A VOZ DO CONTEXTO SÓCIO-FAMILIAR NA APRENDIZAGEM DA LINGUAGEM ESCRITA NUM CONTEXTO RURAL

 

 

Leila Bom Camillo

Universidade Católica de Pelotas

 

 

 

Introdução

 

Dissociar os diversos discursos que ocorrem na sala de aula de seu contexto mais amplo é perder de vista os sentidos atribuídos a estes discursos pelos interlocutores. Para compreender como os sujeitos refletem, dialogam, percebem a linguagem escrita exigi-se penetrar em seus mundos, em seus contextos culturais e daí subsidiar uma análise mais aproximada da realidade deste grupo social.

Geraldi (1991) aponta duas questões pelas quais o contexto deve ser considerado nas investigações sobre a linguagem: a) as interações verbais não se dão fora de um contexto mais amplo; e b) o ensino da língua não está infenso às interferências do sistema escolar e este do sistema social. Desse modo, busca-se compreender como estes sistemas chegam à percepção das crianças desta investigação, considerando que conhecer a situação social contribui para determinar os sentidos que elas atribuem e produzem na linguagem escrita durante o processo de escolarização.

Tanto o contexto imediato quanto o contexto sócio-histórico e ideológico são determinantes para a construção de sentidos nas interações verbais. Este texto busca revelar, analisar e refletir sobre a influência do contexto sócio-familiar no processo de aprendizagem da linguagem escrita de cinco crianças de zona rural em iniciação escolar. Para isso foi necessário identificar as concepções de linguagem dos familiares que acompanham o processo; verificar quais os portadores de texto que esta comunidade está exposta e utiliza na prática social; analisar e refletir sobre as atitudes desta comunidade em relação à linguagem escrita nos eventos de letramento, analisar e refletir sobre a influência do contexto social no letramento escolar e na alfabetização.

A abordagem qualitativa possibilitou uma maior compreensão da influência das famílias no contexto de aprendizagem escolar através dos seguintes instrumentos: observação participante, questionário, entrevistas, gravações em áudio e diário de campo. Os sujeitos da pesquisa são familiares de cinco crianças em iniciação escolar, todos residentes na zona rural e maiores de idade.

 

1. A construção das significações de um tema

Bakhtin (1979) aborda a constituição de sentidos atribuídos a um determinado tema como uma cadeia única e contínua formada pelo deslocamento de signo em signo para um novo signo. Estas significações só emergem do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. Em suas palavras o signo exterior...

nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a viver, pois a vida do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão, de emoção, de assimilação, isto é, por uma integração reiterada no contexto interior (1979, p.57).

 

Para Vigotski (1984) as significações são produtos sociais mediados por signos. Segundo o autor:

Todas as funções psíquicas superiores são processos mediados, e os signos constituem o meio básico para dominá-las e dirigi-las. O signo mediador é incorporado à sua estrutura como uma parte indispensável, na verdade a parte central do processo como um todo. Na formação de conceitos esse signo é a palavra, que em princípio tem o papel de meio na formação de um conceito e, posteriormente, torna-se o seu símbolo (1984, p.70).

 

            Vigotski explora a significação de um tema como uma construção sócio-histórica e cultural, sendo que sua apropriação se dá nas interações sociais.

            Dessa forma, a análise das vozes dos sujeitos teve como pressuposto a concepção de linguagem como constituidora do sujeito, flexível e dinâmica. Vejamos em que contexto deu-se a pesquisa.

 

            2. Contexto sócio-familiar

Devido a grande extensão de terra da região, com vegetação caracterizada pelo relevo suavemente ondulado, denominado coxilhas, a localização da comunidade se dá entre 10 a 40 Km de distância da área urbana do município de Sant’Ana do Livramento. A cidade, cognominada oficialmente de “Fronteira da Paz” localiza-se na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, sendo o segundo maior município em extensão do estado, faz fronteira seca com a cidade de Rivera-Uruguai. Representante do pampa gaúcho, a cidade possui uma especificidade na linguagem falada: o português e o espanhol dão origem ao chamado ‘’portunhol’’. As famílias rurais também sofrem a influência na língua, pronunciando em seu cotidiano palavras como ‘bueno’(bem), ‘costado’(ao lado), ‘changa’(serviço rural), ‘bolicho’ (armazém) e outras. As crenças religiosas diversificam-se em catolicismo, evangelismo, espiritismo e outras, não há uma predominância religiosa.

Na região investigada as casas se distanciam de 1 a 10 Km umas das outras, outras estão próximas à estrada asfaltada construída por motivo de instalação de uma vinícola na região. Segundo um pai entrevistado que vende suas hortaliças na cidade: “essa estrada ajudô muito, antes se passava trabalho pra i pra cidade, agora fica bem melhor né.”

Não há serviços de correio e telégrafo na localidade por não fazer parte do perímetro de entrega, os meios de comunicação presentes nas residências são o rádio e a televisão. Três famílias afirmaram que se informam dos acontecimentos da cidade pelo rádio. Todos os entrevistados disseram que o que predomina é a ‘conversa de vizinho’ para se informar sobre a localidade. Geralmente as crianças não participam das conversas dos adultos, têm como lazer: nadar nos açudes, subir em árvores, brincar com os cachorros, andar a cavalo, ajudar na horta familiar, lidar com o gado (vaca, boi, cordeiro, ovelha). A base econômica da comunidade concentra-se na pequena produção de alimentos, alguns produzem somente para a própria subsistência, outros também transportam para a cidade em carretas para a venda.

Quanto aos portadores de texto próximos às casas, no percurso até a escola, foram registrados os seguintes: há cinco placas de sinalização (60KM), há três armazéns sem identificação, e não há numeração nas casas. Ao questionar um pai sobre como ele identifica as casas em que vai trabalhar, ele logo argumentou: “ah, a gente conhece todo mundo e sabe de quem é as casa”. Palavras de um morador da localidade ao referir-se ao estabelecimento comercial: “Ali todo mundo sabe que é o bolicho”.

Para a explanação do contexto sócio-familiar dos pequenos aprendizes da linguagem escrita tive como critério a correlação das famílias com as trajetórias das crianças investigadas. O primeiro grupo representa os familiares das crianças que encontraram maiores dificuldades no percurso de aprendizagem, enquanto que o segundo grupo representa o contexto familiar das crianças que tiveram um percurso mais prazeroso, com maiores facilidades e terminaram o ano letivo letrados e alfabetizados.  

 

2.1 Primeiro grupo escolar

Neste grupo os três pais se dizem analfabetos[1]. Um estudou até a 3ª série e não continuou os estudos, outro não freqüentou nenhum ano de escola, outro pai afirma que teve que sair do colégio com oito anos para auxiliar o pai no campo, embora leia algumas palavras. 

Uma das crianças não convive com a mãe, que segundo o pai “ela saiu de casa quando a criança tinha cinco anos”, as outras duas mães cursaram até a 5ª série. Duas crianças convivem com irmãos que freqüentam a escola, a outra criança representa a única de cinco irmãos que estuda.

As mães realizam várias atividades no campo juntamente com as tarefas domésticas, quanto aos pais, os três trabalham em serviços rurais. Segundo as informações de um dos pais entrevistados ao falar de sua profissão esclarece:

 “é faze tudo que é changa[2], serviço que se encontra, pegá enchada, levá o gado de um canto pra outro, ará a terra pra plantá, construí cerca, ah, é tudo o que se faz no campo, não se ganha nada não, mas é o que tem né!”.

 

Duas famílias residem em terras herdadas, a outra reside em um terreno cedido pelo proprietário em troca da manutenção, recebendo doações de remédios e roupas do proprietário. Estas famílias afirmam ganhar menos que um salário mínimo e sobrevivem das pequenas plantações e criação de galinhas.

As entrevistas e a observação participante também auxiliaram para identificar quais os eventos de letramento da comunidade e quais os portadores de texto, caracterizados no próximo item.

 

2.1.1  Eventos de letramento e portadores de texto

            O termo ‘eventos de letramento’ é definido por Heath e traduzido por Soares (2002, p.145) como “qualquer situação em que um portador qualquer de escrita é parte integrante da natureza das interações entre os participantes e de seus processos de interpretação”. Esta definição é reiterada por Kleiman (1995; p.40) que acrescenta “a escrita constitui parte essencial para fazer sentido da situação”. Tendo por base tal definição, procurei relacionar os portadores de texto da comunidade na seguinte seqüência: portadores dentro das residências e portadores revelados nas entrevistas.

Dentro das residências. Foi necessário fazer um quadro (anexo VII) para cada família relacionando os ambientes da casa e seus portadores, as crianças ou os pais indicaram quais os portadores. Logo após a identificação de um portador de texto questionou-se para que ele servia, a fim de captar como os familiares observavam aquele portador.

As três famílias não mencionaram os portadores de texto dos produtos industrializados na cozinha e no banheiro, afirmando não ter nada escrito em casa, somente o material da escola. Em uma das casas havia apenas um calendário escondido por um chapéu e folhas de chás secas colocadas por cima, ao solicitar sua utilidade o pai logo afirmou: ”esse calendário serve pra vê a lua melhor de se plantá, mas mais ou menos a gente sabe né!”. Duas mães afirmam ler o jornal de dias anteriores que lhes é cedido por algum parente ou pelo patrão. Duas famílias utilizam as folhas de jornal e outros papéis para fazer o fogo. Nenhuma das casas possui relógio. Um pai afirma saber a hora discando no telefone. As outras duas famílias não possuem telefone.

Busquei então, os eventos de letramento em que as famílias participavam, suas atitudes, suas motivações, e a utilização da linguagem escrita pelo grupo social.

Os dados coletados foram os seguintes: nenhuma das famílias afirmou contar histórias às crianças; nenhuma destas famílias participa de encontros religiosos; os pais raramente compareceram à escola quando convidados para comemorações e festas tradicionais; as três crianças não realizavam em casa durante o ano atividades solicitadas pela escola que envolviam a linguagem escrita.

Portadores revelados pelos familiares e não encontrados em casa. Os portadores registrados nas entrevistas abertas com os familiares foram: bula de remédio para dar para o gado, instruções para o plantio de sementes e utilização de agrotóxicos, e escrituras de terra.

 

2.1.2 Concepções de linguagem escrita

Através das opiniões coletadas nas entrevistas, falas espontâneas, encontros de entrega de avaliações na escola e indícios registrados pelas vozes das crianças na sala de aula, foi possível observar como os pais concebem a linguagem escrita, e como se relacionam com ela através da escola. Neste item constam não só as concepções subjacentes às enunciações, mas a valorização e necessidade da escrita destas três famílias.

Vejamos agora o que os pais expressam nas entrevistas sobre a linguagem escrita:

E: Na sua opinião, qual a importância da leitura e da escrita?

P1: É... a gente tem um estudo, aí surge um trabalho, coisa aí...

M1: A mesma coisa, se não tem estudo não tem trabalho, né?

E: O sr. acha importante que o seu filho saiba ler e escrever?

P2: Eu acho!

E: Por quê?

P2: Oi, eu acho que vai fazê falta pra ele. Ah, quando é criança parece que não faz falta o estudo, mas faz falta não é? É o que eu explico pra ele, tu não queria ficá aí que nem o pai capinando no sol não é? Tem que estudá pra quando... amanhã ou depois tem um serviço aí...

E: E se ele quiser ser que nem o pai?

P2: Ah, mas o pai não tem estudo pra tá aí puxando enxada, passá trabalho pros otros!

M3: Eu penso assim, que ser alguém na vida é tu ter uma profissão entende? Eu tava dizendo pra Andressa que tem que estudá, tem que ser inteligente, pra se forma uma advogada, uma médica.  

 

Dois aspectos merecem ser destacados das transcrições acima: o primeiro refere-se à vinculação imediata entre a linguagem escrita e a escola, o estudo, e o segundo aspecto refere-se à associação da leitura e da escrita com a garantia de emprego, uma vez que para ter um emprego exige-se uma escolarização específica. “se não tem estudo não tem trabalho” resposta referente não ao estudo mas a leitura e a escrita. ‘ela tem que aprendê pra se alguém na vida’ A escrita é tarefa estritamente escolar que possibilita o acesso ao trabalho.

A linguagem escrita é tão inexistente no seu dia-a-dia que o pai a associa automaticamente à escola. Não ao fato de que na escola se aprenda a ler e a escrever mas ao fato de que a escola é a via de acesso ao emprego. Não há compreensão de sua necessidade diária, a linguagem escrita/escolarização é um obstáculo a ser vencido para o emprego, para a sobrevivência futura.

A relação entre o trabalho e o estudo é compreendida por Graff (1995) como complexa, imprecisa e contraditória. O autor considera esta relação um dos ‘mitos da alfabetização’ defendidos pela ideologia dominante para o controle social e para a repressão política. Ao supervalorizar a alfabetização/escolarização se desconsidera outros fatores sociais que influenciam fortemente na obtenção de um emprego. Segundo o autor, “A escolarização raramente era suficiente para permitir aos indivíduos superar suas características atributivas como: etnia, raça, sexo, idade, origens sociais e econômicas” (1995, p.90). E ainda o autor expõe “O papel da alfabetização reforçou os degraus da rigidez social, reenfatizando padrões de desigualdade social e étnica, tendo dificilmente um papel libertador” (1995, p. 91).

Ao afirmar que “Tem que estudá pra quando... amanhã ou depois tem um serviço” o pai da criança considera a escolarização um fator suficiente para um emprego. O mesmo ocorre com outra mãe que explica “tem que estudá, pra se forma uma advogada, uma médica”. Os pais não vêem o estudo apenas como um pré-requisito necessário para o sucesso profissional, eles superestimam os poderes da escolarização desconsiderando a qualidade do processo e sua necessidade imediata. Graff finaliza a questão destacando que “a escolarização para a responsabilidade, para os direitos democráticos, para a mudança social exige muito mais ênfase no pensamento crítico e independente do que na instrução formal” (1995, p.91).

Ao responder a pergunta ‘O senhor sente necessidade de saber ler e escrever no seu dia-a-dia?’ fica clara a desvalorização da linguagem escrita e a falta de necessidade diária pela visão dos pais:

 

P1: Ah, muita coisa não porque o meu trabalho mais é campo, coisa assim bruta, então não...O pai me ensinô e eu fui gravando na cabeça. A trabalhá na horta isso aí eu me garanto.

P2: Pra mim não, eu já tô acostumado a lidá na terra.

P2: Pra quem lida no campo eu acho que não é, é só lidá na terra! Mais é pra outro lugar, porque aqui não sei se ele (filho) vai querê trabalhá como eu trabalho!

P3: Eu pra mim não tê estudado não faz diferença acho que nenhuma não é, porque eu gosto mesmo assim e tenho vivido como posso mas bem né, sempre tive responsabilidade, tudo assim né, trabalhei vinte quatro anos numa estância cuidando. Então qué dizê que o ensino pra mim não me fez falta, não é. Eu não sei lê, nem escrevê, mas eu já sei como vivê né. Pro meio de vida que a gente tem, eu acho assim que não é necessário.

 

A sobrevivência social através da oralidade é suficiente para os entrevistados, que segundo eles não há necessidade de saber ler e escrever na rotina do campo. O privilégio da oralidade em relação à escrita e sua condição de cidadão se concretizam ainda no relato deste pai:

Quanto ao privilégio da linguagem oral no campo, Gnerre  expõe que “quem participa da transmissão oral do saber não dispõe de uma clara perspectiva sobre o que implica a codificação escrita do saber, em geral e de um determinado tipo de saber, em particular (1985, p.104).” O conhecimento oralizado            de geração em geração, tendo como característica sua própria estrutura interna, impossibilita os pais compreenderem a estrutura própria e específica da comunicação escrita. Nisto repousa a idéia vaga dos benefícios que a linguagem escrita dá ao grupo social, reduzindo-a a requisito básico para o emprego exigido socialmente.

Outro aspecto a ser destacado é o fato da condição de analfabetismo dos pais e o sentimento de inferioridade intrínseco a esta condição. Frago (2002), ao defender os povos de cultura oral, discute o modo como a escrita se integra nas redes de comunicação de sociedades cuja tradição era/é principalmente oral. Segundo ele:

 

A interação oralidade-escrita não implica ou se produz apenas via empréstimo, recebendo também influências por dissociação. Neste caso, uma das duas culturas – a oral, habitualmente – é depreciada e relegada. Uma vez introduzida, a alfabetização divide e separa. O antes membro de uma cultura oral primária é definido não pelo que possui – agora negativamente considerado e desvalorizado – mas por aquilo de que carece (2002, p.85).

 

A influência histórica/ideológica dos povos em relação à alfabetização é observada através dos depoimentos dos pais, em que há a depreciação social de sua condição (de não saber ler nem escrever). No momento em que não se sente competente para agir e interagir nas discussões políticas, mesmo ciente de que “eu não sei lê, nem escrevê, mas eu já sei como vivê né!”. Para esses pais a cultura oral não coexiste com a cultura escrita. Esta, nos locais em que é representada, merece a preferência e é inquestionável.

A linguagem dos pais trazem os indícios de uma concepção de linguagem escrita estática, desnecessária ao cotidiano, somente analisável na instituição escolar e que serve de trampolim para o emprego futuro.

 

2.2 Segundo grupo familiar

A representação dos dois outros grupos familiares investigados era feita pelos avós e pela mãe de uma das crianças, enquanto que a outra era representada pelos pais, irmãos e pelo primo. A preocupação das mães em relação ao início da escolarização, uma vez que ambas as crianças não haviam realizado pré-escola e iniciavam a vida escolar pela primeira vez, fez com que estivessem presentes na vida escolar dos filhos em várias situações. A profissão de uma das famílias era de apicultores, enquanto que na outra os irmãos trabalhavam em um supermercado da cidade e o pai era mecânico.

Em relação à moradia, uma das terras foi herdada e a outra família havia adquirido a terra a menos de três anos, até então viviam em zona urbana. A média de salários de ambas as famílias era a de um a quatro salários mínimos.

 

2.2.1 Eventos de letramento e portadores de textos

Nas famílias, conforme o procedimento adotado na investigação, foram realizadas as visitas e as perguntas em relação aos portadores de textos. Registrou-se o que segue:

Portadores encontrados nas residências e percebidos pelos familiares: Jornais, revistas, rótulos de produtos, calendários, Bíblia na cabeceira da cama, livros de literatura no quarto de uma das mães, rótulos de remédios, relógios.

Portadores de texto revelados na entrevista: Histórias infantis, bilhetes, cartas, propagandas de supermercado, instruções de jogos, cadernos e livros dos irmãos.

Em relação aos eventos de letramento registraram-se os seguintes:

A capela: a criança com o primo ia todos os sábados para a capela evangélica em frente à casa para a oração.  Joice apresentou a capela da seguinte forma:

Joice: É uma que tem lá perto de casa! É de tarde, no sábado de tarde. Tem música assim, tu ganha a Bíblia, um caderninho e um lápis. Lê não lemo tanto, mais escutamo!

Ao acompanhá-la num sábado, observei que seu papel era a de imitadora dos mais velhos. Todos recebiam uma pequena Bíblia e na maior parte do evento o pastor lia e comentava, todos com os olhos voltados para a Bíblia, Joice fazia o mesmo. O primo escolheu uma passagem para a leitura, foi ao altar, leu e fechou a Bíblia, naquele momento todos se voltavam para ele. Ao final todos saiam com seu caderno e sua Bíblia em baixo do braço e despediam-se. A atitude natural da criança mesmo que ela não estivesse lendo era de leitora e ouvinte, reproduzindo o papel dos outros participantes do evento.

 Histórias contadas: As famílias possuíam o hábito de contar histórias para as crianças. Conforme registrado nos dias 10 de maio e 24 de junho:

             Atividades escolares: as crianças eram assistidas pelas mães e pelos avós em relação às atividades escolares para serem feitas em casa. Um dos pais muito presente olhava o caderno de sua filha diariamente.

Bilhetes para a escola: Os pais tinham o costume de escreverem ou no caderno da criança, ou em um pequeno papel, recados, perguntas e lembretes para a comunicação com a professora e diretora que respondiam da mesma maneira.

Comemorações na escola: As famílias estavam presentes em todas as comemorações e festividades da escola. Nestas situações eram entregues mensagens e realizadas peças de teatro.

Passeios para a zona urbana: as crianças iam à cidade com os pais para compras e venda de produtos em vários locais da cidade.

A motivação dos pais para utilizarem a leitura e a escrita era responder a uma situação imediata.  Habitualmente a leitura e a escrita era feita sem recuos, conforme a necessidade do cotidiano. Este grupo de familiares experimentavam situações novas movidos por necessidade de relações. As relações familiares como a escrita de cartas da mãe para um filho distante, o preenchimento de um formulário (relação social), a leitura de livros e da Bíblia (relação íntima consigo e com Deus), leitura de bulas de remédios (necessidade de manter a saúde para viver), leituras de bilhetes e avisos da escola (relações sociais com a escola do filho). 

 

2.2.2 Concepções de linguagem escrita

O segundo grupo de pais revelam uma dialética em relação à linguagem escrita em que prevalece o significado à forma.

 M4: A pessoa tem que lê sempre né, a pessoa tem que aprendê sempre. Eu gosto de lê um jornal, uma revista... de escrevê, eu gosto, quando eu preciso, eu não tenho tanta necessidade de escrevê... A escrita é importante porque se tu tem que escrevê uma carta pra alguém, tem que sabê um recado, né.

V5: Mas muita importância, pra tudo, a gente utiliza a escrita pra tudo, desde ir a um supermercado a gente anota tudo escrito né. Mais é veterinária, o controle da vacina, o quanto morreu, o quanto vacinô...

M5: A escrita tem toda a importância. Nesse sentido eu sô super organizada, eu anoto tudo. Tudo, tudo é anotado, tem agenda, cadernetas, tudo anotado, datas, quando eles eram pequenos, tudo, as vacinações, só tenho tudo anotado, mas tem que anotá mesmo?

V5: Ah, eu escrevia muito é pra escrevê carta. Eu me sentia, como é que eu vô te dizê, me sentia bem assim parece que eu tava falando pessoalmente, né mandando, ele (filho)  morava pra fora e era só a escrita... não, não tenho dificuldade pra escrevê, até agora, se eu vô escrevê assim, às vezes eu vô fazê um bilhetinho e já faz um enorme de um bilhete, falando. Se comunicá, às vezes a pessoa mora longe né daí dá pra se comunicá.

M5: Eu acho que mexe com o sentimento da pessoa, tu tá conversando com a pessoa, tem a pessoa conversando contigo, mas a escrita não, é tu e o pensamento, então aquilo flui, não dá pra controlá né... Lê não é pegá várias coisas e tu lê, lê, só pra dizê que tu lê né, é tu lê alguma coisa que tu entenda que tenha aquele significado pra ti e que tu consiga entendê o que tu leu. Eu vô pra cidade, nossa, eu pego tudo que é panfleto da agropecuária, da cooperativa, tem muita coisa importante, como matá formiga, os cuidados que tem que tê com os alimentos, com a água, até com a natureza, falá das vacas, das ovelhas tudo que interessa não é!

Esses testemunhos revelam o valor dado a escrita, a naturalidade com que a leitura e a escrita estão inseridas no cotidiano das famílias. As necessidades são imediatas e não futuras, tanto a leitura, quanto à escrita fazem parte das interações verbais, fluem carregadas de significados numa interação entre interlocutores. Ora a escrita representa aquisição de conhecimentos ‘a gente tem que lê pra aprendê sempre’, ora organização ‘eu anoto tudo, tudo mesmo’, ora entretenimento e auto-descoberta ‘...que tenha significado pra ti... ele coloca coisas assim do cotidiano, um ensinamento que te passa despercebido’. A leitura e a escrita estão presentes e vão constituindo e determinando atitudes destes sujeitos.  Os comportamentos letrados destas mães também sofrem a influência da contradição entre os significados que a escrita constrói e a forma ortográfica inflexível do sistema alfabético brasileiro. Vejamos transcrições em que aparecem tais contradições:

 

M5: a linguagem é importante mas mais importante é a pessoa se fazê entendê, e a oral mesmo falando errado é importante a pessoa se fazê entendê. Mas a escrita eu acho imprescindível, se tu vai escrevê pra uma pessoa, tu escreve uma carta com erros absurdos. Porque a nossa língua portuguesa é muito complicada, complicada mesmo.

V5: a escrita tem seu papel importante mesmo, tu imagina ditá um texto e uma pessoa escreve totalmente errado, tu já imagina!

M4: Assim quando a gente precisa, a gente erra alguma letra ,né. A gente come alguma letra, assim né. Pra preenche sempre é o meu esposo, eu sempre passo adiante, sempre passo pra ele, às vezes eu posso errá as letra né aí eu passo pra ele. Às vezes eu tenho dificuldade de uma palavra né.

 

A língua é marcada pela rigidez ortográfica e pela necessidade de expressão. Ao privilegiar a forma, há um distanciamento da linguagem. A dialética bakhtiniana entre o objetivismo e o subjetivismo está presente nos sujeitos letrados, construtores de significados através da escrita. No entanto o que prevalece é a concepção de linguagerm que flui socialmente, que se adapta à situação, que interage com o mundo.

 

            Considerações finais

Em relação à influência do contexto sócio-familiar no letramento escolar e no processo de alfabetização, pela triangulação dos dados pude observar dois grupos familiares. No primeiro grupo constatou-se a defesa, a passividade diante da escrita, a desvalorização imediata, a idéia vaga e confusa sobre o que a escrita pode contribuir às suas vidas no tempo presente, as concepções de linguagem estática, àquela que pertence ao ambiente escolar, a reprodução da expressão de uma classe dominante. As crianças deste mesmo grupo sob influência também do ambiente escolar apresentaram em sala de aula atitudes como rejeição, passividade, insegurança, desgaste contínuo, medo do erro, valorização da forma padrão, descontextualização, imitação e reprodução, subjugação, predominando concepções de linguagem artificializada e fragmentada.

A criança se alimenta das experiências singulares tanto familiares quanto escolares, os pais parecem assumir um papel essencial nisso. O aprendiz encontra-se em forte dependência do adulto, muitas vezes as experiências frustradas dos pais são reproduzidas inconscientemente pelos filhos. Quando os grupos familiares não possuem o hábito de ler ou de escrever, as crianças parecem receber esses hábitos lingüísticos de outros grupos sociais em que fazem parte, no caso a escola, como algo imposto e desnecessário à vida. Essa situação gera conflitos para os pequenos incursores da expressão escrita e até rejeições. Os pais que não valorizam e nem usufruem da escrita cotidianamente parecem enviar mensagens implícitas aos filhos de que é possível se viver bem dessa forma e que o enfrentamento da escola servirá para um futuro e não para um tempo presente.

As crianças não recebiam acompanhamento em casa, as atividades para casa propostas pela professora não eram realizadas, os pais responsabilizavam os filhos por suas tarefas. A necessidade do trabalho no campo diário por parte dos pais impossibilitava a participação da vida escolar dos filhos e a ausência de hábitos lingüísticos também repercutiam nas crianças de forma prejudicial ao processo de aprendizagem, que recebiam predominantemente incentivo da escola. Vigotski afirma que “Todas as funções no desenvolvimento da criança aparecem duas vezes: primeiro, no nível social, e depois, no interior da criança” (1984; p. 75).

O segundo grupo familiar revelou o prazer, o uso contínuo da escrita, a necessidade não futura, mas imediata, a disposição de entregar-se às descobertas proporcionadas pela escrita. As concepções de linguagem como constitutivas do sujeito durante as interações possibilitou a naturalidade com que utilizavam em seu cotidiano a escrita. Seus filhos revelaram a familiaridade com a condição de leitores, a participação segura e a iniciativa em relação à escrita, a valorização e o desejo em aprender, o enfrentamento da barreira do código normativo, a contextualização da escrita no ambiente escolar e fora dele, a aprendizagem natural e prazerosa.

As mediações do grupo familiar auxiliaram significativamente no processo de apropriação das formas culturais de comportamento, neste caso em relação à escrita. A aproximação à vida escolar da criança por parte dos pais, ou por presença ou por bilhetes escritos, parece revelar uma compreensão maior do que significa o período escolar para a vida da criança. O elo comunicativo entre família e escola possibilitou um acompanhamento mais integrado no processo de iniciação das primeiras letras e um aprendizado em um curto espaço de tempo.

Para algumas famílias, a escola ainda é o principal centro de letramento e de alfabetização, o que aumenta sua responsabilidade em desempenhar um papel de formadora de bons e eficientes leitores e autores para uma sociedade letrada e informada. Não parece suficiente o desejo e a boa disposição da criança em aprender a escrita, é necessário que ela participe de eventos de letramento que a constituam naturalmente. Quando o contexto sócio-familiar não lhe oferece esses eventos resta à escola essa função.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAKHTIN, Mikhail. (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979.

 

FRAGO, Antonio Viñao. Alfabetização na sociedade e na história: vozes, palavras e textos. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

 

GERALDI, João Wanderley. Portos de passagem. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

 

GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. 4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

 

GRAFF, Harvey J. Os labirintos da alfabetização: reflexões sobre o passado e o presente da alfabetização. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

 

KLEIMAN, Angela B. (org.) Os significados do letramento: uma perspectiva sobre a prática social da escrita. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1995.

 

SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & Sociedade, Campinas, vol.23, n.81, p. 143-160, dez.2002.

 

VIGOTSKI, Lev S. Pensamento e linguagem.  São Paulo: Martins Fontes, 1987.

 

------. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1984.

 

 

 

 

 



[1] Aqui se configura o problema conceitual de ‘analfabetismo’ demonstrado pelos pais que apesar de terem freqüentado a escola e ler algumas palavras, caracterizam-se com veemência encontrarem-se em situação de analfabetos. O conceito de “alfabetização” modificou-se histórica e socialmente, conforme é discutido por Soares (1998, 2003), Viñao Frago (2002) e Graff (1995).

[2] Segundo o Dicionário Larousse de Língua Espanhola o termo significa “trabajo eventual”, “servicio que presta el changador y retribuición que se le dá.” O termo em espanhol utilizado pelo pai entrevistado deve-se à influência da língua espanhola na região.