Concordância verbal: um caso de competição entre gramáticas?

 

 

Isabel de Oliveira e Silva Monguilhott

(UFAM/UFSC)[1]

 

 

 

1. Introdução

 

Neste trabalho, pretende-se discutir o fenômeno da concordância verbal com inacusativos à luz da noção de gramáticas em competição apresentada por Kroch (1989, 1994, 2001).

Conforme Monguilhott (2001), nos dados de fala, a concordância verbal com inacusativos é pouco marcada em função do tipo de argumento selecionado (traço [-humano]) e da posição que este argumento ocupa (à direita do verbo – VSN). De acordo com Pontes (1986), o falante encara esse SN (posposto ao verbo e com traço [-humano]) como objeto e não sujeito da sentença, e, por isso, não utiliza marcas de concordância. No entanto, na escrita sabemos que há a prescrição pela gramática tradicional da regra de concordância com este tipo de verbo (que, na verdade, não é sequer descrito por ela), pois não se admite pensar o argumento do inacusativo[2] como objeto da sentença.

Partindo da tese de Kroch de que temos duas gramáticas: uma que é a gramática da língua materna constituída a partir da primeira fase de aquisição e a outra nas etapas ulteriores da aprendizagem e que apresenta características de uma segunda língua, acreditamos que, no que diz respeito ao fenômeno da concordância, estamos diante de um caso de gramáticas em competição, em que a não marcação da concordância seria a gramática da L1 e a marcação a gramática da L2. 

O trabalho está assim organizado: na próxima seção discutimos o fenômeno da variação na concordância verbal de terceira pessoa, na seção 3 apresentamos a tese de Kroch acerca das gramáticas em competição e na seção 4 relacionamos o fenômeno da variação na concordância verbal com a proposta de Kroch.

 

2 A variação da concordância verbal de terceira pessoa

O fenômeno de variação da concordância verbal é condicionado por diversos fatores, conforme atestam os estudos de Scherre & Naro (1995, 1997, 1998), Naro & Scherre (1999), Monguilhott (2001), Monguilhott & Coelho (2002) e Mafra & Coelho (2004). Neste trabalho, evidenciaremos o condicionamento da variação em função da relação existente entre tipo de verbo, traço humano no sujeito e ordem verbo-sujeito, retomando os resultados de Monguilhott (2001).

Ao estudar a concordância verbal em uma amostra de língua falada[3], a autora verificou que a inacusatividade se apresenta como ambiente favorecedor da não-marcação da concordância verbal de terceira pessoa do plural, como podemos observar na tabela 1, abaixo:

 

TIPO de verbo

apl/total = %

Pr.

Cópula

319/408 = 78%

0,63

Transitivo

631/769 = 82%

0,49

Intransitivo

101/123 = 82%

0,46

Inacusativo

200/283 = 71%

0,37

TOTAL

1 251/1 583 = 79%

 

Tabela 1: Freqüência e probabilidade de concordância verbal, segundo o

 grupo de fatores tipo de verbo (cf. Monguilhott, 2001)

 

 

Os inacusativos, dentre os verbos estudados, apresentaram a menor probabilidade de marcas de concordância com 0,37 de aplicação da regra.

Além do tipo categorial do verbo, os grupos traço humano no sujeito e posição do sujeito em relação ao verbo também foram selecionados como relevantes para a concordância verbal. Os resultados das tabelas 2 e 3 confirmam esta importância.

 

TRAçO HUMANO NO SUJEITO

aplicaÇão/total = %

Pr.

SN [+humano]

1 082/1 290 = 84%

0,55

SN [-humano]

169/293 = 58%

0,28

TOTAL

1 251/1 583 = 79%

 

Tabela 2: Freqüência e probabilidade de concordância verbal, segundo o

grupo de fatores traço humano no sujeito (cf. Monguilhott, 2001)

 

 

PosiÇão

apl/total = %

Pr.

SN anteposto

1 119/1328 = 84%

0,58

SN posposto

132/255 = 52%

0,17

TOTAL

1 251/1 583 = 79%

 

Tabela 3: Freqüência e probabilidade de concordância verbal, segundo o grupo de fatores posição do sujeito em relação ao verbo (cf. Monguilhott, 2001)

 

As tabelas 2 e 3 revelam que SNs com traços menos humanos e pospostos tendem à não marcação da concordância, com apenas 0,28 e 0,17 de probabilidade de aplicação da regra, respectivamente.

Face aos resultados acima descritos, foram feitos alguns cruzamentos estatísticos entre as ordens SV/VS e o traço humano no sujeito. Constatou-se que existe uma hierarquia bastante clara para estes grupos de fatores em que os SNs antepostos são ambientes favorecedores de marcas explícitas de concordância no verbo (0,65 e 0,25), ao contrário dos SNs pospostos que apresentam maior probabilidade da marca zero de concordância (0,12 e 0,08), independente do traço semântico do SN, como ilustra a tabela 4.

 

posiÇão/TRAçO HUMANO NO SUJEITO

apl/total = %

Pr.

SN anteposto [+humano]

1 013/1 172 = 86%

0,65

SN anteposto [-humano]

106/156 = 68%

0,25

SN posposto [+humano]

69/118 = 58%

0,12

SN posposto [-humano]

63/137 = 46%

0,08

TOTAL

1 251/1 583 = 79%

 

Tabela 4: Freqüência e probabilidade de concordância verbal, segundo o cruzamento entre os grupos de fatores posição do sujeito em relação ao verbo e traço humano no sujeito (cf. Monguilhott, 2001)

 

Entretanto, na oposição [+humano] versus [-humano] podemos observar que o SN que apresenta traço [+humano], tanto na anteposição quanto na posposição, apresenta também maior incidência de marcas de concordância (0,65 e 0,12) e, quando apresenta traço [-humano], a incidência de marcas zero de concordância é que aumenta (0,25 e 0,08).

Ao relacionar esse resultado com as possibilidades de seleção argumental dos verbos, pode se constatar que verbos inacusativos admitem tanto o sujeito com traço [-humano], quanto o sujeito com traço [+humano] para figurar como argumento, como pode ser observado nos exemplos (1a) e (1b), a seguir. Já o verbo intransitivo admite apenas o argumento [+humano], como atestam os exemplos (2a) e (2b).

 

(1) a. Naquela época a gente ia pra Marinha e chegava aqueles cara    (FLP06L108)

     b. Porque naquele tempo (est) existia os carrinhos de cavalo  (FLP24L431)

(2) a. Eles trabalhavu muito com espada. (FLP02L166)

                  b. *Os sapatos trabalhavu muito com espada.

 

Diante disso, verifica-se a relação existente entre inacusatividade e traço [+/- humano] no sujeito: enquanto os intransitivos selecionam apenas argumentos com traços mais humanos, os inacusativos selecionam argumentos com traços mais ou menos humanos, o que também se mostrou fator relevante para a variação na concordância verbal.

Além desta co-variação, foi observada a relação entre inacusatividade e posposição do sujeito. Os verbos inacusativos, diferentemente dos intransitivos, apresentam grande possibilidade de terem seus sujeitos pospostos; contexto também favorecedor da não concordância.

Por fim, para atestar a relação existente entre tipo de verbo, traço humano no sujeito e ordem verbo-sujeito observe-se a tabela 5.

 

Posição / TRAçO UMANO NO SUJEITOÚ

Inacusativo

Transitivo

Intransitivo[4]

Cópula

SN posposto [+humano]

16/35 = 46%

3/3 = 100%

1/5 = 20%

49/75 = 65%

SN anteposto [+humano]

158/176 = 90%

597/713 = 84%

96/113 = 85%

162/170 = 95%

SN posposto [-humano]

9/42 = 21%

0/0 = 0%

2/3 = 67%

52/92 = 57%

SN anteposto[-humano]

17/30 = 57%

31/53 = 58%

2/2 = 100%

56/71 = 79%

TOTAL

200/283 = 71%

631/769 = 82%

101/123 = 82%

319/408 = 78%

Tabela 5: Freqüência de concordância verbal, segundo o cruzamento entre a posição

do sujeito em relação ao verbo, traço humano no sujeito e tipo de verbo

(cf. Monguilhott, 2001)

 

Os resultados da tabela 5 parecem indicar uma co-variação entre seleção argumental dos verbos estudados, ordens SV/VS e traço semântico do SN: argumento interno gerado na posição de complemento do verbo (que poderia ser mais ou menos humano), diferentemente dos intransitivos que selecionam também um só argumento, no caso um argumento externo, figurando na posição de especificador do verbo, mas que, necessariamente, apresenta traços mais humanos. Vale lembrar mais uma vez que as possibilidades de posposição e de seleção argumental estão diretamente relacionadas à transitividade do verbo: uma questão de co-ocorrência.

Diante disso, nota-se que os resultados de Monguilhott (2001) corroboram o estudo de Pontes (1986) no que diz respeito ao baixo índice de concordância verbal com o tipo de argumento selecionado pelos inacusativos: traço [-humano] e posposto ao verbo (VS).

De acordo com Pontes (1986), o traço agentivo é apontado como o mais importante no momento de se reconhecer um sujeito, tanto entre professores quanto entre alunos. O sujeito típico, conforme Pontes, é nitidamente o agente, anteposto. Sendo assim, quando apresenta traço [-humano] e está posposto ao verbo (VS) “não é sentido pelos falantes como sujeito. Por isso, eles não fazem a concordância” (1986, p.173).

A autora chama atenção para o fato de o sujeito posposto não apresentar as características que tipificam o sujeito em português, a não ser a concordância verbal, no registro escrito, formal, que é imposta pela gramática e o ensino escolar.

Embora a gramática da língua portuguesa prescreva a regra de concordância entre verbo e sujeito invertido, a concordância, como evidencia Pontes, se constitui em um traço muito frágil, pois é ensinada nas escolas, no entanto, praticamente inexiste na maioria dos registros.

Grande parte das gramáticas não leva em conta as características que o argumento de um inacusativo apresenta. No entanto, mesmo aquelas que discutem essa questão, como é o caso da gramática de Mira Mateus et al. (1994), há a prescrição da concordância verbal para este tipo de verbo. Nessa gramática, a sentença *Chegou os miúdos é considerada agramatical, já que “os verbos inacusativos não atribuem caso acusativo ao seu argumento interno [...]. Este quer ocorra em posição pré-verbal, quer ocorra em posição pós-verbal, recebe caso nominativo e desencadeia a concordância verbal” [grifos nossos] (1994, p.213).

Dado o exposto, verificamos que o falante apresenta a tendência a não marcar a concordância com verbos inacusativos dados os traços do argumento selecionado [-humano, VS]. Já, em função da prescrição pela gramática, temos uma regra que nos traz evidências de que os informantes irão aprender e, provavelmente, utilizar a marcação da concordância na escrita, pois o ensino escolar certamente se baseará nas gramáticas.

 

3 Gramáticas em competição  

 

            Nesta seção, pretendemos discutir a noção de gramáticas em competição apresentada por Kroch (1989, 1994, 2001). Iniciamos com o conceito de mudança lingüística do autor: “falha na transmissão, através dos tempos, de traços lingüísticos. Tais traços, em princípio, podem ocorrer em grupos de falantes nativos adultos, que, por alguma razão, são substituídos por outros [...]” (2001, p.699). Kroch enfatiza ainda que “o entendimento de falhas de transmissão é muito limitado, pois não se conhece a relação entre a evidência apresentada ao aprendiz e a gramática adquirida [...]” (ib., p.700). O autor evidencia que o processo de mudança lingüística não é um fato da gramática, mas um fato do uso lingüístico, uso entendido como escolha entre formas alternativas em seu repertório de conhecimento gramatical (1989, p.3).

            O autor também salienta que pretende, através da noção de gramáticas em competição, trazer “um modelo de mudança sintática que dê conta dos fatos da variação e que, ao mesmo tempo, seja compatível com a teoria gerativa da natureza fundamental da linguagem” (1995, p.1). Para Kroch, a idéia que subjaz o modelo é a de que a variação lingüística durante um período de mudança seria um caso de competição entre duas gramáticas, uma conservadora e outra inovadora.

            O autor põe em pauta então a discussão entre o que é adquirido e o que é aprendido questionando como o ser humano adquire língua com tanta variação, apontando o problema lógico da aquisição da linguagem: o que é adquirido biologicamente pela criança e o que ela aprende sendo exposta a dados.

            Levando em conta essa questão, Kroch indica que a mudança parece se dar no momento da aquisição em que a criança está exposta a uma determinada freqüência de uso (vernáculo do adulto) e, muitas vezes, não reproduz a gramática dos pais, porque o input é interpretado diferentemente. Mais tarde, com o ensino escolar aprenderá formas que concorrerão com as formas vernaculares adquiridas. Se a nova gramática for diferente no output em relação ao que ela foi exposta, pode ocorrer a mudança (Andersen, 1973, apud Kroch, 2001, p. 702).

            Kroch fala de gramáticas incompatíveis, definindo-as como fixações de diferentes parâmetros da língua, parâmetros estes que são de número fixo pela gramática universal, cada fixação de um parâmetro é incompatível com as outras. “A incompatibilidade nas fixações de parâmetros se reduz à impossibilidade de ter elementos funcionais (desinências, partículas, preposições) na mente, em uma gramática, em mais de uma forma” (1995, p. 7). São duas gramáticas, uma é a vernacular e a outra seria criada nas etapas ulteriores da aprendizagem. De acordo com o autor (1995, p.2-3) “as opções lingüísticas aprendidas na primeira fase de aquisição são a verdadeira língua materna da pessoa”. Já as “formas adquiridas mais tarde têm um pouco as características de uma segunda língua: são menos automatizadas, psicologicamente menos rápidas e fluentemente acessíveis nos processos de produção e processamento da fala”.

            Kato corrobora as idéias de Kroch. A autora ressalta que “parece dominar entre os psicolingüistas brasileiros a idéia de que aquisição da fala e da escrita envolvem objetos e processos distintos [...]” (no prelo). Para Kato “aprender a escrever para a criança brasileira é como aprender uma segunda língua”. Ao comparar a aprendizagem da escrita à aprendizagem de uma segunda língua, a autora evidencia as similaridades entre as duas formas de aprendizado:

 

as duas aprendizagens são socialmente motivadas e não biologicamente determinadas; nos dois casos, o início da aprendizagem começa, em geral, depois da idade crítica para a aquisição; o processo, nos dois casos é, essencialmente consciente; acredita-se, nos dois casos, que o sucesso depende de dados positivos e negativos; em geral, o processo nas duas “aquisições” é vagaroso e não instantâneo; nos dois casos, há mais diferenças individuais (no prelo).

 

            Segundo Kroch, o conceito de gramáticas em competição relaciona-se ao fato de as crianças não estarem expostas suficientemente a dados para realizar o conjunto de parâmetros “correto”. O resultado poderia ser de uma população mista na qual alguns falantes possuíssem o velho conjunto de parâmetros e alguns um novo conjunto. Nessa população mista, a geração seguinte de aprendizes teria, proporcionalmente menos exposição ao conjunto de parâmetros antigo.

Kroch discute ainda a questão da diglossia gramatical, definido-a como formas que competem, diferindo no registro social, com variante que não reflete o vernáculo, indo em direção a uma escrita conservadora, ou seja, que esteja fora de uso.

            Niyogi e Berwick (1997, apud Kroch, 2001, p.722) mostram que uma população desenvolve hipóteses sobre a natureza e distribuição da evidência lingüística. A população mudaria da gramática original para uma nova ao longo da trajetória da língua. Supõe-se que o parâmetro competitivo da mudança sintática esteja em diferentes falantes, localizado na população, não no indivíduo.

            De acordo com Kroch (2001, p.722) uma vez que a comunidade se torna diglóssica no que diz respeito a um certo conjunto de parâmetros, todo falante tem capacidade de aprender ambos os conjuntos. A escolha dos critérios dos bem-formados para aplicar na produção de um dado modo de interação é uma falta de domínio de performance e isso, segundo o autor, não é um assunto que compete à teoria gramatical discutir.

4 Concordância Verbal: um caso de competição entre gramáticas?

 

            Respaldando-nos na tese de Kroch discutida anteriormente defendemos que a concordância verbal de terceira pessoa constitui-se em um caso de gramáticas em competição.

            Conforme a seção 2, existe uma tendência à não marcação da concordância na fala e à marcação na escrita, ou seja, um caso de distribuição complementar em que as alternâncias apresentam especializações distintas. Kroch (1994) defende que as opções gramaticais são mutuamente exclusivas, por isso cada variante se especializa em um uso. No nosso caso, a marcação da concordância na escrita e a não marcação na fala. O autor evidencia ainda que as formas variantes surgem em diferentes registros e coexistem na comunidade de fala se possuírem diferentes significados. Essas formas variantes competem até que uma deixe de ser utilizada.

            Para Kroch (1995, p.2) há uma assimetria, em termos de freqüência de uso, entre as duas formas em competição durante a mudança. Em cada geração, na tentativa de emparelhar a sua freqüência de uso à da comunidade, o falante erra no alvo por uma divergência pequena. No entanto, estes desvios vão ser o input das crianças em processo de aquisição da linguagem que vão ouvir um pouco menos as formas conservadoras e com o passar do tempo chegaremos a uma mudança categórica. Segundo o autor, essa assimetria é a diferença entre a língua vernacular adquirida pela criança e as opções lingüísticas aprendidas mais tarde, seja na escola ou em qualquer situação social mais ampla.

            Kroch (1995) salienta que se podemos aceitar que há mudança, quando vemos uma alternância durante uma mudança sintática, estamos vendo uma competição entre duas gramáticas, e estas têm coerência interna por causa da teoria gramatical, podemos ver por que não vai ter essa possibilidade de variação estável, porque as possibilidades são, do ponto de vista da teoria gramatical, incompatíveis. Ter variação estável seria ter uma situação em que a pessoa tem duas gramáticas em mente.

            Exemplificando com a concordância verbal temos a sentença Chegou as cartas que poderia ser o input para uma criança no processo de aquisição. Esta criança poderia reanalisar as cartas como objeto da sentença em função da posição que ocupa, à direita do verbo, e por não apresentar relação de concordância com o elemento verbal. Quando estiver em processo de aquisição da escrita, a escola fará a criança perceber que há uma regra para a escrita que prescreve o uso da concordância com tais elementos, ou seja, ensinará que o “correto” é Chegaram as cartas.

            No que se refere à diglossia sintática, assunto discutido na seção anterior, também confirma a hipótese da concordância verbal ser um caso de gramáticas em competição em que temos de um lado o modelo exemplar de língua que é a língua usada/ensinada/imposta na/pela escola (com concordância), e por outro lado a língua atual (vernáculo) que é a língua usada em casa (sem concordância).

            Por fim, comparamos a concordância verbal com o fenômeno do le discutido por Kroch. Shi (1988, 1989 apud Kroch, 2001, p. 723) estudou o aumento do uso do aspecto perfectivo marcado por le no Chinês. No século XII le aparece como marcador aspectual competindo com outros como de e que até que em meados do século XIV os substitui. Os dados que Shi analisou mostram que a freqüência de le aumenta até os dias atuais. Shi atesta que a escrita chinesa desde o século X é diglóssica, pois se constitui de elementos da língua clássica e da vernacular. Na língua clássica não havia le, que aparece no curso da evolução do vernáculo. Esse aumento do le depois do século XIV reflete uma mudança gramatical contínua, isto é, um crescente uso de língua vernacular em documentos escritos.

            Acreditamos que podemos relacionar o fenômeno do le no Chinês com a concordância verbal no PB. Ao contrário do que aconteceu com o le que foi cada vez sendo mais recorrente na escrita em função do seu uso crescente no vernáculo, a concordância verbal com os inacusativos, sendo cada vez menos marcada na fala a cada geração, pode estar interferindo na escrita, o que pretendemos constatar em estudo posterior, o que pode sugerir uma mudança gramatical contínua, conforme Kroch, sendo também menos marcada.

 

Referências Bibliográficas

 

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KROCH, Anthony. Reflexes of Grammar in Patterns of Language Change. Language Variations and Change, 1, p.199-244, 1989.

 

_____. Morphosyntactic variation. In: Beals et al. (eds.) Papers from the 30th Regional Meeting of the Chicago Linguistics Society: Parasession on Variation and Linguistic Theory, 1994.

 

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MAFRA, Gésyka e COELHO, Izete L. A concordância verbal em construções monoargumentais: um estudo de variação sociolingüística. Comunicação apresentada na XX Jornada Nacional de Estudos Lingüísticos (GELNE), João Pessoa, PB: UFPB, 2004.

 

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SCHERRE, Maria Marta Pereira; NARO, Anthony Julius. Concordance markers: the left is in control. Comunicação apresentada no 24 New Ways of Analyzing Variation (NWAVE). University of Pennsylvania: Philadelphia, 1995.

 

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[1] Docente da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutoranda da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). 

[2] Aqui a categorização inacusativos refere-se à Teoria Gerativa, no entanto, a idéia de não admitir pensar o argumento do inacusativo como objeto da sentença é da gramática tradicional, já que para a Teoria Gerativa o argumento selecionado pelos inacusativos é interno, posição de objeto da sentença.

[3] A amostra constituiu-se de vinte e quatro entrevistas de informantes da cidade de Florianópolis, pertencentes ao Banco de Dados VARSUL. Analisamos todos os dados de concordância verbal com SN preenchido de terceira pessoa do plural, num total de 1583 ocorrências, das quais 1251 apresentaram concordância.

[4] Os 05 dados de verbos intransitivos com traços [-humanos] encontrados são do tipo: Ali pousavam os hidroaviões (FLP24L156), em que o SN [-humano] é sujeito de um verbo intransitivo, apresentando um sentido metafórico ou metonímico.