A leitura em voz alta como prática inibidora da aprendizagem

 

*Izandra Alves

 

A leitura representa um desafio ao leitor cada vez que este se depara com uma nova palavra. Isso acontece porque o ato de ler exige uma postura questionadora perante o mundo e perante si mesmo. Além disso, propõe que se construa uma resposta que integre parte das novas informações ao que o leitor já tem armazenado em sua “biblioteca interior”. Ler significa ainda formar um juízo sobre o escrito, atribuir sentido à mensagem, conceber um significado, e, sobretudo, ter uma postura crítica e ao mesmo tempo ativa sobre o mundo.

Segundo Vincent Jouve, a leitura é uma atividade complexa que envolve cinco dimensões. A primeira é quando ela é vista como um processo neurofisiológico que representa um ato concreto e observável e que utiliza o aparelho visual bem como diferentes funções cerebrais. Nesse processo, a leitura é concebida como uma operação de percepção, de identificação e de memorização dos signos.  A segunda dimensão é a que vê a leitura como um processo cognitivo, ou seja, deve solicitar competências; o leitor deve possuir um saber mínimo para prosseguir a leitura ao mesmo tempo em que lhe é exigido um esforço de abstração. A terceira dimensão teorizada pelo autor refere-se à afetividade, ou seja, as emoções que a leitura suscita no leitor e que acabam por envolvê-lo, prendendo seu interesse ao que lê. A quarta dimensão trabalha com a idéia de que a leitura é um processo argumentativo onde o autor prepara no texto um discurso de engajamento dele com o mundo e os demais seres; afirma ainda que o objetivo de persuadir o leitor e fazê-lo simpatizante de suas idéias está presente em todas as narrativas. Por fim, a quinta dimensão do processo de leitura é definida como processo simbólico que é o envolvimento do texto com o mundo do leitor, com sua cultura e com seu meio (JOUVE, 2002).

Seguindo as teorias abordadas por Jouve, percebe-se que o primeiro passo para pensar a leitura é vê-la como um processo neurofisiológico, pois sem que se identifiquem os códigos lingüísticos, essa atividade torna-se impossível. No entanto, as atuais práticas de leitura trabalhadas nas escolas têm estagnado nesse primeiro processo, e muito pouco evoluído. A mera decifração de signos, sem associação e relações com situações anteriores, tem contribuído para o fracasso da leitura. Muitos professores pensam avançar para o segundo processo, o cognitivo, mas suas bagagens de leitura, bem como a de seus alunos, são tão pequenas, que as inferências são remotas e, por conta disso, os resultados insatisfatórios. Sendo assim, o envolvimento emocional com o texto torna-se difícil, pois se não há associação nem reconhecimento, não há como sentir piedade, simpatia, admiração ou qualquer outra relação afetiva com o que se lê.

Os processos de significação de leitura abordados por Jouve são interligados e, porque não dizer, dependentes, pois caminham progressivamente de maneira que um completa o outro. Dessa forma, perceber o nível argumentativo proposto pelo texto é algo impossível para o leitor que não consegue abstrair nada de sua leitura superficial. Dar-se conta da intenção discursiva do texto é característica fundamental do leitor proficiente, aquele que acompanha e progride a cada nova palavra que lê, estabelecendo associações e buscando simbologias em seu mundo, em seu meio. Se o que for lido estiver distante simbolicamente do leitor, este não consegue realizar inferências, e a leitura torna-se sem sentido.

Sabe-se também que cada leitor poderá reagir de maneira diferente perante o texto que lê, pois suas experiências, vivências e simbologias são muito particulares e, em contato com o texto, ganham novas dimensões e múltiplas significações, conforme teoriza Marcuschi quando define leitura:

 

 

Na verdade, a leitura é um processo de seleção que se dá como um jogo com avanço de predições, recuos para correções, não se faz linearmente, progride em pequenos blocos ou fatias e não produz compreensões definitivas. (...) ato de interação comunicativa que se desenvolve entre o leitor e o autor, com base no texto, não se podendo prever com segurança os resultados. (MARCUSCHI, 1999, p. 96)

 

 

Como atividade não linear, a leitura permite os recuos, “as saídas de campo para adquirir fôlego”, ou seja, ela possibilita uma pausa, um retorno em busca de referências que auxiliem na obtenção de significação. A não linearidade da leitura acompanha a atividade cerebral que também não é linear. No momento da leitura, vêm à mente uma série de outras informações e idéias que justificam a impossibilidade de ver essa atividade como algo programado e que segue um único percurso e direção. Além disso, ao percorrer os olhos sobre o papel, é possível perceber o conjunto do texto; não se vê palavra por palavra, mas elas vêm em “blocos” que se unem num todo significativo, conforme explica Ângela Kleiman:

 

O leitor proficiente lê rapidamente – mais ou menos 200 palavras por minuto, se o assunto lhe for familiar ou fácil, e um número menor se ele for desconhecido ou difícil.

 (...)

O movimento dos olhos durante a leitura não é contínuo (...), mas é sacádico, isto é, o olho se fixa num lugar do texto e logo faz um pulo, ou sacada, até se fixar novamente mais adiante. (KLEIMAN, 1996, p. 13-14)

 

 

É possível notar que a leitura exige muito mais que identificar palavras e símbolos; ela é um processo complexo que envolve a percepção, a atenção e a memória (KLEIMAN, 1996). Acredita-se que este último elemento tem muito destaque nesse processo, pois é com seu auxílio que surgem as possibilidades de relação com o já dito, o já visto, o já lido e o já aprendido.

Fica claro, a partir dessa relação, como também explica Marcuschi (1999), que o sentido não reside no texto, pois mesmo que ele seja o ponto de partida para se atingir a compreensão, se não houver o envolvimento do leitor de maneira ativa, interagindo e relacionando seu mundo ao mundo do texto, não haverá unidade de sentido. É preciso, então, um total engajamento entre leitor-texto, ou seja, o primeiro deve enriquecer o segundo, deve dar-lhe valor, sentido, significação.

Há um elemento importante para essa aquisição de significação que diz respeito às lacunas deixadas pelo autor. É preciso que o leitor se dê conta dos artifícios lingüísticos utilizados pelo autor bem como daqueles que deixou de usar e, principalmente, questionar-se sobre o porquê da preferência de uns elementos e da exclusão de outros. Dessa forma, é possível determinar aquilo que Marcuschi (1999), chama de força ilocucional que são as intenções comunicativas do autor que se apossa de um discurso para através dele apresentar uma certa ideologia. Todo discurso está carregado de ideologia e o que permite a identificação dessa ideologia é exatamente o que está nas “entrelinhas”, aquilo que o texto “diz, mas não diz”, aquilo que deixa de dizer, mas que é possível ser percebido pelo leitor atento e perspicaz.

Diante disso, o leitor deve mostrar-se capaz de observar as entrelinhas do texto e preencher os vazios deixados pelo autor que se faz presente naquilo que escreve através das marcas formais que atuam como pistas para a reconstrução do sentido. Portanto, a compreensão e a interação com aquilo que é lido torna-se possível através da análise dessas pistas.

No entanto, quando essas pistas não são percebidas e esses espaços não são preenchidos, a leitura pode torna-se uma prática que serve à ideologia dominante e que condiciona os indivíduos a “engolirem” idéias que não os permitem ser sujeitos, mas sim, seguidores de um sistema que oprime, também através da palavra e do saber. Se o leitor se acostuma a não duvidar, a não se autoquestionar acerca do que lê, acabará reproduzindo, sem dar-se conta disso, o discurso ideológico do autor, que na maioria das vezes defende os interesses dos que dominam e oprimem.

Diante disso, é preciso trazer presente as idéias de Roger Chartier; ele diz que o texto é socioconstrutivo (CHARTIER, 1999), ou seja, o leitor deve dialogar com esse texto percebendo as intenções que ele traz para a partir daí construir significado. Leitor e texto precisam participar de uma mesma esfera de cultura, precisam “dialogar” sobre aquilo que constroem mutuamente. E é através desse processo que se torna possível estabelecer a coerência do texto, que é também objetivo da leitura.

Outro elemento importante ao discutir os aspectos relacionados à leitura é perceber que o saber está diretamente ligado ao poder. Adquire-se saber através de questionamentos, da dúvida, do tentar mudar o imutável. O indivíduo cresce e produz saber toda vez que se depara com uma situação e procura revolucionar para modificá-la. Aprender a ler é também transformar a situação que faz com que não se saiba ler, é não se ver passivo e submisso diante do texto. Por isso, é preciso dialogar com ele e construir saberes (FOUCAMBERT, 1994).

Ao se observar as práticas de leitura atuais, principalmente com séries iniciais, o que se vê muito ainda nas escolas é a leitura em voz alta; o aluno é chamado a traduzir oralmente os códigos escritos. No entanto, na maioria das vezes, ele ainda não tem compreendido esse código e, por isso, sua expressão oral não agrada ao professor que o corrige a cada “engasgo” de pronúncia. Essa correção, por sua vez, pode deixar o pequeno leitor retraído, ou o que é muito pior, com aversão a toda e qualquer forma de leitura, e, distante de construir novos saberes.

Nesse sentido, Foucambert explica que não se pode confundir oralização, leitura e leitura em voz alta. Sobre a primeira, diz que as palavras só podem ser oralizadas depois de compreendidas. Quanto à leitura, explica que essa atividade tem por objetivo atribuir um significado ao que está escrito. No que diz respeito à leitura em voz alta, o autor diz que este é um comportamento enxertado à leitura e totalmente defasado em poucos segundos, portanto, vazio e sem sentido (FOUCAMBERT, 1994).

Sendo assim, percebe-se que essa prática nada mais é do que uma forma de decodificação que não se detém à significação. Os alunos que apresentam uma pronúncia regular são, na maioria das vezes, classificados como maus leitores, como se o fato de alguém ter uma boa entonação e dicção tivesse relação direta com boa interpretação e compreensão, como explica Kleiman:

 

 

(..) a leitura avaliação, em que se utiliza a leitura em voz alta para avaliar a capacidade de compreensão da criança. (...) a velocidade do olho é maior que a da voz, mas é também condicionada por esta (...). Ora, a leitura em voz alta, por exigir a pronúncia de todas as palavras, é naturalmente mais lenta; conseqüentemente, ela esbarra o desenvolvimento da velocidade do olho. (...) ela leva a criança a fazer um número maior de fixações, impedindo que ela desenvolva a habilidade de fazer sacadas cada vez maiores e assim, de ler mais rapidamente.

Em suma, o uso excessivo da leitura em voz alta é um fator inibidor do desenvolvimento do bom leitor. (KLEIMAN, 1996, p. 152-153)

 

 

Dessa forma, nota-se que essa atividade de leitura não permite ao leitor “as voltas” ao texto da mesma maneira que a leitura silenciosa e individual possibilita, pois o leitor preocupa-se em “falar bem”, pronunciar corretamente e em bom tom não estabelecendo as relações e inferências que o texto lhe exige. Na leitura em voz alta, é possível apenas a averiguação dos órgãos fonéticos porque essa prática é coletiva, pública e se detém no significante. Com a leitura silenciosa torna-se mais fácil atingir a compreensão, pois é uma atividade íntima, individual e com atenção no significado.

Na prática de leitura em voz alta, muitas vezes é exigido do leitor que ele seja emissor e receptor ao mesmo tempo. Como poderá o leitor ser receptor se está preocupado em traduzir grafemas e fonemas e, portanto, não atento à compreensão? As estratégias utilizadas na oralização são diferentes das que se utilizam para atingir a compreensão, por isso, torna-se difícil para o leitor realizar as duas tarefas simultaneamente.

Portanto, é preciso com urgência banir essa prática utilizada como forma de avaliação, controle e verificação de aprendizado de leitura, pois a continuidade dessa atividade pode servir apenas para afastar os leitores dos livros e contribuir para a permanência de um sistema ideologicamente comprometido com aqueles que detêm o saber e o poder.

É preciso dar-se conta de que a leitura vai muito além da decodificação e da boa pronúncia das palavras, muitas vezes isso é o que menos importa e não determina se alguém é  um bom ou mau leitor. É necessário ater-se àquilo que é possível depreender do que se lê, àquilo que se pode descobrir e redescobrir a partir do que é lido, àquilo que permite repensar posturas, rever conceitos, redimensionar condutas e modos de ver o mundo e as coisas. A leitura desconstrói para posteriormente reconstruir. Para isso, é de fundamental importância o papel dos mediadores de leitura que devem permitir ao pequeno leitor o diálogo com o que lê; devem estar dispostos a questionar, levantar dúvidas, perturbar e inquietar o leitor para que esta seja sujeito ativo e participativo no mundo em que vive, assim como é no mundo da leitura.

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: Editora UNESP/ Imprensa Oficial do Estado. 1999.

FOUCAMBERT, Jean. A leitura em questão. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: UNIESP, 2002.

KLEIMAN, Ângela. Leitura: ensino e pesquisa. Campinas, SP: Pontes, 1989.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Leitura como processo inferencial num universo cultural-cognitivo.  In: BARZOTTO, Valdir Heitor (org). Estado de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras: Associação de leitura do Brasil, 1999. p. 95 – 122.



* Mestranda em Estudos Literários pela Universidade de Passo Fundo