como, por exemplo, “Ele pensa deste jeito” (combinação da preposição com o pronome demonstrativo) em oposição a “Deste o livro ao João?” (verbo).

D3.4.2 A aplicação de conhecimentos morfossintáticos permite, por exemplo, a utilização das regras de metafonia verbal, internalizadas precocemente no processo de aquisição da linguagem. Sendo assim, identificado “gosto” como verbo, na cadeia “eu gosto”, o “o” será lido como a realização de /¿/, em virtude da harmonia vocálica entre a vogal do radical /o/, com a vogal temática subjacente da 1ª conjugação /a/. A sistematização abaixo permite atribuir os valores de [+bx] ou [-bx] às letras “e” e “o”, a partir da derivação verbal do sistema do presente. A numeração a seguir é específica para a descodificação dos verbos.

 

DV1. Sistema do presente

DV1.1 Formas rizotônicas: todas do singular e 3ª do plural

Observe que a vogal temática, na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo, foi assimilada na superfície pela desinência de pessoa e número, mas continua tendo seus efeitos sobre o radical, que é uma forma rizotônica, ou seja, recebe o acento de intensidade em todas as pessoas do singular e terceira do plural.

Sendo assim, se o radical contiver, no infinitivo, como última vogal uma [-alt, -bx], isto é, /e/ ou /o/, redundará na 1ª pessoa do singular na aplicação da regra da harmonia vocálica: na 1ª conjugação tornam-se [+bx], ou seja, /«/ ou /¿/, como em “eu pelo”, “eu voto”, salvo se depois delas ocorrer uma consoante [+nas], /m/, /n/, /µ/, como em “eu tomo”, “eu abono”, “eu empenho”; na 2ª conjugação, as vogais /e/ ou /o/ do radical permanecem idênticas, como em “eu escrevo”, “eu torço”; e, na 3a conjugação, assimilam o traço [+alt], ou seja, tornam-se /i/ ou /u/, como em “eu firo” e “eu durmo”. Deixaremos de lado a 1ª pessoa do singular dos verbos da 3ª conjugação, pois a descodificação de “i” não apresenta ambigüidade.

Antes de uma consoante [-ant, +cor], isto é, /§/ ou /½/ (contexto produtivo apenas na 1ª conjugação), a harmonia vocálica dependerá do radical nominal do qual o radical verbal é cognato, isto é, se o radical nominal contiver uma vogal [+bx], ou seja, /«/ ou /¿/, ou [-bx], isto é, /e/ ou /o/, ela se mantém na 1ª pessoa do singular do presente do indicativo e seus derivados, como em “eu flecho” à /ew fl«§u/ e “eu arrocho” à /ew aRo§u/. Nos verbos da 1ª conjugação, antes de uma consoante [-ant, +lat], isto é, /ñ/, não aplica a harmonia vocálica, segundo a norma de prestígio, como em “eu espelho” à /ew iS‘peñu/, embora a tendência atual, na fala coloquial, seja na direção da aplicação da regra geral.

Na segunda pessoa do singular e terceiras pessoas, reaparece a vogal temática átona e aplica uma regra morfológica: em todas as conjugações as vogais [-alt, -bx], isto é, /e/ ou /o/, na última sílaba do radical, se tornam [+bx], como em “tu pelas”, “ele torce”, “eles dormem”,  salvo se depois delas ocorrer uma consoante [+nas], isto é, /m/, /n/, /µ/. Antes de uma consoante [-ant, +cor], isto é, /§/ ou /½/ (contexto produtivo apenas na 1ª conjugação), a aplicação da regra morfológica dependerá do radical nominal, conforme já examinado. Antes de uma consoante [-ant, +lat], isto é, /ñ/, (contexto produtivo apenas na 1ª conjugação), não aplica a regra morfológica, conforme já explicado. A letra “e” assinala na 2ª e 3ª pessoas do singular a neutralização da vogal temática átona, na maioria das variedades sociolingüísticas, na 2ª e 3ª conjugações, lendo-se, então, como /i/ átono.

      

                    1ª conjugação              2ª conjugação                   3ª conjugação

singular

1ª          “levo”à[+bx]/l«vu/   “bebo”não alteraà/bebu/     “firo”à [+alt]/firu/

2ª      “levas”à “ /‘l«vaS/        “bebes”à[+bx]/b«biS/     “feres”/à[+bx]f«riS/

3ª        “leva” à   /l«va/         “bebe” à          /b«bi/      “fere” à        /f«ri/

plural

3ª    “levam”à “ /l«vãw/      “bebem” à      /b«be~j/       “ferem” à    /f«re~j/

 

Como o presente do subjuntivo bem como o imperativo (exceto as 2ªs pessoas do imperativo afirmativo) derivam da 1a pessoa do singular do presente do indicativo e a 2a pessoa do singular do imperativo afirmativo deriva da 2a pessoa do singular do presente do indicativo, preservam os efeitos acima descritos.

 

DV2. Sistema do perfeito

O grafema “e”, que representa a vogal temática nos verbos irregulares a seguir, no sistema do perfeito, tem o valor da vogal [+bx] /«/, portanto, também nos derivados mais-que-perfeito do indicativo e no pretérito imperfeito e futuro do subjuntivo: “estiveste” à /eSti‘v«Sti/, “deste” à /‘d«Sti/, “pudeste” à /pu‘d«Sti/, “puseste” à /pu‘z«Sti/, “tiveste” à /ti‘v«Sti/, “fizeste” à /fi‘z«Sti/, “trouxeste” à /trow‘s«Sti/ ~ /tro‘s«Sti/, “disseste” à /di‘s«Sti/, “coubeste” à /kow‘b«Sti/ ~ /ko‘b«Sti/, “soubeste” à /sow‘b«Sti/ ~ /so‘b«Sti/, “houveste” à /ow‘v«Sti/ ~ /o‘v«Sti/, “aprouveste” à /aprow‘v«Sti/ ~ /apro‘v«Sti/, “comprouveste” à /kõprow‘v«Sti/ ~ /kõpro‘v«Sti/, “vieste” à /vi‘«Sti/ .

 

Regra D3.6

“z” à  S  em final de sílaba interna, somente nos contextos __+“mente” e __+“zinh-” como em “felizmente”, “mãozinha”.

 

Regra D4

Valores da letra “x” dependentes exclusivamente do léxico mental ortográfico

Três valores atribuídos à letra “x” dependem exclusivamente da internalização do léxico mental ortográfico e de suas relações com o léxico mental fonológico: /§/, /s/ e /k(i)s/ quando no contexto entre letras que representam vogais (com exceção da letra “e” em início de vocábulo, precedida ou não por prefixo) e entre o ditongo /aw/ e vogal. Por exemplo, “abacaxi” à /abaka‘§i/; “máximo” à /‘masimu/; “fixo” à /‘fiksu/ ou /‘fikisu/; “tauxia” à /taw‘§ia/; “auxílio” à /au‘siliw/; “auxologia” à /awksolo‘½ia/à /awkisolo‘gia/.

A letra “x” entre letras que representam vogais, se a segunda vogal começar a terminação “imu” à -/imo/ ou “im”/à -/imi/ e suas flexões, se lê como a realização do fonema /s/, como em “próximo” à/pr¿simu/, “máximo” /‘masimu/, “proximidade” à /prosimi‘dadi/. Observe-se a forma marcada “sintaxe” à /si~‘tasi /.

Encerramos este artigo, reiterando a transparência do sistema alfabético do português do Brasil para a leitura: conforme ficou demonstrado, apenas os valores dos grafemas “e” e “o”, em alguns contextos, não podem ser previstos por regra, bem como três valores do grafema “x”.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOPEZ, B. A. The sound pattern of Brazilian Portuguese (Cariocan dialect). Tese de doutorado. Los Angeles: Univ. of California, 1979.

QUICOLI, A. C. Harmony, lowering and nasalization in Brazilian Portuguese. Lingua, n. 80, p. 295-331, 1990.

 


 

QUADROS

 

 

+ant

-cor

(labiais)

+ant

+cor

(anteriores)

-ant

+cor

(posteriores)

-ant

-cor

-post

(posteriores)

-ant

-cor

+post

(posteriores)

+obstruinte

   -cont

(oclusivas)

-son

(surdas)

+son

p

b

t

d

 

 

k

g (galo)

  +cont

(fricativas)

-son

+son

f

v

s

z

§ (chá)

½ (já)

 

R  (rosa)

-Obstruinte

   +nasal

 

m

n

 

ø (vinho)

 

(+vocálico)

    +lateral

    -lateral

    -cons    (semivogais)

 

 

l

r (caro)

 

ñ  (velha)

 

 

 

j (pai)

 

 

 

 

w (teu)

 

Quadro fonêmico das consoantes, conforme o modelo de Lopez (1979), com o acréscimo das semivogais, exemplos e termos comparativos (entre parênteses) à nomenclatura de Mattoso Câmara Jr.. Também substituímos o símbolo x que constava na casa da [+cont, +post] e que se referia à variedade carioca descrita por Lopez, pelo símbolo R, mais genérico, adotado por Mattoso Câmara Jr., para cobrir todas as realizações possíveis nas diversas variedades sociolingüísticas do português do Brasil.

 

 

+Orais

-posterior

-arredondado

(anteriores)

+posterior

-arredonado

 

+posterior

+arredonado

   +alta

i

 

u

   -alta

   -baixa

e

 

o

    +baixa

«  (pé)

a

¿ (pó)

-Orais

(nasalizadas)

 

 

 

    +alta

ĩ

 

ũ

     -alta

 

õ

      +baixa

 

ã

 

 

Sistema vocálico do português do Brasil, conforme o modelo de Quicoli (1990), com acréscimo das vogais nasalizadas.


 

 

SÍMBOLOS PARA A INTERPRETAÇÃO DAS REGRAS

# significa limite de palavra; sua ausência à esquerda quer dizer que se    admite a anteposição de uma ou mais sílabas.

+ subscrito, significa limite de sílaba.

// ao final da regra significa pausa vazia de limite de enunciado.

/ / (barras paralelas) significam transcrição fonológica.

  ” as aspas se referem à transcrição canônica.

[ ] (colchetes) incluem o(s) traço(s) fonético(s) relevantes.

                                         colchetes em duplicata ou triplicata          

                                         significam que os símbolos à esquerda se

                                         referem somente aos que estão à direita no mesmo alinhamento.                           

 


                chaves indicam que qualquer dos símbolos nelas contidos                                                      podem se combinar com o que estiver à esquerda.

( ) (parênteses) indicam ocorrência ou não.

 à se reescreve.

C2  implica uma ou duas consoantes.

/ no contexto.

... nos demais contextos.

 ___  indica a posição ocupada pelo segmento objeto da regra.

‘ colocado à esquerda do início da sílaba significa sílaba mais intensa.

˘  assinala, para maior clareza, a sílaba átona, em geral sem nenhum diacrítico no presente trabalho. Contudo, as vogais /«/,  /¿/, por receberem obrigatoriamente o maior acento de intensidade, também não têm suas sílabas assinaladas por nenhum diacrítico

~  símbolo de alternância, também usado toda a vez que ocorrer a neutralização entre dois fonemas.

 



[1] Pós-doutorada pela Universidade de Montreal, membro do colegiado da Pós-Graduação em Lingüística da UFSC, pesquisadora do CNPq, presidente de honra da ISAPL, membro do comitê de linguagem da criança da IALP, ex-presidente da ABRALIN e da UBE-SC. Pertence ao comitê editorial de vários periódicos.