O ensino da língua estrangeira e a competência intercultural

 

Isabella Mozzillo (UFPEL)

Maristela Gonçalves Sousa Machado (UFRGS)

 

Será viável conciliar a aquisição de uma competência cultural paralelamente à competência lingüística e comunicativa em sala de aula de língua estrangeira? Pretendemos discutir alguns aspectos inescapáveis dessa questão: a definição do termo “cultura”, a pedagogia intercultural, a combinação de aspectos cognitivos, comportamentais e afetivos na busca dos implícitos que se inscrevem na língua e no discurso e que levam ao questionamento sobre a história, a tradição, o ponto de vista do Outro.

 

Palavras-chave: cultura – competência cultural – pedagogia intercultural

 

Desde os anos 80, entende-se que a competência comunicativa é o fim primeiro do aprendizado de línguas estrangeiras (LE). Contudo, é preciso levar em conta que apenas a parte lingüística dessa competência não é suficiente para que haja uma comunicação efetiva. O aluno deve, portanto, aprender também a empregar formas e a adotar comportamentos e atitudes lingüísticas reconhecíveis pelo interlocutor.

Para um bom aprendizado, ele deverá estar apto a identificar, reconhecer, interpretar corretamente atitudes e comportamentos do interlocutor nos atos de comunicação mediante gestos, referências históricas ou literárias, já que as línguas expressam a cultura da qual são oriundas.

Assim, a história das nações, as normas sociais e os fundamentos históricos são imprescindíveis para compreender a cultura e usar adequadamente os elementos lingüísticos.

Nesse sentido, todo aprendiz de LE deve ter despertada o que chamamos consciência intercultural. O Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas (QECR), que é a base para a comparação dos conhecimentos lingüísticos na Europa, advoga a favor de tal realidade afirmando que levar em conta a cultura no ensino de LE é imprescindível hoje em dia para a melhor comunicação e para a tolerância interétnica, pois combate a intolerância, evita preconceitos e discriminações, permite conhecer outras percepções e classificações da realidade.

Para que isso possa ocorrer, é necessário que o professor de LE ensine cultura e forme seu aluno para uma competência intercultural através de estratégias que despertem a consciência intercultural.

Além do ensino lingüístico propriamente dito, portanto, o ensino deve ultrapassar o nível da civilização para abordar elementos mais profundos como o sistema de valores e a crença ou visão de mundo do outro.

Na perspectiva intercultural, a competência comunicativa trata da capacidade de encontrar o elemento cultural nas trocas comunicativas.

Vejamos como o QECR[1] apresenta um dos objetivos da aquisição da competência intercultural:

"Numa abordagem intercultural, um objetivo essencial do ensino de línguas é o de favorecer o desenvolvimento harmonioso da personalidade do aprendiz e de sua identidade em resposta à experiência enriquecedora da alteridade em matéria de língua e de cultura.”

Efetivamente, a aquisição de uma competência intercultural permite ao aluno desenvolver sua capacidade de se preparar para a entrada em contato com outros lugares aproveitando tal situação.

O QECR ressalta também os benefícios do desenvolvimento da capacidade de aprender outras LE, sem que isso signifique nenhum prejuízo da própria competência cultural e lingüística do aprendiz:

"O aluno de uma LE ou de uma cultura estrangeira não perde nunca a competência em sua própria língua e cultura. A nova competência que está adquirindo tampouco é totalmente independente da precedente.Ele não adquire duas maneiras estrangeiras de agir e de se comunicar. Torna-se plurilíngüe e aprende a interculturalidade. As competências lingüísticas e culturais relativas a cada língua modificam-se pelo conhecimento do outro e contribuem para a tomada de consciência, para as habilidades e para o saber fazer cultural. Permitem que o indivíduo desenvolva uma personalidade mais rica e mais complexa, além de aumentar sua capacidade de aprender outras LE e de se abrir a novas experiências culturais.”

Observa-se que a formação para o intercultural não objetiva apenas permitir que o aluno domine uma LE nas dimensões lingüística e cultural, mas permite, outrossim, revalorizar a finalidade educativa da escola - eliminar estereótipos sociais, lutar contra a xenofobia e o racismo, aprender a respeitar o outro, abrir-se à alteridade -, o que leva à compreensão entre os povos e ao enriquecimento mútuo.

Segundo Maga (2005), os princípios da pedagogia intercultural são os seguintes:

  1. Pedagogia cooperativa

A pedagogia intercultural interessa-se mais pelos alunos e pelos saberes na situação comunicativa e menos pelos temas e assuntos abordados. O intercultural deve ser, portanto, construído.

Segundo Cambria (2005), "há uma mudança epistemológica e metodológica caracterizada pelo centramento no sujeito que não é apenas um enunciador, mas um crítico aparente que passa através das diferentes culturas. A abertura para o intercultural permite propor uma metodologia e uma análise dos olhares recíprocos postos no Outro, cruzar um olhar estrangeiro sobre sua própria língua e cultura e sobre o país do qual se estuda a língua”.

Na perspectiva intercultural, o aluno mais do que nunca está implicado no processo de aprendizagem, pois deverá adquirir as competências que mais tocam o lado individual: auto-imagem, valores, crenças, senso do bem e do mal, o permitido e o proibido, a própria definição da realidade.

Para que o aluno desenvolva a capacidade de se comunicar eficazmente com os que são diferentes, os métodos e técnicas devem ultrapassar o nível teórico, da análise e da comparação, já que o saber não garante o saber fazer diante da diferença.

·        A abordagem pela experiência

Através da experiência, o aluno pode se implicar melhor na formação. Não se limita à simulação e à troca de papéis, mas permite que o aluno gerencie e compartilhe a responsabilidade do ato de aprender. Baseia-se numa co-construção entre os alunos levando em conta suas experiências reais e concretas. Após ter sido executada qualquer atividade, deve haver uma análise da qual sairão observações que poderão se aplicar à vida real.

 

2. Perspectiva da ação

Ainda conforme Cambria (2005), "na pedagogia intercultural, os usuários da língua são considerados como os principais atores sociais que não desempenham tarefas apenas do tipo lingüístico. A perspectiva da ação ultrapassa a abordagem comunicativa. Com efeito, o QECR considera que os atos de fala somente têm significado quando estão claramente relacionados às ações sociais que ajudam a realizar. Os locutores que interagiam com os outros na perspectiva comunicativa tornam-se, na perspectiva da ação, os atores sociais que agem com os outros. A essa troca de perspectiva corresponde uma mudança de método ou de técnicas. Até agora, os alunos estavam numa situação de comunicação definida para desenvolver a competência comunicativa, nesse novo enfoque se espera que eles realizem ações. A simulação, técnica muito empregada na abordagem comunicativa, é insuficiente na perspectiva do QECR para formar um ator social. Para ensinar uma língua é preciso considerar a série de oportunidades em que o ator/aprendiz possa realizar uma ação com os outros com finalidade coletiva. O objetivo do ensino/aprendizagem é o de formar indivíduos autônomos, mas também cidadãos criativos, responsáveis, ativos e solidários.”

É evidente que no contexto escolar as práticas interculturais são limitadas em razão das restrições do sistema educativo. Mas é possível vivenciar experiências interculturais fora da escola, na cidade, no bairro. Pode-se inclusive pensar em experiências interculturais interdisciplinares e extra-escolares.

 

3. Pedagogia centrada na confiança

A confiança é o pilar de toda atividade que exija a experiência pessoal dos alunos. O professor deve criar um clima de confiança e trabalhar pra instaurá-lo. Isso deve ser feito antes de que se lhes peça que compartilhem suas observações, que comentem coisas difíceis, revelem sentimentos e se arrisquem. O papel do professor é o de ajudar a superar o etnocentrismo e a tendência a julgar.

Maga (2005) afirma que a consciência intercultural faz parte das competências gerais que o aprendiz de LE deve adquirir e cita as diretrizes do QECR:

“O conhecimento, a consciência e a compreensão das relações (semelhanças e diferenças distintivas) entre « o mundo de onde se vem » e « o mundo da comunidade alvo » estão na origem da tomada de consciência intercultural.

É preciso salientar que a tomada dessa consciência inclui a noção da diversidade regional e social dos dois mundos. Isso auxilia o aprendiz a contextualizá-las. A consciência intercultural engloba a forma pela qual cada comunidade aparece sob a ótica do outro, o que ocorre, na maioria das vezes, como estereótipos nacionais.”

            Os professores precisam levar em conta e detectar a experiência e os conhecimentos anteriores que o aluno tenha tido, assim como a experiência e os conhecimentos novos da vida em sociedade na sua comunidade e na comunidade alvo, de modo a saber o que ele deverá adquirir para responder às exigências da comunicação na LE. Além disso, devem analisar qual a consciência da relação entre a sua cultura e a alvo ele precisará ter para desenvolver uma competência intercultural adequada.

O QECR reconhece, então, a interculturalidade como um componente necessário à didática das línguas. O intercultural aplica-se a todas as noções que se levam em conta no ensino-aprendizagem de LE: os saberes, o saber ser, o saber fazer e o saber aprender.

No que diz respeito aos saberes, cabe lembrar que toda comunicação humana está baseada num conhecimento de mundo compartilhado. Os conhecimentos empíricos sobre a vida quotidiana (organização do dia, refeições, transporte, comunicação, informação), na vida pública ou pessoal são fundamentais para a gestão de atividades linguageiras na LE. Conhecer os valores e as crenças compartilhadas de certos grupos sociais em outras regiões ou países tais como crenças religiosas, tabus, história comum são essenciais à comunicação intercultural.

No relativo ao saber ser, o aluno deve ser levado a construir e a manter um sistema de atitudes na sua relação com os outros. O professor precisa considerar os elementos que constituem a identidade dos alunos e as atitudes que afetam sua capacidade de aprender.

            No tocante às atitudes, deve-se estimular a abertura e o interesse por novas experiências, pelos outros, por outras idéias, outros povos, outras civilizações. Além disso, é necessário que, motivados pelo desejo de se comunicar, haja interesse em relativizar seu ponto de vista e seu sistema de valores culturais, além da capacidade de tomar distância em relação às atitudes escolares ou turísticas convencionais relativas às diferenças culturais.

O saber fazer compreende a capacidade de estabelecer relação entre a cultura de origem e a estrangeira, a sensibilização à noção de cultura e a capacidade de reconhecer e de empregar estratégias variadas para estabelecer contato com os outros, a habilidade de desempenhar o papel de intermediário cultural, gerenciando de forma eficaz as situações de mal-entendido ou conflito cultural, para além das relações superficiais estereotipadas.

O trabalho do professor é verificar os papéis e funções de intermediário cultural que o aluno deverá desempenhar, os traços da cultura de origem e da alvo que deverão ser diferenciados.

O saber aprender mobiliza os outros saberes, podendo ser resumido em “saber/estar disposto a descobrir o outro”.

            Maga (2005) afirma que levar o aluno a tomar consciência intercultural é um ato de ordem cognitiva. A organização intelectual da construção de tal consciência significa que, para dominá-la, mais importante do que adquirir comportamentos culturas estrangeiros é aprender a discernir as semelhanças e convergências, assim como as diferenças e divergências entre a cultura estrangeira e a própria.

            A autora apresenta exemplos didáticos com o fim de sensibilizar os alunos para a aquisição das competências interculturais.

Com o intuito de sensibilizar para a noção de tolerância, o aluno deve tomar consciência da própria cultura, identificando elementos que a constituem e examinando-a criticamente de modo a impedir o etnocentrismo. Ao entender que se trata de um sistema complexo, poderá ver que sua identidade cultural é apenas um elemento possível de recortar a realidade. Nesse sentido, Maga (2005) exemplifica com um exercício do seguinte tipo: “Proponha regras que um estrangeiro deverá aprender para se comportar educadamente num restaurante.”

            O QECR sugere que os professores trabalhem os diferentes aspectos dos traços distintivos característicos de uma sociedade ou cultura para admitir a existência de outras perspectivas. A aquisição de conhecimentos socioculturais passa, então, pelo trabalho com os seguintes elementos:

·        Vida quotidiana: alimentação; horário das refeições; modos à mesa; horários e hábitos de trabalho; lazer (passa-tempos, esportes, leitura, meios de comunicação);

·        Condições de vida (níveis de vida conforme as regiões, etnias e grupo social); condições de habitação, seguridade social;

·        Relações interpessoais (as de poder e as de solidariedade); estrutura social e relações entre as classes; relações entre os sexos; estrutura e relações familiares; relações no trabalho; relações com a polícia, com os organismos oficiais; relações entre as raças e as comunidades ; relações ente os grupos políticos e religiosos;

·        Valores, crenças e comportamentos face aos fatores e parâmetros seguintes: classe social, grupos sócio-profissionais, renda, culturas regionais, segurança, instituições, tradições e mudança, história, minorias, identidade religiosa, povos, política, artes (música, artes visuais, literatura, teatro, canção popular), religião, humor;

·        Linguagem corporal : convenções quanto a gestos;

·        Convenções relativas à hospitalidade : pontualidade, presentes, vestimentas, bebidas, refeições, convenções, tabus conversacionais e comportamentais, duração da visita, despedidas;

·        Comportamentos rituais: prática religiosa, nascimento, casamento, morte; atitude do auditório e do espectador ; celebrações; festejos; bailes; discoteca, etc.

 

Para levar a cabo tal prática de ensino, o professor precisa empregar conteúdos sobre realizações visíveis (línguas, ritos, costumes, festejos, calendários, habitação, alimentação, vestimenta) e também sobre realizações menos visíveis (conjunto de evidências compartilhadas com as mesmas referências, os mesmos valores e as mesmas regras implícitas) de modo a que o aluno possa entrever as classificações da realidade, tomando consciência da não–universalidade da sua cultura.

Maga (2005) ainda salienta que na etapa da tomada de consciência intercultural, devem-se observar e analisar, à luz dos conhecimentos socioculturais adquiridos, as atitudes e comportamentos que podem parecer estanhos se vistos fora do contexto sociocultural. O aluno deve ser levado, portanto, a detectar o elemento cultural durante a comunicação; a formular hipóteses sobre as razões que condicionam os hábitos e os comportamentos diferentes; a estabelecer laços e a distinguir os princípios organizadores da cultura estrangeira.

Os documentos autênticos (calendários, cardápios, programas de cinemas, mapas de metro, etc.) são muito úteis no sentido descritivo porque conduzem o aluno a formular hipóteses sobre as razões dos hábitos ou dos comportamentos diferentes.

A autora ainda afirma que, para complementar a questão descritiva, textos de natureza sociológica ou geográfica devem ser também propostos, assim como os literários, que constituem um recurso incomparável por sua alta qualidade informativa. Tais textos não são constituídos pela atualidade das informações nem por dados quantitativos, mas por elementos que permitem a mobilização de várias representações da mesma realidade. A polissemia do texto literário permite que o aluno se distancie, desconfie das evidências e se veja de forma “oblíqua”.

O trabalho com os estereótipos pode levar o aluno a entender por que há representações preconcebidas sobre os outros. Analisar os preconceitos significa ver as representações, o processo de categorização e de atribuição de valores aos outros. Seu objetivo é o de não reforçar e erradicar preconceitos.

Estabelecer laços entre a sua cultura e a do outro permite verificar que, mais além das diferenças facilmente observáveis, há muitas semelhanças e valores fundamentais compartilhados. Isso pode fazer com que haja uma relativização, uma não-generalização, uma tomada de consciência da pluralidade e da relatividade dos pontos de vista.

Saber situar um fato cultural, portanto, é entender o contexto de produção de um documento ou discurso para entender os parâmetros e captar a diversidade de jogos comunicativos existentes.

Como última etapa do trabalho, Maga (2005) indica a interiorização da cultura alvo. Tal interiorização consiste em descobrir e aprofundar a cultura estrangeira, construir um sistema de referências a partira das diferentes culturas, gerenciar situações interculturais novas.

Embora seja ideal a possibilidade de se confrontar diretamente à diversidade cultural e praticar a abordagem intercultural através de visitas à cultura estudada, pois isso melhora e favorece as relações e as percepções recíprocas, sabe-se que, muitas vezes, os intercâmbios reais não reduzem os estereótipos e os preconceitos. Não basta se confrontar com outro contexto cultural para adquirir a competência intercultural.

Abdallah-Pretceille (2004 apud Maga, 2005) propõe princípios para uma pedagogia intercultural das trocas, a saber: analisar o lugar das trocas e dos encontros num objetivo de educar para a alteridade; revitalizar as categorias de entendimento, cordialidade, espontaneidade, comunicação autêntica, simpatia mútua, diálogo entre culturas; não mostrar as diferenças mais do que as semelhanças, buscar uma coerência e pontos comuns para ultrapassar o nível do detalhes, da intuição e da subjetividade; não focalizar unicamente a atenção na cultura do outro, mas aprender, a saber, quem se é em determinada situação, aprender a objetivar a maneira de ser de uma tal nacionalidade. Numa perspectiva intercultural, são os comportamentos intersubjetivos que têm a primazia. Avaliar a troca, verificar que os programas de intercâmbio são favoráveis ao encontro intercultural.

O valor da perspectiva intercultural é formar para a observação, para a compreensão, para a relativização dos dados da cultura estrangeira, não para tomá-la como modelo a ser imitado, mas para desenvolver o diálogo das culturas.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

Maga Haydée. Former les apprenants de FLE à l’interculturel. http://www.francparler.org/dossiers/interculturel_former.htm

Acessado em 5-11-05

CAMBRIA, Antonella. L’interculturel dans le Cadre Européen Commun de Référence.

http://www.hyperbul.org/numero7/refl/refl7_ac.htm

Acessado em 7-11-05

Cadre europÉen commun de rÉfÉrence pour les langues : Apprendre, enseigner, évaluer.

http://www.coe.int/T/F/Coopération_culturelle/education/Langues/Politiques_linguistiques/Cadre_commun_de_référence/

Acessado em 5-11-05

 

 



[1] A publicação em português (Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas - Aprendizagem, ensino, avaliação.Porto: Edições ASA, 2001.) não possui versão eletrônica. Utilizou-se para este trabalho a adaptação do QECR em francês acessível no site http://culture2.coe.int/portfolio//documents/cadrecommun.pdf.