O CONTATO COM O ESPANHOL NA
SINCRONIA: ANÁLISES CONTRASTIVAS DE DIALETOS DO PORTUGUÊS FRONTEIRIÇO
Jorge Espiga (UCPEL, CEFET/RS)
O tema da variação da lateral
posvocálica nos dialetos fronteiriços do Rio Grande do Sul utilizamos, dentre
outros, não somente para descrever tal processo fonológico, mas com o objetivo
de contribuir para a descrição do contínuo lingüístico denominado Português Gaúcho da Fronteira, seja mediante
generalizações, seja mediante peculiarizações decorrentes de análises regionais
contrastivas.
O projeto intitulado “Estudo da
variação da lateral implosiva no português da fronteira”, desenvolvido na
Universidade Católica de Pelotas, acessa dados oriundos do BDS Pampa - Banco de
Dados Sociolingüísticos da Fronteira e da Campanha Sul-Rio-Grandense -, sediado
na UCPel, referentes à região do Litoral Atlântico, complementando-o com dados
das regiões da Fronteira Oeste e das Missões.
Do Litoral Atlântico, o projeto
pesquisa os dialetos das cidades de Chuí, Santa Vitória do Palmar, Pelotas e
Rio Grande. Na Fronteira Oeste e nas Missões, foram efetuadas coletas adicionais nas cidades de Santana do Livramento
e São Francisco de Assis, cujos dados também foram incorporados ao acervo do
BDS Pampa.
A vocalização da lateral
posvocálica é o resultado de um processo de mudança lingüística, que procura
relaxar a articulação desse segmento, posteriorizando-o e descoronalizando-o,
ao passo que lhe confere o traço labial. Trata-se de um processo que se
consolida no tempo e que pode ser analisado, segundo Espiga (2001), na seguinte
seqüência de estágios:
(01)
Processo
de vocalização da lateral
[l]
> [Â] >
[lw] > [w] (> O)
O corpus processado até
o momento conta com 6727 dados, pertencentes aos dialetos de Chuí, Santa
Vitória do Palmar, Pelotas, Rio Grande e Livramento. Tais dados representam
sons laterais implosivos de 24 falantes de cada dialeto, extraídos de 120
entrevistas.
A seleção dos informantes, para
efeitos de composição das amostras, responde aos critérios de
representatividade dos grupos sociais propostos por Labov (1994): faixa etária,
escolaridade e sexo. Esses aspectos,
mais o grau de contato com o espanhol, foram tomados como variáveis
extralingüísticas para o processamento.
Os dados foram submetidos à
análise estatística, mediante o sistema Varbrul. Como variantes da variável
dependente foram definidos os quatro alofones da lateral posvocálica, definidos
como estágios da regra de vocalização em (01), mais a elisão. Esta, por
apresentar freqüência muito baixa em todos os dialetos, não pôde receber tratamento
quantitativo.
As variáveis lingüísticas
pesquisadas neste trabalho são a vogal precedente e o contexto seguinte, quanto
ao ponto de articulação e ao traço contínuo, partindo-se da hipótese de que,
durante o percurso diacrônico da regra de vocalização da lateral, a variação é
condicionada lingüisticamente.
A freqüência geral dos
alofones, no português gaúcho da fronteira, resultante do processamento
estatístico, mostram a seguinte distribuição:
(02) Freqüência geral dos
alofones no português gaúcho da fronteira
l |
1554 |
23% |
 |
1554 |
23% |
lw |
3012 |
45% |
w |
534 |
8% |
O |
73 |
1% |
Os resultados mostram que os
fatores lingüísticos operam ativamente na variação, favorecendo ou inibindo os
diferentes alofones com que a lateral posvocálica se manifesta no português
gaúcho da fronteira.
(03) Comportamento dos fatores lingüísticos
(+ = favorece; -
= inibe)
Consoante Seguinte |
Vogal Precedente |
|||||
|
coronal solto, calça |
dorsal qualquer, algo |
a mal |
i brasil |
u sul |
golpe |
l |
+ .64 |
- .24 |
|
+ .63 |
+ .64 |
|
 |
- .39 |
+ .77 |
|
- .32 |
|
+ .63 |
lw |
+ .64 |
|
+ .56 |
|
- .35 |
|
w |
|
|
+ .55 |
+ .64 |
- .16 |
|
Os principais resultados do
Varbrul mostram que os alofones não vocalizados [l, Â] são preferidos quando os
falantes buscam a homorganicidade do ponto de articulação.
Consoante coronal no contexto
seguinte favorece a lateral alveolar (‘sl.tu, ’kal.s«) , com a qual compartilha o seu
ponto de articulação primário, enquanto inibe a velarizada. A alveolar também é
favorecida por vogal precedente [i, u], o que sugere que o traço de altura aí
compartilhado favorece a articulação homorgânica (bra.‘sil, sul).
Consoante dorsal no contexto
seguinte favorece a velarizada, que possui ponto de articulação dorsal
secundário (kwaÂ.’kEr, ‘aÂ.gu), enquanto inibe a
alveolar. A velarizada, pelo mesmo
motivo, também é favorecida pela vogal precedente [] (‘gl.pi).
Os alofones vocalizados [lw,
w] são favorecidos por [a] precedente (malw, maw), enquanto
inibidos por [u] precedente. Na sua estrutura segmental, [lw ]
contém a qualidade vocálica de [w], razão pela qual a vogal forma ditongo
quando precedente a tais alofones, assim como [i], que também favorece [w] (bra.’ziw).
A ditongação aí deriva-se da preferência pelo contraste dos sons. A preferência
pelo contraste fônico é reforçada pelo comportamento inibidor de [u], em
relação a tais alofones.
A busca da homorganicidade
articulatória, evidenciada nesses resultados, pode ser analisada como
expressão, na implementação fonética, do universal lingüístico denominado lei
de menor esforço, uma tendência natural dos falantes no sentido de produzir
enunciados com economia lingüística.
A produção de contraste fônico
pode ser analisada como intenção, por parte dos falantes, de produzir
enunciados mais claros para o interlocutor, dentro do que Ladefoged (1975)
define como princípio de separação perceptual máxima.
A análise estatística revelou,
através da ordem de relevância das variáveis, que os fatores lingüísticos são
subordinados aos extralingüísticos, confirmando que estes aspectos são os que
regem, efetivamente, o ritmo de implementação da mudança.
Na tentativa de correlacionar o
eixo do tempo à faixa etária dos informantes, observou-se a freqüência dos
alofones em função desssa variável social.
(04) Freqüências dos
alofones, por faixa etária
[l] [Â] [lw] [w] O
16-25 anos 11% 14% 64% 10% 1%
26-50 anos 19% 23% 48%
9% 1%
+ 50 anos 39% 32% 24%
4% 1%
Segundo Labov (1994), os jovens
representam o grupo lingüisticamente inovador, enquanto o grupo dos mais velhos
representa usos e tradições mais antigos, que, em caso de estarem em confronto
com variantes inovadoras, correm o risco de serem substituídos, no passar do
tempo. Já o grupo intermediário é portador das formas lingüísticas
estabilizadas no sistema.
Observa-se em (04) que o índice
de vocalização da lateral é função inversa da idade dos falantes. Tal pode ser
constatado em cada coluna dos alofones labializados [lw, w], ao
contrapor as faixas etárias entre si: quanto maior a idade, menor é o índice de
vocalização. Em contrapartida, o índice de não-vocalização da lateral é função
direta da idade dos falantes, o que pode ser constatado mediante contraposições
análogas. Tal simetria ilustra claramente a “antigüidade/novidade” das
variantes: os alofones não vocalizados são mais antigos no português
brasileiro; os vocalizados, mais novos.
O predomínio do alofone [lw]
nos grupos sociais jovem e intermediário é sinal importante de que, de um lado,
a inovação vocalizadora da mudança vem-se consolidando no português gaúcho da
fronteira, representada pelo traço labial desse segmento, apesar de que também
é forte, ainda, a presença do evento coronal na região.
A baixa freqüência do alofone
[w], o qual tem sido considerado praticamente hegemônico no português
brasileiro, sugere que a adesão ao último estágio da regra encontra resistência
na fronteira gaúcha.
O predomínio do alofone [l] entre
os mais velhos mostra que a vocalização é um processo recente no português
gaúcho da fronteira e que tradições lingüísticas mais antigas do português
tendem a ser ainda prestigiadas ou retidas porque compartilhadas com o
espanhol, com o qual os dialetos brasileiros fronteiriços mantêm contato. Tal
comportamento lingüístico tem sido analisado como “efeito interno” do contato
lingüístico (Espiga, 2005).
Já que o alofone [lw]
é forma intermediária, do ponto de vista da estrutura segmental, duas oposições
podem ser feitas, na distribuição dos dados, quanto à freqüência de vocalização
(presença do traço [labial]) e de coronalização (presença do traço [coronal])
da lateral posvocálica no português da fronteira, como em (05) e (06).
(05) Freqüência de vocalização
Não vocalização [l, Â]: 46%
Vocalização [lw, w]:
54%
Se considerarmos que a
vocalização é um processo tipicamente brasileiro, a distribuição acima mostra
um relativo equilíbrio, no contínuo lingüístico fronteiriço, quanto ao estilo
articulatório de português e espanhol. Porém, diante do absoluto predomínio de
[w] no português brasileiro, o índice de não-vocalização do português
fronteiriço adquire significativa expressão, constituindo uma das peculiaridades
dos dialetos gaúchos de contato do português com o espanhol.
(06) Freqüência de coronalização
Coronalização [l, Â, lw]: 91%
Não coronalização [w]: 9%
Ao considerarmos que a
articulação coronal da lateral posvocálica é tradição mais antiga no português
brasileiro, ao passo que, sincronicamente, é categórica no espanhol,
constata-se que a tendência vocalizadora não tem conseguido derrubar, por ora,
a qualidade consonantal do segmento, representada pela obstrução coronal.
Assim, em virtude do contato com o espanhol, o português fronteiriço ainda
oferece resistência significativa à total vocalização da lateral posvocálica.
Retomando a leitura de (04),
será preciso que, em algum momento, os valores da coluna de [lw]
sejam transferidos para a coluna de [w] para que, efetivamente, a mudança se
complete no português gaúcho da fronteira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ELIZAINCÍN, A. Dialectos en
contacto. Español y portugués en España y América. Montevideo: Arca, 1992.
ESPIGA, J.W.R. O Português dos
Campos Neutrais. Um estudo sociolingüístico da lateral posvocálica nos dialetos
fronteiriços de Chuí e Santa Vitória do Palmar. Porto Alegre: PUCRS, 2001.
(Tese de doutorado)
_____ . Como se combinam a
mudança e o contato lingüístico. In: VANDRESEN, P. (org.) Variação e mudança no português
falado da região sul. Pelotas: Educat, 2002.
_____ . O contato do português
com o espanhol no sul do Brasil. In: VANDRESEN, P. (org.) Variação, mudança e contato lingüístico.
Pelotas: Educat (no prelo).
LABOV, W. Principios del cambio lingüístico. Madrid:
Gredos, 1994, 1996.
LADEFOGED, P. Elements of acoustic phonetics. New
York: Harcourt Brace Jovanovich, 1975.
LÓPEZ, B. The
sound pattern of Brazilian Portuguese (cariocan dialect). Los
Angeles: UCLA, 1979. (Tese
de pós-doutorado)
TASCA, M. A lateral em coda
silábica no sul do Brasil. Porto Alegre: PUCRS, 1999. (Tese de doutorado)