Mudanças da retenção pronominal do sujeito no português brasileiro: um caso de “diglossia” no ensino de língua materna?
Ivanilde da Silva (UFSC)
De
acordo com estudos sociolingüísticos, o português brasileiro (PB), seja ele
emitido por pessoas com alta escolaridade ou não, apresenta cada vez mais retenção
pronominal. Como discutido em Tarallo (1991), várias mudanças de ordem
sintática estão acontecendo no PB, dentre elas: a redução da morfologia
verbal, o uso, cada vez maior, de sujeitos lexicais e o conseqüente
preenchimento do sujeito. Essas mudanças estão ocorrendo desde o século
XIX, mas não são levadas em consideração pelos manuais normativos e livros
didáticos tradicionais, que transmitem regras antigas da sintaxe lusitana,
transformando o ensino de língua portuguesa, no Brasil atual, em um aprendizado
de língua 2. Tais observações podem sugerir uma competição entre gramáticas,
isto é, fatos lingüísticos categóricos regidos pela norma padrão,
transmitida pelo professor, e de outro, a língua vernacular emitida
pelos alunos. Esses possuem cada vez mais propriedades sintáticas de uma língua
não-pro-drop que são muito distintas daquela, uma língua pro-drop,
podendo caracterizar “diglossia” ou uma verdadeira disputa entre “gramáticas”,
se considerarmos que o PB atual exibe uma crescente simplificação nos
paradigmas flexionais favorecendo a retenção do sujeito pronominal (Cf.:
Duarte, 1993). Com base em estudos sociolingüísticos, este trabalho pretende
comparar resultados de estudos diacrônicos no que se refere ao preenchimento
(ou não) do sujeito pronominal de primeira pessoa do plural (nós x a gente) com
resultados de fala de informantes com alto grau de escolarização (curso
superior).
Palavras-chave: diglossia;
retenção pronominal; gramáticas em competição.
0 Considerações iniciais
Como apontam pesquisas sociolingüísticas, a retenção pronominal é uma característica do português brasileiro (PB). Essa propriedade, cada vez mais atestada na fala dos brasileiros, evidencia que o PB está evoluindo para um sistema lingüístico não-pro-drop. Os resultados diacrônicos de Duarte (1993) mostram a trajetória do uso do pronome nulo ao pleno que serão comparados aos resultados sincrônicos de Silva (2004) sobre a retenção pronominal de nós e a gente. Esse confronto de resultados servirá para discutir a proposta de Kroch (2003) no que se refere a “gramáticas em competição”, que embasará discussões sobre “diglossia” existente nas escolas brasileiras.
1 Mudança sintática: Competição entre gramáticas?
Pesquisas sociolingüísticas apontam que a retenção pronominal é cada vez mais freqüente na fala, seja em pessoas mais escolarizadas ou não (Cf.: MENON, 2000). O aumento desse uso pronominal decorre de mudanças de ordem sintática que vêm ocorrendo no PB desde meados do século XIX, marcando uma diferenciação dialetal entre o português europeu (PE) e o brasileiro. Essa diferença entre dialetos foi, possivelmente, motivada pela crescente diminuição da ordem verbo-sujeito e a conseqüente tendência ao enrijecimento do sujeito-verbo-objeto, a redução da morfologia verbal, que, por sua vez, leva ao uso, cada vez maior, de sujeitos lexicais e ao preenchimento do sujeito (Cf.: TARALLO, 1991).
Tais mudanças na estrutura sintática do PB, associadas à simplificação dos paradigmas flexionais, parecem refletir uma evolução da marcação positiva do parâmetro pro-drop para uma negativa, isto é, o PB passa de uma língua [+ pro-drop] para uma língua cada vez [- pro-drop]. A retenção pronominal é conseqüente já que a terminação verbal não possui mais marca morfêmica para distinguir a pessoa gramatical (Cf.: DUARTE, 1993, 1995).
Duarte (1993), baseada em Roberts (1993), propõe um novo paradigma funcionalmente rico[1],que permite a ocorrência de sujeito nulo porque essa ausência pronominal seria compatível com uma desinência zero e um sincretismo (que pode ser a própria desinência zero), desde que haja distinção em todas as outras pessoas gramaticais (op. cit., p. 109). Os paradigmas que seguem representam a evolução da flexão verbal no PB:
Pessoa num. paradigma 1 paradigma 2 paradigma 3
1a sing. cant-o cant-o cant-o 2a direta sing. canta-s ________ ________ 2a indireta sing. canta-0 canta-0 canta-0 3a
sing.
canta-0 canta-0 canta-0 1a plur. canta-mos canta-mos canta-0 2a direta plur. canta-is ________ ________ 2a indireta plur. canta-m canta-m canta-m 3a plur. canta-m canta-m canta-m |
Quadro 1: Evolução nos paradigmas flexionais do português
(Duarte, 1993: 109)
Percebemos que há uma mudança desde o século XIX ao XX (de 1845 a 1992).[2] De acordo com a autora, o que ocorre é um crescimento na “simplificação” dos paradigmas flexionais. No primeiro paradigma, há seis formas distintas mais dois sincretismos (2a pessoa indireta, empregada com desinência zero) e nos dois últimos há a queda das pessoas diretas (tu e vós)[3]. No segundo paradigma, há a presença da 1a pessoa do plural nós, marcada pelo morfema –mos. Já o terceiro paradigma coexistente apresenta apenas três formas desinenciais em conseqüência da entrada do pronome a gente (1a pessoa do plural – morfema zero).
No que se refere aos paradigmas dois e três, há que se considerar que nos estados de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, o pronome de segunda pessoa tu é comumente falado, mas cada vez menos sem marca morfológica, disputando espaço com o você, empregado também sem marca.[4]A evolução dos paradigmas flexionais associada ao crescimento da retenção pronominal poderá ser melhor observada através dos períodos de tempo que seguem:
Gráfico 1: Duarte
(1993:112)
Nos três primeiros períodos (1845, 1882, 1918), há o funcionamento do paradigma 1, sistema de língua pro-drop. Nos três períodos posteriores (1937, 1955, 1975), o gráfico exibe a queda da segunda pessoa (tu e vós) que faz vigorar o paradigma 2, coexistindo com o terceiro (1992). Com a retenção pronominal, o PB exibe no século XX uma estrutura sintática que ainda permite opções de uso quanto ao sujeito nulo e preenchido devido à rica funcionalidade do sistema morfológico (Cf.: DUARTE, 1993, 1995).
Uma das fortes evidências dessa mudança
pronominal é a entrada da construção de duplo sujeito (DS) na fala (Cf.:
Duarte, 1995). Esse uso revela a perda do Princípio Evite Pronome, além
de marcar o gradativo, mas já adiantado processo de gramaticalização da flexão
morfológica. E ainda mostra também que cada vez mais o PB se afasta do grupo de
línguas de sujeito nulo ao exibir uma estrutura que essas línguas não exibem.
O uso dessa estrutura de duplo sujeito implementa progressivamente o emprego de pronomes-sujeito, derrubando restrições como as de condicionamentos discursivos e se amplia no uso do SN retomado, da pessoa gramatical, da preferência por sentenças causais e explicativas, entre outros (op. cit., p. 106). A conseqüência dessas transformações é a perda do sujeito nulo tornando obrigatória a retenção pronominal, como mostram os exemplos de Duarte (1995: 115), retirados da escrita de estudantes universitários:
(1) _ Papai, eu, a mamãe, o José e o João
i nós i estamos no jantar ...
(2) A nasalidade fonológica i, além de opor
significados, ela i tem uma ...
A estrutura DS já se encontra plenamente
encaixada no contexto da mudança pronominal, prova disso é: a substituição
de nós por a gente; o uso da nova forma das sentenças
gerundivas, que perderam a posição de sujeito (ex.: 3); a retomada de
expressões quantificadas etc (Cf.: DUARTE, 1995).
(3) A menina acha que ela ficando mais
durinha ela vai chamar ...
A tabela abaixo mostra que o sujeito nulo
deixa de ser cada vez menos freqüente, sendo opcional no novo sistema
pronominal do PB:
Percentuais
de sujeitos nulos em PE e PB
|
1a p. s. |
2a p. s. |
3a p. s. |
PE |
59% |
75% |
72% |
PB
|
29% |
11% |
39% |
Tabela 1: Duarte
(1995:116)
Enquanto no PE há uma percentagem elevada de sujeito
nulo, o PB exibe taxas abaixo de 50%. No PB, portanto, não há mais uma
relação direta entre flexão distintiva e sujeito nulo, a única
desinência exclusiva é da 1a pessoa do singular, eu (paradigma
3), e nem por isso a 1a pessoa do singular é menos empregada na fala
de forma preenchida (Cf.: MENON, 2000).
Conforme mostram os resultados da tabela
abaixo, essa flexibilidade morfológica à qual se refere Duarte permite que
falantes com formação universitária utilizem a opção de não-preenchimento do
sujeito em 32% de freqüência. Mesmo que a desinência –mos
identifique a 1a pessoa do plural, a presença pronominal de nós
é constatada com o percentual de 68% de freqüência, além dos 95%
de freqüência de uso do pronome a gente, corroborando o que o gráfico 1
de Duarte mostra: a crescente queda do sujeito nulo na gramática do PB.
Uso da retenção pronominal vs a
não-retenção
|
retenção
não-retenção |
A gente
|
422/443 21/443 95% 5% |
Nós
|
287/421 134/421 68% 32% |
Apl/Total |
709/864 155/864 82%
18% |
Tabela 2: retenção pron. vs
não-retenção pron. (Silva, 2004)
Vistos sob o prisma vertical os 422/864
dados de a gente contra 287/864 da presença de nós mostram
também o uso da retenção pronominal, seja com a forma inovadora a gente
ou com o tradicional nós. Esses usos indiciam a tendência à qual
menciona Duarte sobre a queda da morfologia verbal para apenas quatro
combinações associadas aos pronomes pessoais e que coexistem com o paradigma 3.
Os dados de fala de pessoas com alta escolaridade (dados de SILVA, 2004)
mostram o uso de a gente e nós, conforme pode ser visto
abaixo:
(4) nós estudamos as
“síncopes visuais”, (incompreensível) que são aquelas pessoas que perdem a
consciência /.../ a gente sabe que
as síncopes visuais elas podem ser causadas por n causas, né /.../
(Cardiologista, 37 anos, amostra de Blumenau/SC).
(5) /.../
eu não posso demonstrar com tanta força o que que tá acontecendo dentro de mim
e com o tempo a gente administra, né?! (Secretária da Cultura de SP, +/- 55 anos,
amostra Programa do Jô).
A entrada de a gente na fala de jovens e também na de pessoas com
faixa etária mais avançada, faz-se freqüente. Na fala dos mais jovens o a
gente prevalece em 64%, sendo também utilizado, em menor freqüência,
por falantes de faixa etária mais elevada, 39%, como será mostrado a
seguir:
Uso de
a gente vs nós segundo a Idade
|
Apl/Total
%
|
25-40 |
269/422 64 |
+47 |
174/442 39 |
Apl/Total |
443/864 |
Tabela 3: readaptação dos resultados de Silva (2004)
Os resultados das tabelas 2 e 3 associados aos paradigmas flexionais 2 e 3 de Duarte, permitem dizer que a nova gramática brasileira está evoluindo do pro-drop para o não-pro-drop, “sendo os casos de sujeitos nulos meros resíduos” ainda presentes na gramática atual do PB (Cf. DUARTE, 1993: 124).
Essas discussões nos levam a dizer que esta distinção dialetal entre o PE e o PB parece distanciar do que de fato se fala no Brasil da norma padrão lusitana, transmitida ainda nas escolas brasileiras, que prescreve traços sintáticos de uma língua de sujeito nulo não mais empregada na realidade lingüística brasileira (Cf.: KATO, (s. d.); MATTOS E SILVA, 2004). Esse distanciamento mostra “uma assimetria de conhecimentos” lingüísticos ou “uma incompatibilidade de gramáticas”, ou seja, uma prestigiada que segue a norma padrão da escrita lusitana, e outra não-prestigiada, regida por norma(s) vernacular(es), caracterizando diglossia ou uma competição entre gramáticas distintas (KROCH, 2001); (Cf.: KATO, (s. d.).
2 Há gramáticas competindo no
PB? Uso pro-drop e não-pro-drop
A noção de competição entre gramáticas está fundamentada na perspectiva de Kroch (1998, 2001), que propõe um modelo de mudança sintática baseada na associação entre a Teoria Gerativa (aquisição e opções paramétricas) e fatos da variação lingüística em uso.
A variação sintática de uma determinada língua, na verdade, é uma alteração do padrão sintático de uma estrutura para outro, transformando a gramática atual dessa língua em outra bem distinta da empregada há séculos, como se houvesse uma competição entre duas gramáticas distintas: uma conservadora e outra inovadora. Assim, a gramática de uma língua, a partir do momento em que ela é rompida sintaticamente, torna-se incompatível com a nova estrutura concorrente, permitindo que, ao longo dos séculos, essa nova gramática vigore, tornando-se gradativamente categórica, como aconteceu com o chinês e o inglês[5], por exemplo.
Pesquisas de Kroch (2001: 719) sobre mudança sintática trazem os dados de Ellegard (1953) que mostram a curva da mudança em S do inglês médio, que não possuía o verbo do como auxiliar em interrogativas, ao inglês moderno, que possui o verbo do como auxiliar em vários contextos gramaticais, como nas afirmativas transitivas adverbiais, nas interrogativas afirmativas e negativas, entre outros.
Quando falantes são expostos a determinados fatos lingüísticos diários, tornam-se sensíveis a eles podendo derivar novas formas daquelas que escutaram dos seus pais, por exemplo. Segundo Kroch (1996, 2001), usuários de uma determinada língua derivam (drift) uniformemente na direção da gramática inovadora. Através de séculos essa gramática evolui a tal ponto que se um estudo de curva em S (S-shaped) for aplicado, tal figura pode mostrar categoricidade no uso dessa nova estrutura. Há, portanto, uma substituição de uma estrutura antiga por uma inovadora.
Essa categoricidade de fatos lingüísticos vigora porque a cada geração as pessoas, principalmente as crianças, aprendem sua língua materna no convívio diário com seus familiares e mais tarde também com os seus pares. Elas ouvem fatos lingüísticos e os derivam na tentativa de “acertar” o que ouviram. Esses “desvios lingüísticos”[6] acontecem em pequenas quantidades e de forma constante, ininterrupta, de modo que a cada geração crianças ouvem cada vez menos fatos da antiga estrutura sintática gerando um efeito acumulativo, transformando a língua antiga em uma nova (Cf.: KROCH, 2001).
É o caso da aprendizagem da escrita do português no Brasil. A criança entra na escola falando o seu vernáculo, mas ao aprender a escrever, necessariamente, precisa dominar abruptamente o código escrito que segue regras totalmente diferentes de sua regra vernacular, o que pode ocasionar perdas lingüísticas ou recuperar elementos da antiga gramática, sendo esse uso resultado de uma “mistura” de códigos ou de línguas diferentes, uma inovadora/vernacular e outra prestigiada/antiga (Cf.: KATO (s. d.)).
Se olharmos
nesta perspectiva para a pesquisa de Duarte (1995), por exemplo, não há como
desvincular o uso, cada vez mais freqüente, da retenção
pronominal e da queda da morfologia verbal associadas ao uso da
estrutura de duplo sujeito, que não aparece na escrita formal da imprensa
brasileira, mas acontece na escrita de universitários com um percentual de 13%
de uso (Cf.: DUARTE, 1995).[7]
A retenção pronominal só é possível no PB porque sua estrutura sintática permitiu esse preenchimento do sujeito. Desse modo, para que a variação pronominal entre nós e a gente, por exemplo, ocorra na periferia da língua, uma ruptura em sua estrutura profunda aconteceu, isto é, houve o rompimento de uma estrutura sintática (pro-drop) para outra (não-pro-drop). Há, nesse caso, a disputa entre dois sistemas lingüísticos distintos razão pela qual ocorre incompatibilidade estrutural.
3 “Diglossia” – implicações para ensino da Língua Portuguesa
A retenção pronominal se intensificou na fala dos
brasileiros, mesmo que a escola tente recuperar propriedades pro-drop da
antiga gramática. Mudanças sintáticas, já mencionadas aqui, não são levadas em
consideração pelo ensino tradicional de língua, tornando a sala de aula um
ambiente “diglóssico”. Há nas escolas uma hierarquia de línguas, uma
prestigiada pela norma padrão e outra considerada de menor valor social, o
vernáculo.
É o que Schiffman (1997) defende ao discutir “diglossia”
como uma situação sociolingüística. Tomando as concepções de Ferguson
(1959), o autor desmistifica a “diglossia”, considerada um fenômeno exótico
porque existe a crença de que situações “diglóssicas” ocorram somente em países
de terceiro mundo. Schiffman argumenta que países como o Canadá, a Arábia, o
Haiti e a Grécia também apresentam “diglossia”. Isto quer dizer que para cada
situação de fala nesses países há uma variedade especializada em que o uso
lingüístico prestigiado é utilizado com função diferente do uso das
variedades de menor prestígio social (Cf.: WARDHAUGH, 2002). Em outras
palavras, é o que Fegunson (1959) teoriza abaixo sobre diglossia:
“Diglossic languages (and diglossic languagem
situacions) are usually described as consisting of two (or more) varietaties
the coexist in a speech community; the domains of linguistics behavior are
parceled out in a kind of complementary distribuicion. These domains are usually
ranked in a kind of hierarchy, from highly valued (H) to less valued (L); when
the two varieties are recognized (or tacitly accepted) as genetically related,
the H domains are usually the reserve of more conservative form of the
language, which is usually the literary dialect if there is a written form […]”
(FERGUSON, 1959: 435. In.: SCHIFFMAN, 1997, p. 205).
Nessa mesma perspectiva, o valor prestigiado da norma da
escrita literária e o valor da(s) norma(s) vernacular(es), no Brasil,
enfrentam-se diariamente em sala de aula. A escola transmite propriedades
sintáticas de uma língua de sujeito nulo não mais presentes na fala dos
brasileiros, caracterizando o ensino/aprendizagem de língua materna como
“diglóssico” (Cf.: KATO, (s.d.), ou seja, o vernáculo (Língua 1), emitido pelo
aluno, não é valorizado, pois não segue as regras arcaizantes e prestigiadas da
tradição gramatical (Língua 2), como mostram os seguintes exemplos de Kato
(s.d.):
(6) Eu quelu (sujeito
preenchido)
(7) Chegou os ovos (uma espécie de construção
impessoal)
(8) Ninguém tinha se
machucado (clíticos com movimento curto)
(9) Eu encontrei na rua Øi
(objeto nulo referencial)
(10) Comprei o peixe sem
examinar Øi (objeto nulo referencial)
Enquanto uma gramática preenche o sujeito, trazendo
como conseqüência a perda da função flexional dos verbos; não concorda com o
sujeito posposto, porque talvez houve reanálise, transformando essa
estrutura em um tipo impessoal de construção; é caracterizada pela
utilização de objetos nulos referenciais; perdeu os clíticos de terceira pessoa
e apresenta a utilização de clíticos com movimentos curtos, etc, a outra
apresenta o parâmetro pro-drop que exige ausência pronominal e emprego
de clíticos de 3a pessoa (Cf.: KATO (s.d.)).
Esses fatos lingüísticos mostram que o ensino de língua materna no Brasil se caracteriza como um ensino de língua estrangeira/L2 (KATO, (s. d.); (1994)). Há, portanto, no ensino de Língua Portuguesa o que Kroch (2001) defende quando a competição entre gramáticas acontece: há “incompatibilidade” entre sistemas lingüísticos distintos, isto é, há a fixação de diferentes parâmetros sintáticos. Isso quer dizer que o português brasileiro na antigüidade pertencia ao parâmetro pro-drop e na atualidade se distancia desse parâmetro.
No que concerne à aquisição da fala e da aprendizagem da escrita, o que
ocorre é a primeira fixação de parâmetros, o vernáculo, depois de a
criança entrar para a escola, dá-se a aprendizagem de outras coisas, dentre
elas, a escrita, que pode ter um parâmetro distinto do seu vernáculo. Em
outras palavras, como nas de Kroch, há “uma assimetria de conhecimento”[8],
que no caso são as opções paramétricas que o falante possui, um adquirido
na mais tenra infância e outros aprendidos no decorrer de sua vida.
3 Considerações finais
O PB vem sofrendo mudanças de ordem sintática desde o século XIX. Tais mudanças não são consideradas pela escola, gerando um ambiente “diglóssico” em sala de aula por não trabalhar o vernáculo da criança que fala uma língua praticamente não-pro-drop. Esse embate diário entre o que se fala e o que se idealiza como norma da escrita e da fala padrão é que tornam o ensino de língua materna “diglóssico”.
Para Kroch (1996), o falante consegue aprender de maneira
natural formas incompatíveis ou sistemas gramaticais diferentes. Mattos e Silva
(2004), por exemplo, defende que o falante deve ser exposto aos fatos de sua
realidade lingüística. É o que argumenta também Labov (2003) ao dizer que não
há falante que utiliza um único estilo. O falante não possui problemas em usar
um ou outro estilo porque é competente para operar várias regras estilísticas.
SCHIFFMAN (1997) mostra que o falante é exposto naturalmente a situações
sociolingüísticas, o que gera ambientes diglóssicos.
O que se espera das escolas brasileiras? Possibilitar aos
seus alunos a (re)conhecer os diversos ambientes de interação (sócio)lingüística.
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[1] A língua alemã, por exemplo, possui o seu sistema flexional marcado em todas as pessoas gramaticais, e nem por isso deixa de reter os pronomes pessoais (Cf.: MENON, 2000).
[2] Os dados analisados por Duarte foram coletados a partir de peças de teatro de cunho popular escritas no Rio de Janeiro, que serviram para indicar a tendência ao uso do sujeito nulo de cada época.
[3] Duarte não esclarece em seu trabalho os termos 2a pessoa direta e indireta.
[4] Obedecendo a este mesmo
mecanismo, os pronomes o senhor(a), ele(a) e a gente são
empregados com o mesmo morfema número-pessoal zero[4]
(Cf.: MENON, 2000).
[5] Kroch também toma como exemplo de gramáticas em competição a mudança ocorrida no francês médio, uma língua tipicamente V2. Na atualidade, o francês já não tem essa propriedade perdida entre 1500 e 1700.
[6] “Assimetria de fatos lingüísticos”
[7] Kato, M (s.d) diz que não há um estudo comparativo entre a escrita de alunos e a escrita utilizada pela imprensa brasileira, o que poderia auxiliar o trabalho nas escolas no que se refere ao ensino/aprendizagem da escrita.
[8] “Incompatibilidade de conhecimentos”