A escrituralidade do oral: a desconstrução derrideana e suas implicações para o ensino
Universidade Estadual de Campinas
Trata-se de um truísmo e, porque
não dizer, um lugar-comum afirmar que a Lingüística é uma ciência erguida sobre
a premissa da primazia do oral, da fala. Desde a sua origem como ciência
moderna, ela sempre procurou se distanciar da Gramática Tradicional, por um
lado, e da Lingüística Histórica (Filologia), por outro. Ambas foram tachadas
de tentativas de confundir a língua com a escrita—a primeira, porque procura se
pautar na norma culta, cujo berço é a modalidade escrita, e a segunda porque,
por tratar da evolução da língua através dos tempos, precisa buscar seus dados, em
grande parte, nos documentos escritos dos tempos passados.
Para a Lingüística, pelo menos de Saussure em diante, a escrita não passa de
uma excrescência, algo que foi inventado
posteriormente e, por esse motivo, algo que não diz respeito à verdadeira
essência da língua. Tal essência, diz a cartilha da moderna ciência da
linguagem, só pode ser encontrada na fala—a versão humana do sopro divino.
Na fala, o sujeito da língua estaria se mostrando tal qual ele é, escancarando
sua verdadeira identidade.
Uma primeira pergunta a se fazer
é: será que essa suposta primazia da fala se sustenta em todos
os seus sentidos? Sabemos, como acabamos de ver, que o argumento mais forte
costumeiramente arrolado em prol dessa tese é a ordem cronológica do surgimento
da escrita em relação ao da fala. Há evidências incontestáveis de que a escrita
foi introduzida muito tempo após o primeiro homem começar a se valer da
linguagem – aproximadamente há 1.000.000 anos atrás. Em contrapartida, ao que
se supõe, a fala sempre esteve presente como marca registrada da espécie chamada
homo sapiens.
Ora, só esse argumento derrubaria
qualquer tentativa de negar à fala prioridade em relação à escrita. Esta teria surgido como acréscimo
a algo que é próprio dos seres humanos—a habilidade de se comunicarem por
intermédio da fala.
A fala seria, de acordo com essa linha de raciocínio, indissociavel e
inalienavelmente humana. A escrita, em contrapartida, seria um mero adereço, cuja ausência de forma alguma abalaria a essência dos seres
humanos. Era esse o
sentido do ser humano—homo sapiens e homo loquens—que James
McMillan (1954: 140) estava querendo priorizar quando pronunciou:
A língua é um sistema arbitrário de sinais vocais, por intermédio do qual grupos de seres humanos interagem. Essa definição exclui a escrita, gesticulação, gritos de animais, bem como sistemas de códigos visuais, auditivos e tácteis e não limita a língua a determinados grupos ou tipos de seres humanos.
Ou seja, para a Lingüística, o homo
scribens é produto de um acaso. Não há nada que o lingüista possa aprender
a partir do comportamento do homem que escreve. Como dizia Aristóteles, a
escrita é uma imitação de algo que já é, por sua vez, uma imitação. Ou seja, a
fala—segundo essa linha de raciocínio—tem como objetivo imitar ou espelhar a
linguagem silenciosa da mente, a qual foi batizada de mentalese ou “language
of thought (LOT)” por Fodor (1975) (retomaremos essa discussão
adiante). Posto que não temos acesso ao que se passa no cérebro de um homem e,
por conseguinte, à sua “mentalesa”, teremos de nos contentar com a fala, a mais
próxima dela. No auge da Lingüística Estrutural e da Psicologia Behaviorista
que a subscrevia (sobretudo nos EUA), não se podia mencionar a palavra “mente”,
o que talvez explique a decisão de contemplar a fala como a mais autêntica
instância da expressão lingüística.
Acontece que a decisão de se equiparar a língua com a fala sempre
esbarrou num detalhe inconveniente: a identidade de uma língua como o chinês é garantida, não pela fala, mas, sim, pela
escrita. Ou seja, é sabido que o chinês falado não é compreendido por todos os
usuários dessa língua. Sabemos, por exemplo, que o mandarin e o cantonês são
variedades cujos falantes não compreendem uns aos outros. Todavia, de que forma
justificamos a contabilização de ambos os grupos como “falantes” do mesmo
idioma? A resposta está em que, para que se possa falar no chinês como uma
língua utilizada em todo o território chinês, utiliza-se o critério de escrita,
e não de fala pois, ao contrario do chinês falado, o chinês escrito é
compreendido por todos os seus usuários e isto é o que garante a identidade da
língua que chamamos de “chinês”.
Ou seja, ao escolhermos a fala como a expressão autêntica da língua, optamos por deixar do lado de
fora exemplos gritantes, como o caso
do chinês. A pergunta que devemos fazer agora é: como tal manobra foi
justificada em todo este tempo? Dito de outra forma, como foi que ninguém levantou esse
tipo de objeção a um postulado da Lingüística Moderna? Em primeiro lugar, é
preciso reconhecer que o fato de o chinês ter sua identidade assegurada pela
escrita é amplamente reconhecido e devidamente registrado em livros
introdutórios/didáticos. Vejamos o que diz Robins (1981 [1964]), autor da obra Lingüística
Geral:
O
chinês é o melhor exemplo conhecido de uma língua na qual os símbolos escritos
são representações gráficas de itens individuais léxicos e gramaticais como um
todo. Existem, em conseqüência, muitos milhares de tais símbolos escritos
individualmente de maneira diversa, ou caracteres, como são frequentemente
chamados, usualmente pensados como representantes diretos de idéias e, por
isso, também chamados ideogramas, mas mais sensivelmente tratados como a
representação de formas faladas, em muitos casos palavras, mas mais
estritamente morfemas. (Robins, 1981:113)
O trecho acima citado contém todos os ingredientes que mais tarde vão
servir para contornar um fato incômodo—o de que estamos diante de uma língua
que desafia o preceito aristotélico de que a escrita seja uma imitação da fala.
Logo após reconhecer que o chinês é uma língua que dispensou a intermediação da
fala entre a mente e a escrita, Robins começa a preparar o terreno para o
argumento de que a escrita chinesa é um sistema ineficiente por ter que lidar
com “muitos milhares de tais símbolos escritos individualmente de maneira
diversa”. É
justamente esse argumento que Robins vai nos apresentar no parágrafo seguinte.
Em suas próprias palavras:
A maioria dos sistemas de escrita
usa [sic] formas escritas para representar de alguma maneira a
composição fonética das formas diretamente, assim afastando-se a necessidade de
tantos símbolos escritos diferentes quantos sejam os itens lexicamente
diferentes na língua. (id. ibid.)
Em resumo, Robins, assim como
diversos outros estudiosos que se debruçaram sobre o assunto, quer nos
convencer de que os ideogramas representam um estado primitivo no
desenvolvimento dos sistemas de escrita. Ao se referir aos sistemas chamados
silábicos, Robins faz questão de salientar o seguinte:
Este tipo de desenvolvimento da
escrita silábica parece o caminho que leva ao alfabeto ou sistemas de letras da
Europa e de outros lugares, nos quais as articulações das vogais e consoantes
são separadamente caracterizadas por letras individuas. [...] A escrita
alfabética, que está agora espalhada por todo o mundo e que está sendo
desenvolvida à custa da escrita silábica, como em Java, ou a seu lado, como um
segundo sistema de escrita, é somente um dos muitos débitos que a civilização
tem para com o gênio peculiar da antiga Grécia. (Robins, 1981: 114)
O resumo da ópera: a escrita, em
seu sentido mais avançado, começa com o sistema alfabético; todo o resto faz
parte da pré-história. Deixemos passar em branco o eurocentrismo
escancaradamente presente nessa postura. O que não pode ser ignorado nessa
manobra é que, longe de a história dos sistemas de escrita evidenciar a relação
especular da escrita vis-à-vis a fala, é o apego ao fonocentrismo que sustenta
o argumento de que a escrita alfabética seja um sistema mais avançado do que os
demais e que teria evoluído a partir deles.
O fato é que a Lingüística é
herdeira e avalista da longa tradição fonocêntrica da civilização ocidental.
Isso talvez explique porque explanações alternativas sobre a origem da escrita
sempre foram postas às margens. Mas estas não foram silenciadas. Pelo
contrário, são aventadas de tempos em tempos. Uma dessas tentativas é de
autoria de Harris (1981, 1986, 1995, 1996). Esse autor argumenta, com bastante
poder de persuasão, que a escrita teria evoluído, não a partir da fala, mas, a
partir da arte de desenhar. Assim, entre as primeiras tentativas empenhadas
pelo homem em deixar mensagens para gerações subseqüentes estão as pinturas
rupestres. Já os ideogramas seriam estilizações de desenhos mais bem acabados
utilizados em períodos anteriores.
Harris faz questão de ressaltar
que o tema do surgimento da escrita é difícil de se explorar, posto que há uma
tendência forte por parte dos pesquisadores no sentido de tomar o momento
histórico no qual se encontram como o estado evolutivo mais perfeito e acabado
e, em seguida, re-criar a história de tal forma que ela sirva apenas para
confirmar a hipótese inicial. Isso se comprova na conclusão a que chega Robins:
a de que a escrita alfabética é “somente um dos muitos débitos que a
civilização tem para com o gênio peculiar da antiga Grécia”. Ora, longe de se
constituir em uma conclusão, tal proposição faz parte do próprio pressuposto de
todo o seu argumento. Ou seja, é a idéia de que a Grécia foi o berço de toda a
civilização européia que faz parte do pano de fundo contra o qual toda a
argumentação de Robins se processa. Robins não só não reconhece isso, mas
aceita, sem qualquer reserva ou questionamento, a tese de fonocentrismo da
lingüística.
O fonocentrismo da Lingüística é
nada senão a expressão mais gritante do logocentrismo, a marca registrada da
metafísica do mundo ocidental. Quem nos garante é Jacques Derrida (Rajagopalan,
2005). Para Derrida, a Lingüística tem tamanha aceitação precisamente em
virtude de reiterar a metafísica. A gramatologia—o avesso da Lingüística—seria,
portanto, necessária e impossível ao mesmo tempo. Necessária porque as
oposições mobilizadas pela Lingüística—entre elas a oposição entre a fala e a
escrita—pedem para ser desconstruídas. Impossível porque, mesmo para que se
possa desfazer o projeto da
Lingüística, seria preciso valer-se das mesmas oposições que são colocadas sob
suspeita. Como se não bastasse, há um certo sentido em que não se livra das
garras da nossa metafísica.
Em suma, Derrida nos mostra como
a Lingüística—a ciência erguida sobre a primazia da fala—está condenada a
conviver com o incômodo de que a própria oposição fala/escrita carrega as
sementes de sua desestabilização. Isso porque a própria oposição entre a fala e
a escrita, nos termos em que ela é defendida, só teria sido possível numa
cultura letrada. Como disse Derrida logo no início do seu livro A Farmácia
de Platão:
Um texto só é um texto se ele
oculta ao primeiro olhar, ao primeiro encontro, a lei de sua composição e a
regra de seu jogo. Um texto permanece, aliás, sempre imperceptível. A lei e a
regra não se abrigam no inacessível de um segredo, simplesmente elas nunca se
entregam, no presente, a nada que se possa nomear rigorosamente uma
percepção. (Derrida, 2005 [1972]:7)
E o que é que o texto fundamental
da Lingüística, aquele que estabelece a primazia da fala e, no mesmo gesto,
relega a escrita às margens, oculta e esconde de nós? O que a Lingüística
esconde de nós é que a instância da Fala que ela quer promover como a instância
da autenticidade, da originalidade, e da não-diferença só pode ser pensada a
partir da ocultação, do deferimento, que ela mesma promove. Pois, a fala ainda
é compreendida como a instância de uma exterioridade, o reflexo de uma
autenticidade ainda mais pura e permanente, quem diria, que nem a escrita—a
saber, aquilo que está incrustado—porque não dizer, escrito—na mente do falante.
Ou seja, a putativa autenticidade da fala, só pode ser justificada:
Evidentemente, pensar a
escrituralidade da fala implica abrir a caixa de Pandora e, com isso, abalar
uma serie de “monstros sagrados” do nosso pensamento tradicional no que tange
ao estatuto do texto e da interpretação. O texto, dentro desta perspectiva, não
é algo deficitário como supõe a Lingüística—deficitário no sentido de que, como
leitores, somos convidados (ou obrigados) a buscar a voz, a fala, do sujeito
falante por trás do texto escrito, entendida como a verdadeira fonte. O texto
adquire o status de um objeto em si e por si, não dependente de nenhuma voz
ausente, apenas pedindo para ser lido e interpretado (e objetivado) enquanto
tal. O processo de leitura/interpretação torna-se, por conseguinte, a condição
da própria existência e sobrevivência do texto. Dito de outra forma, a
textualização ocorre durante o próprio ato de leitura ou, se quiser, a palavra
“leitura” se transforma em um sinônimo daquilo que estamos chamando de
textualização. É o processo que se convencionou chamar, em
inglês, a writerly tradition: o leitor participa da própria criação do
texto.
As implicações dessa nova postura
diante do texto, da leitura e da interpretação são muitas. Elas permitem pensar
numa educação verdadeiramente emancipatória, na medida em que transfere para o
leitor uma maior participação na construção do texto e, junto com isto, uma
enorme responsabilidade.
Nota:
Este texto foi confeccionado a partir das anotações que foram utilizados
numa palestra que proferi durante o IV SENALE (de 16 a 18 de novembro de 2005).
Nem todos os argumentos arrolados naquela ocasião se acham elaborados neste
texto.
Agradecimento:
Sou grato ao CNPq pela concessão da bolsa de produtividade em pesquisa –
processo n.º 306151/88-0.
Referências bibliográficas:
Derrida, Jacques (2004). Papel-Máquina.
(Trad. Evando Nascimento). Rio de Janeiro: Estação Liberdade. Título original: Papier-machine.
Paris: Galilée.
———— (2005 [1972]). A Farmácia
de Platão. (Trad. Rogério da Costa). São Paulo: Iluminuras. Título
original: La pharmacie de Platon. Paris: Seuil.
Fodor, Jerry (1975). The Language of
Thought.
Nova Iorque: Thomas Y. Crowell.
Harris, Roy (1981). The
Language Myth. Londres: Duckworth.
————
(1986). The Origin of Writing. Londres: Duckworth.
————
(1995). Signs of Writing. Londres: Routledge.
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(1996). The Language Conection. Philosophy and Linguistics. Bristol,
Reino Unido: Thoemmes Press.
McMillan, James B.
(1954). ‘Summary of nineteenth-century historical and comparative linguistics’.
College Composition and Communication. 5. 140-149.
Rajagopalan,
Kanavillil (1996). ‘The invention of speech, or, the logic of deconstruction’. Letras
& Letras. 12(2). pp. 7-20.
————
(2005). ‘Jacques Derrida’. In: Chapman, Siobhan and Routledge, Christopher
(orgs). Key Thinkers in Linguistics and the Philosophy of Language.
Edinburgh: Edinburgh University Press. pp. 66-71
Robins, R. H. (1981 [1964]). Lingüística
Geral. Porto Alegre/Rio de Janeiro: Editora Globo. 2ª ed. Título da edição
original inglês: General Linguistics – An Introductory Survey. Londres:
Longman Group. 1964.