TEMPO E REFERÊNCIA: A QUESTÃO DOS DOIS PRETÉRITOS EM ESPANHOL
Leandra Cristina de Oliveira[1]
Dra Luizete Guimarães Barros[2]
RESUMO: Este artigo analisa as diferenças entre o pretérito perfeito simples e
composto na conjugação espanhola. Com a elaboração de um corpus de
notícias de jornais virtuais publicadas na Espanha e em cinco países
hispano-americanos, explicamos certos empregos de acordo com teorias
focalizadas nos parâmetros de tempo e referência.
PALAVRAS-CHAVE: Tempo verbal. Lingüística de corpus. Gramática Castelhana
Em espanhol, o estudo das formas simples e composta do pretérito perfeito (doravante, PS e PC, respectivamente) tem merecido destaque. A proposta de nosso trabalho é apresentar as diferentes manifestações dessas formas verbais, e a partir das teorias de Andrés Bello (1979 [1810]) e Hans Reinchenbach (1947). Buscaremos responder os seguintes questionamentos: 1) É possível aproximar os dois autores?; 2) As teorias temporais de Bello e Reinchenbach são suficientes para explicar as diferenças de uso entre PS e PC?
Utilizando um corpus da língua escrita com notícias de jornais virtuais, publicadas na Espanha e em cinco países latino americanos: Argentina, Bolívia, Cuba, México e Peru, tentaremos comprovar se por meio dos estudos de Bello e Reinchenbach conseguimos justificar algumas das diferentes possibilidades de emprego de PS e PC.
Para nossa pesquisa, selecionamos quatro enunciados cujos verbos analisados são: PS nos enunciados em (1) e (4) e PC em (2) e (3). Optamos por analisar estes dados por considerarmos usos recorrentes no corpus que estamos analisando. Os exemplos selecionados são:
(1)
“Juan
Pablo II fue dado de alta y regresó al Vaticano.” (www.clarin.com / Argentina
13/03/2005)
(2) “Juan Pablo II ha sido dado de alta la tarde del domingo, sobre las 18.15, hora española, del Policlínico Gemelli, donde llevaba ingresado 18 días.” (www.el-mundo.es / Espanha 13/03/2005)
(3) “Un país, señalan, donde a pesar del bloqueo se han
alcanzado índices de salud, educación y cultura reconocidos
internacionalmente.” (www.granma.cu /
Cuba 14/03/2005)
(4) “Este
domingo, el Pontífice pronunció sus primeras palabras en público desde
que le fue practicada la traqueotomía.”[3] (www.el-mundo.es / Espanha 13/03/2005)
Bello:
diferenças entre os dois passados
O trabalho de Andrés Bello Análisis ideológica de los tiempos de la conjugación castellana (1979 [1810] ) trata presente, passado e futuro como “tempo absoluto”, isto é, formas simples que apresentam um único valor temporal. Ao definir os tempos verbais, Bello estabelece fórmulas que os representam. Assim, (A), (C) e (P) correspondem à anterioridade, coexistência e posterioridade, respectivamente.
E as outras formas do indicativo diferentes de amé, amo e amaré, como são tratadas por Bello? Segundo o autor, estas são formas “complexas”, que apresentam mais de um valor temporal. As formas compostas (complexas) são definidas a partir das simples correspondentes: AC – he amado, por exemplo, significa anterioridade à coexistência.
Ao tratar das formas simples (A, C e P), Bello leva em consideração dois parâmetros: a ação, que ele chama de “atributo”, e o momento da fala. Assim, (A), (C) e (P) correspondem, respectivamente, a eventos anteriores, simultâneos e posteriores em relação ao momento da enunciação. Diante da dificuldade em definir as formas compostas, Bello reconhece um terceiro parâmetro: “cosa” (coisa).
“el antepretérito (hube cantado) significa que el atributo es inmediatamente anterior a otra cosa que tiene relación de anterioridad con el momento en que hablo (...) el antefuturo (habré cantado) significa que el atributo es anterior a una cosa que respecto del momento en que se habla es futura.” (BELLO 1984: § 640-650)
O que queremos dizer é que o autor reconhece um outro elemento que influencia na nomenclatura adotada por ele para as formas compostas e, não sabendo como chamá-lo, usa o termo que grifamos em sua citação. Ao parâmetro que Bello identifica como “cosa” Reinchenbach chamará de ponto de referência.
Então qual a diferença entre (A) e (AC)? Para estabelecer as diferenças entre pretérito e antepresente (usando o termo original do autor), Bello apresenta a clássica comparação entre as duas proposições:
Þ “Roma se hizo señora del
mundo.”
Þ “La Inglaterra se ha hecho
señora del mar.” (BELLO, 1979: § 40)
Com estas sentenças o autor exemplifica a diferença entre pretérito e antepresente. A primeira indica que o senhorio do mundo é um acontecimento que já passou (A – pretérito). Bello se refere às formas simples como tempo absoluto, em que há uma relação biunívoca entre ação e momento de fala. Portanto, como já mencionamos anteriormente, as formas simples (A), (C) e (P), correspondem ao tempo absoluto, enquanto que as formas compostas, como (AC), por exemplo, correspondem aos tempos relativos.
Dessa forma, na segunda sentença o senhorio do mar ainda permanece (AC – antepresente). Segundo o autor, ha hecho representa a anterioridade (A) com relação ao momento da fala, isto é, com a coexistência (C), “La forma compuesta tiene pues relación con algo que todavía existe” (BELLO, 1979: § 40 ). E a forma simples “hizo” representa anterioridade do acontecimento sem relação com o presente.
Sintetizando as idéias de Bello, é possível abstrair que PS tem valor temporal de pretérito, ou seja, acontecimento iniciado e concluído no passado, e PC tem valor temporal de antepresente – acontecimento iniciado no passado, mas que apresenta alguma relação com o plano atual. É importante destacar que ao tratar das formas compostas, Bello utiliza uma nomenclatura que, conforme ele mesmo afirma, tem duas vantagens:
“En primer lugar, las palabras que se compone el tiempo del verbo
indican el nombre que debe dársele (...). Y en segundo lugar, cada denominación
así formada es una breve fórmula, que determina con toda exactitud el
significado de la forma compuesta.” (BELLO, 1984: § 637)
Adiantando um pouco do que falaremos no próximo subtítulo, vemos que há
pelo menos duas características que relacionam as teorias de Bello e
Reinchenbach: ambas tratam do sistema temporal e ambas se baseiam em três
parâmetros: ponto do evento, ponto da fala e ponto de referência (ainda que
este termo não tivesse sido explicitamente usado por Bello).
Reinchenbach: a influência do ponto de referência
Optamos por abordar a teoria de Reinchenbach por acrescentar um fator relevante no estudo do sistema temporal: o ponto de referência. Elements of Simbolic Logic (1947) analisa os “tenses” por meio de três orientações: point of speech (S), point of the event (E) e point of reference (R), que significam ponto da fala, ponto do evento e ponto de referência, respectivamente.
Segundo Reinchenbach o que diferencia o passado simples do composto é que no primeiro, dois dos três parâmetros coincidem no mesmo ponto: R e E anteriores a S. No segundo, o E é anterior a R e S, lembrando que estes últimos são coincidentes na linha temporal.
Reinchenbach define PS e PC por meio das fórmulas: (R,E - S) e (E - S,R), respectivamente. Na leitura das fórmulas devemos interpretar que a vírgula representa coincidência de pontos e o hífen representa não coincidência de pontos na linha temporal. Assim, na fórmula de PS evento e referência estão num mesmo ponto que é anterior à fala. Na fórmula de PC o evento é anterior a dois pontos que são simultâneos: fala e referência.
A seguir, tentaremos apresentar a proposta de Reinchenbach por meio de nossos exemplos.
(1) “Juan Pablo II fue dado de alta
y regresó al Vaticano”
R1 R2
E2 S E1
___________________|_____________|______________|_________________
fue
dado de alta regresó al
Vaticano
A sentença apresenta dois eventos que acontecem num determinado ponto anterior a S: fue dado (E1) e regresó (E2). Observamos que ambos os verbos estão no mesmo plano temporal: passado. Porém, há uma distância entre um evento e outro, isto é, o E1 é simultâneo a R1 e o E2 é posterior. Como não há marcação adverbial neste exemplo, pressupomos que a referência seja dada por momentos anteriores ao momento da enunciação que não foram precisados no enunciado. R1 e R2 são estabelecidos como coincidentes a E1 e E2, respectivamente, por definição. Sendo assim, confirmamos a teoria de Reinchenbach “…in the simple past, the point of the event and the point of reference are simultaneous, and both are before the point of speech…” (REINCHENBACH, 1960, p.289)
Vejamos como fica a análise da outra sentença:
(2) “Juan Pablo II ha sido dado de
alta la tarde del domingo, sobre las 18.15, hora española, del Policlínico
Gemelli, donde llevaba ingresado 18 días.”
R2 18 días 18d R1 18:15 h
S
EEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEEE2
E1
______________|__________________________|_________|______________
Llevaba internado ha sido dado
de
alta
Neste exemplo há dois eventos anteriores ao momento da enunciação (S) e dois pontos de referência. O ponto de referência do E1 é R1, ou seja, a hora em que o Papa recebeu alta (18:15h). O pretérito imperfeito “llebaba” evidenciado no E2 é simultâneo a sua referência “18 días atrás” (R2). Isso confirma a classificação de Reinchenbach do evento como passado que dura até o momento em que se completa outra ação também passada. Mas, segundo a classificação do autor a respeito do PC, há um problema neste exemplo: R não coincide com S. Vemos no gráfico que o ponto de referência da forma composta (R1) está muito próximo do momento da enunciação, mas não simultâneo a ele. No entanto, devemos considerar que embora no gráfico apareça uma certa distância temporal entre R1 e S, para o emissor estes pontos coincidem, ou seja, o evento ocorre no mesmo dia em que a sentença foi proferida, provavelmente instantes antes do momento da fala. Portanto, a consideração do sujeito da enunciação nos permite abstrair deste exemplo a seguinte fórmula proposta por Reinchenbach: (E - S,R).
Passaremos para a análise do próximo exemplo:
(3) “Un
país, señalan, donde a pesar del bloqueo se han alcanzado índices de
salud, educación y cultura reconocidos internacionalmente.”
R1 señalan
E S
_____________________________|___________|________________________
han
alcanzado
A forma composta em (3) indica que o ponto de fala e o ponto de referência coincidem e que o evento é anterior a ambos. O uso do verbo “señalan” , no tempo presente, marca a relação do ponto de referência com o tempo presente o que favorece o uso da forma composta. Portanto, neste exemplo podemos confirmar o que a teoria de Reinchenbach diz:
“This
distinguishes the simple past from the present perfect. In the statement ‘I have
seen Charles’ the event is also before the point of speech, but it is referred
to point simultaneous with the point of speech; i. e. the points of speech and
reference coincide.” (REINCHENBACH, 1960, p.289)
Reinchenbach lembra que, no inglês, o “Present Perfect” pode ter também outro sentido que corresponde à forma estendida “The English present perfect is often used in the sense of the corresponding extended tense, with the additional qualification that the duration of the event reaches up to the point of speech.” (REINCHENBACH, 1960, p.292)
Destarte, uma re-análise do exemplo em (3) evidencia o segundo uso do PC na língua espanhola que equivale ao esquema do Present Perfect do inglês proposto por Reinchenbach (1960; p. 292), e que nos parece exemplificar melhor o dado proposto já que o jornalista parece referir-se à atenção que o governo cubano vem prestando à educação e saúde desde a revolução até hoje. Reconsideramos, pois, o mesmo exemplo e ilustramos (3) pelo esquema abaixo:
señalan
(3’) han
alcanzado
EEEEEEEEEEEEEE S,R
_________________|____________________|_______________________________
han
alcanzado
Em (3’), o esquema representa a forma estendida do perfeito composto, isto é, o evento iniciou no passado e continua ocorrendo no presente. É provável que o leitor tenha esta interpretação, pois se trata de Cuba, país que tem mostrado desenvolvimento contínuo em termos de educação e saúde. Este esquema é aspectualmente parecido com o do pretérito imperfeito, mas há uma diferença significante entre ambos: no pretérito imperfeito, embora o momento do evento também seja um tempo de duração estendida, R coincide com E e não com S, isto é, o esquema da forma estendida do “present perfect” é (EEE – S,R) e do pretérito imperfeito é (EEE, R – S). Apresentamos esta diferença analisando o seguinte exemplo:
(4)
“...el
pasado 25 de marzo, cuando se aprestaba a retirar el poco dinero que
guarda en el banco, su tarjeta de crédito se trabó...” (www.elmundo.com.bo / Bolivia 02/04/2005)
R1 el
pasado 25 de marzo R2
EEEEEEEEEEEEEEEEE1 E2 S
___________|________________________|________________|_______________________
aprestaba se trabó
Vimos em (4) que no imperfeito R e E coincidem num ponto anterior à enunciação, mas o evento não se estende até S, diferente do que ocorre com o perfeito composto estendido, em que R coincide com S. Neste enunciado, E1, representado pelo pretérito imperfeito, se estende até o E2, representado pelo perfeito simples. Podemos observar que há dois acontecimentos passados com um mesmo ponto de referência “el pasado 25 de marzo”. Portanto, podemos definir o pretérito imperfeito como a coexistência do evento com uma referência passada.
Analisemos o último exemplo:
(5)
“Este domingo, el Pontífice pronunció
sus primeras palabras en público desde
que
le fue practicada la traqueotomía.”
desde que... R2
traqueotomía R1 Este
domingo
...
E2 E1 S
_______________|__________________|______________|_______________________
fue practicada pronunció
Em (5), temos duas referências: R1 “este domingo” que coincide com E1“pronunció”, e R2 “ desde que...traqueotomía” que é anterior a E1, mas que coincide com E2 “...fue practicada la traqueotomia”. Para o emissor os eventos marcados por PS estão num plano temporal passado e terminado.
É importante lembrar, que embora algumas teorias atentem para a relevância da marcação adverbial, existem outros fatores que podem contribuir na escolha de uma forma verbal. O que queremos dizer é que mesmo que haja uma proximidade temporal do evento com o plano atual da enunciação, marcada pela presença da expressão adverbial “este domingo”, a intuição do falante e outros elementos contextuais contribuem com a escolha da forma adequada.
Conclusão
A análise de nossos dados por Bello e Reinchenbach possibilita a observação de que em determinados contextos estas teorias não bastam para explicar a forma verbal adotada pelo falante. Vimos que é importante levar em conta outros elementos explícitos e/ou implícitos a fim de justificar o uso de PS e PC.
No primeiro enunciado, os eventos marcados por PS, significam anterioridade do atributo ao ato da enunciação. Argumentamos que o emissor considera os eventos denotados pela forma simples como iniciados e concluídos no passado, isto é, o E1 “fue dado” e o E2 “regresó” estão no mesmo plano temporal: pretérito.
Em relação ao segundo enunciado, verificamos que outros fatores podem influenciar na escolha de uma forma verbal. A continuação do enunciado “llevaba internado”, pode ter favorecido a escolha por PC, considerando que o acontecimento marcado por esta forma verbal coincide com a duração extensiva de um outro evento também passado (marcada pelo pretérito imperfeito).
Quanto ao enunciado (3), podemos relacioná-lo com o exemplo dado por Bello: “La Inglaterra se ha hecho señora del mar.” Conforme o autor, o evento denotado pela forma composta tem relação com a coexistência. Vimos que em nosso exemplo o uso de PC tem essa característica, ou seja, o evento iniciado no passado continua no momento da enunciação e pode se estender até ela. Por Reinchenbach, fizemos duas análises para este exemplo: a primeira representa a fórmula do antepresente (E – S,R); a segunda representa a fórmula que o autor usou para representar o “Present Perfect” do inglês, mas que serve para representar o PC com aspecto imperfeito e continuado: (EEE – S, R).
Ao analisarmos o enunciado (4) vimos que, possivelmente, o fator relevante
na escolha de PS seja a consideração do falante de que o evento está num plano
temporal passado e concluído.
Reconhecemos a contribuição que estes autores trazem para os estudos do sistema temporal, e estamos com este simples trabalho analisando as possibilidades de aplicação destas teorias a alguns empregos destas formas verbais a dados da língua espanhola atual.
Agradecimentos: à Capes pelo suporte financeiro.
Time
and Reference: the subject of two past tenses in Spanish
ABSTRACT: This paper analyses the differences
between the simple and composed forms of the past tense in the Spanish
conjugation. With the elaboration of a corpus of news extracted from
online newspapers published in Spain and five Spanish-American countries, we
explain usages according to theories whose focuses are based on the time and
reference parameter.
KEYWORDS: Verbal tense. Corpus linguistics. Spanish Grammar.
BELLO, Andrés. 1984 (1847). Gramática de
la lengua castellana destinada al uso de los americanos. Madrid: Edaf.
________. 1979. Análisis ideológica de los tiempos de la
conjugación castellana – p. 415 – 459. In: Obra Literaria. Caracas: Ayacucho.
REINCHENBACH, Hans. 1960 (1947). Elements of
Symbolic Logic. New York: Macmillan Company.
www.clarin.com / Argentina
www.el-mundo.es / Espanha
www.granma.cu
/ Cuba
[1] CCE – Centro de Comunicação e Expressão; PGL – Pós-Graduação em Lingüística; UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina; Florianópolis SC; CEP - 88040-970; leandraletras@hotmail.com
[2] CCE – Centro de Comunicação e Expressão; PGL – Pós-Graduação em Lingüística; UFSC – Universidade Federal de Santa Catarina; Florianópolis SC; CEP – 88040-970; luizetebarros@cce.ufsc.br
[3] Grifos nossos