Identificação Negra e Educação: perspectivas de inclusão a partir da Lei 10.639/03?

 

Contextualizando o título...

 

O título encerra-se com uma interrogação por vários motivos, listo alguns:

i) O que é a Lei 10.639/03? (anexo 1) Quantas pessoas realmente estão sabendo que existe essa lei e o que ela traz, ou melhor, pode trazer de novo para o cenário escolar?

ii) Partindo-se do pressuposto que se conhece o conteúdo dessa lei, será que projetos de lei têm o poder de mudar realidades?

iii) Levando-se em conta o item ii, será que há interesse em mudar, por parte do corpo escolar, a realidade racial das escolas?

iv) Supondo que haja interesse, qual o novo modelo de escola que teríamos a partir de então, e como isso se refletiria nas relações interpessoais que são travadas nesse ambiente?

 

Antes de tentar responder a algumas dessas inquietações, que são mais do que simples indagações, contarei uma historinha:  aula de história do Brasil para a 6º série. Começa a professora a falar da escravidão no Brasil e a única menina negra da classe, de uma escola de periferia, mas que não era pública, à medida que a professora “avança” na história, ela se afunda cada vez mais na cadeira. O sentimento de vergonha e impotência vai aumentando dentro dela à medida que todos os olhares da classe, inclusive da professora, vão identificando ela com aquele povo primitivo, com costumes estranhos, que haviam, de fato, de ter algo ruim dado que “mereciam” ser escravos. Aquela identificação que estavam lhe impondo, não condizia com a que ela tinha para si, daí os sentimentos de vergonha, impotência e alívio ao final da aula.

            Essa é uma historinha que embora pertença a uma narrativa pessoal, com uma ou outra alteração pode fazer parte da história pessoal da maioria das crianças negras aqui no Brasil. A escola, com seus olhares acusadores, silêncios barulhentos, apagamentos das diferenças e discriminações produz não só sentimentos de vergonha e revolta, mas a exclusão de milhares de crianças negras; isso acontece porque a escola se recusa a adaptar-se a essas novas realidades que colocaram, mas não incluíram a mulher, o negro, o trabalhador rural, o índio, o deficiente, o imigrante nos bancos escolares.

A escola sempre foi um lugar de privilégios para privilegiados, mas o crescente inchaço das populações urbanas e o aumento da pressão por escolas para todos e para todas, principalmente a partir dos anos de 1950, 1960, provocou a entrada de um contingente de pessoas antes excluídas nesse universo escolar. Outras realidades sociais estavam dentro da escola, mas isso não implicou, infelizmente, em mudanças dentro do modelo escolar vigente na época; modelo este que ainda é facilmente perceptível hoje.Não é preciso fazer muitas inferências para saber quem teve que se adaptar nesse jogo e, não conseguiu, dado ainda o nível alarmante de pessoas que não conseguiram ultrapassar o ensino básico no Brasil. É para tentar mudar esse modelo de escola e, com isso, a situação, ao menos, das crianças negras presentes nela, que a Lei 10.639/03 chega, menos do que como uma medida governamental como tantas outras, e mais como a possibilidade de construirmos possibilidades dentro do contexto escolar.

 

O que é a Lei 10.639/03 e quais são seus objetivos?

 

Primeiramente, é importante que se destaque que esta lei não é mais uma das medidas patriarcais do governo, tão famosas dentro da história do Brasil. Não se trata de um favorecimento do senhor para com seus bons escravos, e sim de uma luta de bastante tempo dos movimentos negros do Brasil que, desde a época da escravidão, já existiam e lutavam para que fosse dado ao negro o direito, ao menos, de fazer reivindicações. O direito à educação sempre foi uma antiga luta, que não cessou, desses movimentos e essa Lei é um dos frutos dessa luta.

A Lei 10.639 é uma alteração da LDB, Lei de Diretrizes e Bases Nacional, de 1996 (Lei 9. 394/96), e visa dar visibilidade, positiva dessa vez, aos negros dentro do contexto escolar. A 10.639, ao estabelecer a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas, vai promover a valorização de uma história e cultura sempre posta à parte, a não ser quando se tratava de falar de futebol e samba. Ao se conhecer a história afro-brasileira e africana, vai se entrar em contato também com séculos de exploração do trabalho africano e com 350 anos de escravidão do Brasil e os desdobramentos pós-abolição da escravatura. Ao se conhecer a história, se desconstrói o mito, bastante frutífero para perpetuar as desigualdades, da democracia racial. Este é o grande responsável por se difundir a idéia de que se os negros não atingem os mesmos patamares sociais e econômicos que os brancos e, no que se refere à escola, que se as crianças negras evadem e repetem, é porque são incompetentes e desinteressadas, já que aqui no Brasil não existe racismo e todos têm as mesmas oportunidades.

 O reconhecimento das desigualdades seculares que a estrutura social hierárquica  trouxe de prejuízos para os negros, faz emergir as chamadas políticas de reparação e de reconhecimento, e esta Lei é um fruto dessas políticas. Essas políticas, que se realizam por meio de programas de ações afirmativas, exigem que um novo modelo de escola surja; modelo este que contemple um projeto de educação que englobe professores, coordenadores, comunidade, alunos e pais  que estejam comprometidos com a formação de cidadãos que não mais produzam e reproduzam os preconceitos e as práticas discriminatórias que promovem as desigualdades e a conseqüente exclusão do alunado negro das escolas.  Essa é a aposta que os movimentos negros e as pessoas comprometidas com uma sociedade melhor para todos e todas fazem quando reivindicam que mais pessoas conheçam esta Lei, que é de 2003, fazendo com que ela seja efetivamente implementada.

 

Construção de identidades a partir da lei...mudanças?

 

O que teria acontecido à menina do começo do texto se, ao invés de ver retratado os africanos como primitivos pela professora, houvesse tido uma aula que mostrasse a rica cultura africana, e o legado histórico deixado por eles aqui no Brasil na construção da nossa cultura, das nossas crenças, da nossa forma de comer e dançar; na construção do nosso pensamento intelectual, lugar esse sempre negado aos africanos e a seus descendentes. Talvez uma diferente abordagem houvesse ajudado a construir de forma mais sadia o sentimento de pertença racial que estava apenas brotando naquela criança. Sentimento esse que acaba sendo abafado por experiências tais como as relatadas por Gomes (2005:150), quando esta questiona a autonomia do professor em rejeitar, por exemplo, a Lei, e se recusar a cumpri-la; problema esse que infelizmente vem sendo constatado em diversas diretorias de ensino. Ela se pergunta se

 

em nome de uma suposta autonomia, uma professora pode colocar uma criança negra para dançar com um pau de vassoura durante uma festa junina porque nenhum coleguinha queria dançar com ‘negrinho’. Discutir essa ‘autonomia’ do professor representa, também, denunciar práticas em que o (a) professor (a) estabelece que o castigo para os alunos ‘desobedientes’ será sentar ao lado do aluno negro da sala.”

 

Exemplos como esse nos mostram que o caminho é árduo para a mudança desse modelo de escola, pois ele está completamente enraizado no campo dos valores e das representações sobre os negros que professores e alunos negros e brancos têm.

            Costumo sempre brincar que ninguém se olha no espelho e diz: “Uau!!Sou negro!!Legal!!” Se se parte aqui neste trabalho que a identificação se dá num processo (Hall, 1997); quando falamos sobre o negro, essa noção de processo passa a de um simples conceito a uma experiência, na maior parte das vezes, dolorosa. Nunca se é negro, sempre se torna!Quando não somos nós que nos percebemos como negros, temos essa condição gritada no tratamento recebido nas escolas, na entrada de bancos, de lugares tidos como caros, no emprego que procura pessoas com boa aparência, entre tantas outras situações discriminatórias. Principalmente para as crianças, para quem a auto-identificação ainda não se configurou na sua consciência, ser nomeado como negro, preto, encardido, macaco, sujo etc pode causar marcas indeléveis na alma, pois esses nomes acabam por configurar uma violência já que pretendem constatar uma condição na qual a criança não se reconhece.  Ser negro não é uma constatação, mas um tornar-se, um desejar-se ser, ou seja, auto-nomear-se negro é um ato antes de mais nada performativo. (Austin, 1990)

            Em relação a esse ato, violento, uma vez que imposto, de nomear e de ser nomeado, de designar e ser designado, Butller (1997:29) diz que

 

primeiro um nome é oferecido, dado, imposto por alguém ou por um conjunto de pessoas, e é atribuído a um outro. Isso requer um contexto intersubjetivo, mas também uma forma de direcionamento, no sentido de que o nome emerge para constituir o Outro, e nesse direcionamento, há um rendimento a essa constituição”.

 

Esse ato pressupõe, segundo a autora, alguém que recebe e alguém que realiza este ato, dessa forma, o sujeito que é nomeado provavelmente, ou melhor, potencialmente nomeará alguém no futuro. Nomear e ser nomeado é assim uma forma de conferir e constituir existência, subjetividade, identidade a um Outro. A questão é que a linguagem ao mesmo tempo em que confere, que possibilita uma existência, ela também a ameaça, justamente porque esse constituir alguém,  é um ato antes de tudo político.

Quando pensamos nos atuais debates sobre a “questão negra” e em como os movimentos negros se posicionam em relação a isso, a auto-identificação negro adquire um valor social e político diferente da hetero-identificação. Tanto a auto como a hetero-identificação de “negro” é um ato antes de mais nada político, que serve, dentro dos atuais debates, tanto aos propósitos de quem se identifica como negro, configurando o que se chama de “orgulho negro”, quanto aos propósitos de quem realiza esse ato, transformando a diferença do negro em desigualdade.  Essa identificação sempre irá se dar de forma violenta uma vez que a questão fica resumida aos negros, como se o resto da população brasileira não fosse atingida por essas relações antagônicas que se estabelecem entre negros e brancos. Para que realmente as relações inter-raciais dentro da escola e na sociedade mudem, é preciso se pensar nos negros, mas não podemos esquecer dos brancos. Esse processo de identificação doloroso também acontece com as pessoas brancas? O que é ser branco dentro desse contexto?

É interessante levantar essas questões porque inclusive na literatura existente sobre relações raciais, só quem tem “raça” é o negro, o índio, o asiático etc. Como bem salienta Bento (2002: 41)

 

“...os estudos silenciam sobre o branco e não abordam a herança branca da escravidão, nem tampouco a interferência da branquitude como uma guardiã silenciosa de privilégios.Assim, não é à toa que mesmo os pesquisadores mais progressistas não percebam o seu grupo racial, implicados num processos indiscutivelmente relacional. Não é por acaso a referência apenas a problemas do Outro, considerado diferente, específico, em contraposição ao humano universal, o branco. Esse daltonismo e cegueira caracterizam um estranho funcionamento de nossos cientistas e estudiosos, aqui incluídos psicólogos e psicanalistas, que conseguem investigar, problematizar e teorizar sobre questões referentes aos indivíduos de nossa sociedade de forma completamente alienada da história dessa sociedade...”

A questão fica colocada como um problema dos negros, quando deveria ser visto como um problema a ser resolvido por todos e todas, visto que diz respeito a todos nós, brancos e negros.Não podemos esquecer da herança positiva econômica e simbólica, como nos diz Bento, que os brancos receberam da escravidão. Dessa forma, é imprescindível que para se mudar as relações étnico-raciais que são estabelecidas na escola e na sociedade como um todo, que todos nós paremos de olhar para essas questões como se fossem problemas de um Outro que não somos nós.

 

Considerações finais

Terminarei o texto com outra historinha ocorrida em contexto “escolar”: toda mudança, ao menos para uma boa parte das pessoas, causa estranheza, medo, preocupação, enfim, resistência. Não seria diferente com a implantação desta lei. Para alguns professores, é extremamente difícil se desarraigar de posturas e sentimentos que, muitas vezes, eles repudiam nos outros, mas que também fazem parte de como reles vêem e sentem esse mundo em que vivemos. O primeiro grande desafio para a 10.639/03 é fazer com que os professores reconheçam o racismo presente nas suas atitudes em relação aos alunos e aprendam a lidar com ele, pensando que, a despeito de nossas crenças individuais, a escola tem que ser um lugar de respeito para com todos e todas.

Ao ministrar uma aula sobre educação anti-racista em um curso de formação de professores, deparei-me com reações que exprimiam descrédito ao que estava sendo dito ou que deslocavam a questão racial para colocar em relevo o velho argumento de que se tratam puramente de questões sociais. Nenhuma novidade até aí. É passível de compreensão comentários como esse, proferidos pelos professores: “Vocês (entenda-se negros!Ali eu deixei de ser uma ”autoridade”no assunto para ser mais uma negra ressentida) ficam procurando pelo em ovo!.  Ou ainda “Não consigo enxergar nada disso do que você está apontando!”  Note-se que esses comentários foram ditos quando eu estava mostrando uma pesquisa realizada pela Heloísa Pires Lima, que investigou como os personagens negros apareciam em alguns livros de literatura infanto-juvenil[1] (ver anexos 2 e 3). Dentre outras coisas, algumas imagens reforçam os estereótipos de “macaco”, “burro, estúpido”, “conformado” atribuídos aos negros e negras em geral. Por que é compreensível? Aprendemos a aprender, inclusive nós, negros, a não perceber em imagens como essas ou nos discursos que elas veiculam o quanto os negros e negras estão formatados, condicionados a uma identidade que não lhes permite “ser” além do que esses estereótipos permitem. Esse apagamento, essa invisibilidade, esse não discutir questões como raça porque causam polêmica gerou essa dificuldade extrema que muitas pessoas sentem de ir além do que a superfície dessas imagens e desses discursos estereotipados permitem. O meu discurso como professora,  anti tudo isso, só foi novamente autorizado quando mostrei dados do IBGE (2001) (ver anexo 4), ou seja, não é mais “fala de preto”, que escancaravam, explicitavam que todos os índices desfavoráveis seja no trabalho, na escola, entre outros, mostravam os negros e, especificamente, as mulheres negras na base da pirâmide social, reafirmando o que há muito tempo denunciam os movimentos negros: a pobreza tem cor!Mesmo os brancos, de tão pobres que são, como diria Gilberto Gil, ficam pretos.

Essa historinha mostra que existem muitos desafios e resistência a ser enfrentado na construção de uma escola que saiba reconhecer a pluralidade existente nela. Nesse caminho, é explícito o fato de que mais do que uma Lei, precisamos debater, pesquisar sobre questões raciais, seja na própria escola, seja em cursos, como o oferecido por algumas secretarias estaduais ou municipais de educação, que ensinam os professores a não transformar a diversidade existente na escola em desigualdade. É triste, mas temos que fazer cursos que mostrem a contribuição positiva dos negros e negras aqui no Brasil, já que a História apagou da sua memória, e das nossas, esses fatos. Mas já temos bons resultados: é preciso continuar a historinha acima e dizer que alguns professores que estão participando desses cursos ou fazendo projetos relacionados ao tema, manifestaram algumas opiniões que demonstram que o processo de mudança que, embora lento, já está em andamento.

Destaco aqui o depoimento de uma professora, tida como rígida pelos colegas, que disse o seguinte, não exatamente com essas palavras: “Nunca havia me pensado como racista antes. Nunca havia me pensado como branca e o que isso significa. Depois do curso, percebi que muitas ações minhas com meus alunos negros haviam sido porque na verdade tinha preconceito contra eles. É ruim me perceber assim mas agora estou mais atenta às minhas ações e reações.” Duas coisas importantes a destacar nesse depoimento: primeiramente, a constatação de que, para quem realmente está se esforçando nesses cursos e não apenas cumprindo uma “intimação” da diretora da escola, o fato de se discutir e começar a conhecer fatos relacionados à “temática negra”, está produzindo efeitos na dinâmica escolar, no sentido, ao menos, de não ser mais possível não perceber e não combater situações de racismo na escola. A outra coisa é que a questão da identidade está muito fortemente colocada aí. Se perceber como racista e reconhecer os efeitos positivos economicamente e simbolicamente de ser “branca”, faz com que se comece a deslocar esses questionamentos para que eles parem de ser temáticas negras para ser temática de todos nós.

É importante salientar que chamar o problema para si não se trata de um favor que fazemos, uma concessão porque somos bons, visão essa que muitas pessoas têm das políticas de reparações, por exemplo; mas, antes de qualquer coisa, trata-se de reconhecer que fazemos parte da História também e que o legado do passado ainda continua a fazer parte do presente e, se não começarmos a ter sensibilidade e a travar pactos éticos no tocante a essas questões, fará parte do nosso futuro também.

 

Referências Bibliográficas

AUSTIN, John. (1990) Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes

Médicas. Trad. Danilo Marcondes.

BENTO, Maria Aparecida Silva. (2002) Branqueamento e branquitude no Brasil. In: Bento, Maria Aparecida Silva & Carone, Iray. (orgs.). Psicologia Social do racismo – Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes.

BENTO, Maria Aparecida Silva & CARONE, Iray (orgs.) (2002). Psicologia Social do racismo – Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis, RJ: Vozes.

BUTLER, Judith. (1997). Excitable speech: a politics of the performative. London and

New York: Routledge.

GOMES, Nilma Lino. (1999-2005). Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre algumas estratégias de atuação. In: Munanga, Kabengele. (org.). Superando o racismo na escola.. Brasília: MEC, SECAD.

HALL, Stuart. (2000) Quem precisa de identidade? In: SILVA, T. Tadeu da. (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes

MUNANGA, Kabengele. (org.).(1999-2005). Superando o racismo na escola. Brasília: MEC, SECAD.

SECAD. (2005). Educação anti-racista: caminhos abertos pela Lei federal nº 10.639./03. Brasília: MEC, SECAD. (Coleção Educação para todos).


Anexo 1


Anexo 2

 

 



Anexo 3

 

 



Anexo 4



[1] Esse artigo encontra-se no livro “Superando o racismo na escola”, organizado por Kabenguele Munanga.