ORALIDADE
E GÊNEROS EMERGENTES
O conceito de texto como unidade sócio-comunicativa, que ganha
existência dentro de um processo interacional, é comum a textos escritos e
falados. Reconhece-se, hoje em dia, que todo texto é resultado de uma
co-produção entre interlocutores.
Contudo, ainda é forte a
convicção de que o que distingue o texto escrito do falado é a forma como tal
co-produção se realiza. Afirma-se que, no texto escrito, a co-produção se
resume à consideração do outro para o qual se escreve, não havendo participação
direta e ativa deste na elaboração lingüística do texto, em função do
distanciamento entre escritor e leitor. Conseqüentemente, inexistiriam no texto
escrito marcas explícitas de atividade verbal conjunta. A dialogicidade se
constituiria, portanto, numa relação ‘ideal’, em que o escritor desempenha o
papel que lhe cabe, na qualidade de produtor do texto, assumindo, ao mesmo
tempo, a perspectiva do leitor. No texto falado, ao contrário, por estarem os
interlocutores co-presentes, ter-se-ia uma interlocução ativa, que implica um
processo de co-autoria, refletido, na materialidade lingüística, por meio de
marcas da produção verbal conjunta.
Com base nessa visão dicotômica, estabeleceu-se uma série
de diferenças entre fala e escrita, entre as quais as mais freqüentemente
mencionadas são as seguintes:
FALA ESCRITA
contextualizada descontextualizada
implícita explícita
redundante condensada
não-planejada planejada
predominância do modus pragmático predominância do modus
sintático
fragmentada não-fragmentada
incompleta completa
pouco elaborada elaborada
pouca densidade informacional densidade informacional
predominância de frases curtas, predominância de frases
simples ou coordenadas com subordinação abundante
pequena freqüência de
passivas emprego freqüente
de passivas
poucas nominalizações abundância de nominalizações
menor densidade
lexical maior
densidade lexical
Acontece, porém, que fala e escrita não devem ser vistas
de forma dicotômica, estanque, como era comum até há pouco tempo e, por vezes,
acontece ainda hoje. O que se vem
postulando é que os diversos tipos de práticas sociais de produção textual
situam-se ao longo de um contínuo tipológico, em cujas extremidades estariam,
de um lado, a escrita formal e, de outro, a conversação espontânea, coloquial
(Marcuschi, 1995; Koch & Oesterreicher, 1990; Halliday, 1985; Koch, 1992,
1997). É Marcuschi (1995: 13) quem escreve: “As diferenças entre fala e escrita
se dão dentro do continuum tipológico
das práticas sociais e não na relação dicotômica de dois pólos opostos”.
Para situar os diversos tipos de texto ao longo desse
contínuo, Koch & Oesterreicher (1990) sugerem a utilização, além do
critério do meio, oral ou escrito, o critério da proximidade/distância (física, social, etc.); Chafe (1987), por seu
turno, postula que se leve em conta para tanto o envolvimento maior ou menor dos interlocutores.
O que se verifica, então, é que existem
textos escritos que se situam, ao longo desse contínuo, mais próximos ao pólo
da fala conversacional (bilhetes, recados, cartas familiares etc.), ao passo
que existem textos falados que mais se aproximam do pólo da escrita formal
(conferências, entrevistas profissionais, artigos científicos e outros),
existindo, ainda, tipos mistos, além de muitos outros intermediários. Os
gêneros emergentes da Internet, embora escritos, pertencem, em grande parte ao
primeiro tipo (papos virtuais, e.mails, blogs, por exemplo). Mas há também os
que ocupam posição intermediária nesse contínuo, como determinadas entrevistas,
e outros que muito se aproximam do pólo da escrita formal, como discussões mais
elaboradas, videoconferências e matérias jornalísticas e científicas
hipertextuais.
Evidencia-se, assim, que as características
que se costumavam apontar não são
exclusivas de uma ou outra das duas modalidades: tais características foram
sempre estabelecidas tendo por parâmetro o ideal da escrita (isto é, a língua
falada vista através das lentes de uma gramática projetada para a escrita), o
que levou a uma visão preconceituosa da fala (descontínua, pouco organizada,
rudimentar, sem qualquer planejamento), a ponto de se chegar a compará-la à
linguagem rústica das sociedades primitivas ou à das crianças em fase de aquisição
de linguagem. E, se pensarmos em muitos dos gêneros internetianos emergentes,
como os já citados bate-papos virtuais, blogs, e.mails, listas de discussão
etc., as distinções entre fala e escrita tornam-se cada vez menos acentuadas.
Isso tudo leva a uma desmitifição da escrita como a única forma correta de uso
da língua e como padrão de avaliação dos demais usos.
Contudo, tal visão preconceituosa é freqüente em relação a
esses gêneros internetianos, causando, assim, grande preocupação àqueles que se
arvoram em defensores da norma única, anatemizando, por conseqüência, o uso de
variedades coloquiais, informais ou repletas de marcas da oralidade na escrita,
especialmente quando se tem em mira alunos de ensino fundamental e médio.
Indubitavelmente, os gêneros que acabo de mencionar
apresentam uma série de características que são comumente atribuídas à fala
(cf., por exemplo, Koch, 1992, 1997; Koch et al., 1990), o que, de modo nenhum,
os torna inferiores aos escritos:
a) são
relativamente não-planejáveis de antemão, o que decorre de sua natureza
altamente interacional; isto é, eles necessitam ser localmente planejados, ou seja, planejados e replanejados a cada
novo lance do jogo da linguagem;
b) ao
contrário do que acontece com o texto escrito, em cuja elaboração o produtor
tem maior tempo para o planejamento, podendo fazer rascunhos, proceder a
revisões e correções, modificar o plano previamente traçado, na maioria deles
planejamento e verbalização ocorrem quase simultaneamente, visto que emergem
praticamente no momento da interação. Fatores como tempo e economia desempenham
aqui importante papel;
c) apresentam
uma sintaxe mais próxima à do texto falado, sem, contudo, deixarem de ter como
pano de fundo a sintaxe geral da língua (Marcuschi, 1986; Koch, 1992,1997).
Além disso, da mesma forma como acontece em situações
de interação face-a-face, o locutor que, em dado momento, detém a palavra, não
é o único responsável pela produção do seu discurso: em se tratando de uma
atividade de co-produção discursiva, os interlocutores estão juntamente
empenhados na produção do texto: eles não só procuram ser cooperativos, como
também co-negociam, co-argumentam (Marcuschi, 1986), a tal ponto que não teria
sentido analisar separadamente as produções de cada interlocutor.
Durante o processo de produção do texto falado - salvo
exceções como a conversa telefônica, gravações, programas radiofônicos e de
televisão, por exemplo - os interlocutores se encontram in praesentia,
num mesmo tempo, e partilhando um mesmo espaço físico no qual se encontram
muitos dos referentes de que o discurso irá tratar. Por isso, o processamento
do texto, nessas circunstâncias, tem de ser simultâneo (on line) à sua
verbalização. Ora, no caso de gêneros como bate-papos virtuais, e.mails etc., é
verdade que os participantes não dividem o mesmo espaço físico (embora
partilhem o mesmo espaço virtual), mas trata-se de eventos temporalmente
simultâneos - são interações síncronas - de modo que, também aqui, o processamento
deve ser on line.
Enfim, como é a interação (imediata) o que importa,
tanto no texto falado como em muitos dos gêneros da internet, ocorrem pressões
de ordem pragmática que se sobrepõem, freqüentemente, às exigências da sintaxe.
Assim sendo, com relação
a esses textos da Internet, pode-se afirmar que, da mesma forma que o texto
falado, eles não são, absolutamente, caóticos, desestruturados, problemáticos.
Ao contrário, eles têm uma estruturação diferente da escrita, ditada pelas
circunstâncias sócio-cognitivas de sua produção, e é à luz destas que devem ser
descritos e avaliados.
Por exemplo, em muitos dos gêneros virtuais emergentes,
a construção de identidades se processa de forma bastante diferente quer da fala,
quer da escrita. O uso de ‘nicknames’ em bate-papos, blogs etc. leva à
construção de identidades que em muito diferem das identidades sociais reais
dos participantes. Por meio deles, criam-se identidades imaginárias,
freqüentemente com características (físicas, psicológicas, sociais, sexuais)
bem diversas das identidades reais, o que é impossível ocorrer em interações
face-a-face e mesmo em textos escritos como bilhetes, cartas e outros tipos de
mensagens em que os interlocutores são conhecidos uns dos outros (a não ser, é
claro, que se trate de textos anônimos ou nos quais se usam pseudônimos não
conhecidos dos parceiros, o que, porém, não é absolutamente a regra). Por
conseqüência, também as estratégias de preservação das faces operam de maneira
diferente, visto que são de outro tipo as faces que se procura preservar.
Também quanto às regras conversacionais, ocorre uma série
de diferenças significativas: a sistemática da troca de turnos nem sempre é
obedecida, os pares adjacentes podem não ser – e, em geral não são - tão
adjacentes assim, sobreposições não são viáveis em e.mails, blogs, entrevistas
e aulas virtuais, para citar alguns casos. Portanto, pode-se mesmo postular uma
‘emancipação’de muitos dos gêneros eletrônicos tanto em relação à escrita, como
em relação à fala. Ou seja, trata-se de transmutações dos gêneros que lhes
deram origem (Bakhtin, 1953).
Por isso, para se pensar a questão da relação
oralidade/escrita na Internet, cabe fazê-lo com referência a cada um dos gêneros
textuais que nela emergiram. Por exemplo, chats e e.mails reproduzem
estratégias da língua falada, como a produção de enunciados mais curtos e com
menor índice de nominalizações (Halliday, 1996; Marcuschi , 2002). Para
Halliday, no entanto, isto não significa uma ‘neutralização’ das diferenças
entre fala e escrita; o que acontece, na verdade, é que estão se criando
condições materiais de uma nova tecnologia que irá permitir ‘maior interação
entre ambas e da qual surgirão novas formas de discurso’, levando-se em conta
que ‘os computadores encorajarão os escritores a integrar mais e mais materiais
não-verbais em sua escrita’ (Halliday, 1996: 356-358).
Desta forma, a escrita na Internet, em gêneros
emergentes que derivam de práticas quer escritas, quer orais, permite maior
informalidade e maior grau de liberdade com relação à ortografia e à gramática,
além de recorrer ao uso de outras semioses como sons, imagens, bem como uma
série de elementos icônicos, como os emoticons, por exemplo, tornando-se uma
escrita multimodal. Entre tais gêneros, podem-se mencionar, entre outros,
ladeados aos gêneros que lhes deram origem:
e. mail carta, bilhete
bate-papo conversação, encontros agendados
bate-papo ICQ encontros com agenda
aula virtual aula presencial
entrevista entrevista
videoconferência conferência
Em muitos desses gêneros internetianos, conforme
dissemos, a escrita é menos formal, com o uso de muitas abreviaturas (algumas
comuns à escrita taquigráfica, outras inventadas ad hoc, isto é, localmente
decididas e, muitas delas passageiras; mas há também as que acabam se firmando,
vindo a constituir um cânone próprio do meio (Marcuschi, 2002).
As aulas virtuais, por seu turno, são eventos que se
realizam essencialmente por escrito, ao contrário das aulas presenciais, que se
utilizam predominantemente da fala. Além disso, as aulas presenciais são
síncronas e as virtuais são assíncronas. Ainda mais: no caso das aulas
virtuais, ocorre o que se pode chamar de “desterritorialização”, já que não
exigem a presença simultânea de professor e alunos, que podem, assim, cada um,
determinar seus horários e seu ritmo de aprendizagem. Nelas, portanto, o aluno
assume grande parte do processo de aprendizagem, tornando-se mais independente
do professor. E o texto, embora corrido, quase em forma de livro, tem uma
organização hipertextual, apresentando condições de acesso e de lincagem
rápidas e bem diversificadas. Ampliam-se, desta forma, as diferenças entre uma
e outra, permitindo, inclusive, pensar-se na constituição de um novo gênero,
ainda que derivado do anterior.
Característico da
comunicação digital é seu alto grau de envolvimento, próprio da interação
face-a-face (Chafe, 1987), fazendo com que a escrita digital tenha, em vários
de seus gêneros, influências diretas das estratégias orais de textualização.
Não se pode, contudo, como dissemos, estabelecer um paralelo linear entre os
gêneros pertencentes a cada uma das duas modalidades. Além disso, na
comunicação digital, o envolvimento é não apenas com o outro, mas com o próprio
texto que está na tela do computador. Deste modo, a escrita digital sofre, sem
dúvida, influência das estratégias de textualização próprias da modalidade
falada, passando a servir-se de recursos morfológicos e sintáticos diferentes
dos da escrita padrão; mas é preciso ter cuidado em afirmar que se trata de uma
‘fala por escrito’: o que existe é um “hibridismo acentuado, nunca visto antes,
inclusive com o acúmulo de representações semióticas” (Marcuschi, 2002).
Aliás, não restam dúvidas de que, apesar da sua
multimodalidade, os gêneros da Internet são fundamentalmente baseados na
escrita. Tal escrita tende, em geral, a uma certa informalidade, a par de menor
monitoração e exigência, devido à fluidez do meio e à premência do tempo. É por
estas razões que se pode dizer que a Internet transmuta os gêneros existentes
e, a par disso, desenvolve outros novos.
O que todos os pesquisadores do assunto vêm ressaltando é
que os textos eletrônicos estão propiciando uma nova relação com a escrita:
trata-se, de modo geral, de uma escrita mais próxima da oralidade, que
apresenta, portanto, muitas das características desta, possibilitando, como
dito acima, o surgimento de novas formas de textualização. Sem as barreiras das
normas rígidas da escrita, estamos todos – principalmente crianças e
adolescentes - escrevendo muito mais do que antes: com os gêneros emergentes da
Internet, está ocorrendo não só uma volta maciça à escrita, como também a sua
revalorização, agora sem as peias que antes a encarceravam. Cabe aos
professores, particularmente os de línguas – quer materna, quer estrangeiras -
aproveitar essa nova ‘vocação’ dos alunos, desde os pequeninos até os de níveis
mais adiantados de ensino, para incrementar a produção de textos escritos nessa
nova modalidade, com as características próprias de uma nova tecnologia, mas,
assim mesmo, essencialmente, escritos...
Assim, em lugar de condenar a linguagem comum a esses
gêneros, temendo sua influência na escrita dos alunos, cumpre explorar ao
máximo as possibilidades que essa nova tecnologia (aliás, já nem mais tão nova
assim) oferece, inclusive chamando a atenção dos educandos para a questão da
variação presente não só na fala, como também na escrita, e mostrando-lhes que
esta não é tão monolítica e imutável como querem os puristas, defensores
intransigentes da norma gramatical única. E aproveitar essa fascinação pela
escrita na Internet para levá-los a escrever mais e mais e ainda mais, na
Internet ou fora dela, de forma a possibilitar-lhes, conforme postulam os PCNs
de Língua Portuguesa, o desenvolvimento de uma competência comunicativa
condizente com a realidade que os cerca, propiciando-lhes, assim, uma
participação responsável e crítica nas práticas sociais em que são levados a
interagir, para concretizar com sucesso seus propósitos comunicativos.
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