O DISCURSO SOBRE O CORPO EM QUESTÃO:

DIÁLOGOS NO ESPAÇO DOS BANHEIROS

 

 

Gregory Weiss Costa (UCPel)

 

 

Dentro do espaço escolar, o corpo do sujeito que por ali (se) significa, recebe uma influência impositora de discursos oriundos do sistema institucional. Esses discursos vigoram, porque segundo Foucault (1996), limitar os corpos condiz com as diretrizes do sistema disciplinar da instituição, que não permite desvios nos domínios de sua área de vigilância e controle. Portanto, enunciar o corpo, ícone indissolúvel da sexualidade na concepção foucaultineana, imprime uma ordem de subversão e transgressão no sistema escolar. Isso porque o desejo de expressar a corporeidade é incondicional do ser, pois é no corpo que reside o poder incontrolável do ser humano (FOUCAULT, 1998).

A escola porém, ignora esse conceito e tenta inverter essa ordem, restringindo, regularizando e punindo a corporalidade. Ela se sustenta imperativamente como uma construtora de condições de produção que visam o enquadramento social, pois é simbolizada como uma organização que dispõe de mecanismos reguladores para a submissão do corpo dos sujeitos que nela transitam.

            Não é, pois, surpreendente que dentro do espaço físico da escola, haja extravios dos discursos que ela procura sustentar. Um local onde esses discursos são subvertidos e revertidos são os banheiros, pois oferece em suas portas e paredes, painéis para a transgressão, um espaço para a reversão. Sendo assim, os banheiros se tornaram um espaço para o registro e abertura de práticas sociais interativas de fins comunicativos, e pela predominância da linguagem informal, grosseira, ofensiva e irônica que esses escritos apresentam, nota-se que eles se alinham à oralidade. A partir de uma formulação registrada por um sujeito em uma parede, outro sujeito pode se posicionar diante daquilo, constituindo assim um diálogo sem a condição presencial dos locutores.  Nos banheiros, os interlocutores do diálogo são marcados por traços iconográficos, como as cores, grafias e outros recursos gráficos, além da sobreposição de mensagens, comuns em vários gêneros textuais, como por exemplo os chats e fóruns da internet. Em base disso, o presente trabalho questiona: que jogo discursivo se estabelece entre os sujeitos-interlocutores que dialogam nesse espaço? Que efeitos de sentido a linguagem chula, as estratégias e recursos diferenciados em termos de cores, grafias e espaços provocam?

            Quando procuramos um conceito clássico de diálogo, logo a concepção de uma troca comunicativa de enunciados entre locutores e interlocutores se faz presente. Na prática, o diálogo é um evento social do uso da linguagem. Pelo diálogo os sujeitos travam relações, debatem, e até mesmo mantém contatos fáticos. Entretanto, o sujeito quando se encontra em um diálogo, ele constrói uma imagem de si assim como constrói uma imagem do outro.

Pensamos então nas noções benvenisteanas sobre o quadro figurativo da enunciação, característica que estrutura o diálogo. Segundo Benveniste, no diálogo, [...] a enunciação coloca duas “figuras” igualmente necessárias, uma, origem, a outra, fim da enunciação (1989, p.87). As duas figuras se alternam nas posições de protagonistas da enunciação.

Para Benveniste (1989), o diálogo é constituído da “pessoa” e implica reciprocidade e reversibilidade: o “eu” se torna “tu” e o “tu” se torna “eu”. Segundo Ernst (2005), nessa relação, aquele que se apresenta como “eu” e designa o outro como “tu” elabora representações da ordem de um imaginário forjado historicamente.

Já Bakhtin (1992) considera  a pressuposição de um acabamento do enunciado, que  é expresso pela  posição do locutor, e se há a possibilidade de responder, implica em uma posição responsiva. Segundo ele, o diálogo é composto de diversas relações como pergunta-resposta, asserção-objeção, afirmação-consentimento, oferecimento-aceitação, ordem-execução, etc. (1992, p.295). Enfim, o diálogo sempre pressupõe o outro.

Pêcheux (1997), nos fala das relações do locutor e interlocutor com os objetos de que eles  falam, a partir da concepção de discurso como “efeito de sentidos” entre A e B, lugares determinados numa formação social – diretor, aluno, professor, chefe de empresa, etc. Esses lugares são representações, “formações imaginárias” que designam os lugares que A e B se atribuem – um ao outro e a si mesmos - , imagens que fazem do seu lugar e do lugar do outro. Da mesma forma, o objeto do discurso também, nessa perspectiva, é um objeto imaginário e não uma realidade física.

Mas como nas portas e paredes de banheiros de escolas, o diálogo sobre a corporeidade funciona? Como se articula as pessoas “eu” e “tu” e o objeto discursivo?  Uma formulação encontrada pode ser “tomada” por um sujeito, seja através dos recursos gráficos, sobreposição da escrita, adulteração do código, setas e outros desenhos. Esse sujeito se coloca na posição-sujeito de outro, transformando o “tu” em “eu”, apropriando-se do domínio que outrora foi de outro, para se tornar um novo “eu”.  Assim esse sujeito se significa sobre um outro e produz novos efeitos de sentido a partir disso, pois não há um detentor da palavra nesse espaço. Literalmente, nos banheiros, as palavras de uns, são perpassadas pelas palavras de outros.

Pelo corpus empírico desta pesquisa, verificou-se que o diálogo escrito nos banheiros não tem uma preocupação social de manutenção de valores,  pois como não há um confronto face-a-face, a linguagem usada pode transgredir o que se espera comumente. Ernst (2005) diz que o sujeito que dialoga nas portas e paredes de banheiros não se preocupa em manter uma imagem positiva do “eu”.

 

“Trata-se, então, de refletir sobre um sujeito que se coloca numa posição contrária ao que usualmente é aceito, transgredindo as normas, num espaço onde a privacidade encontra-se preservada e a salvo da reação direta e imediata provocada pela rejeição e depreciação  de um possível interlocutor frente a enunciados indecorosos, fato que, num diálogo face-a-face, seria normalmente inevitável. Não há, portanto, nesse caso, preocupação em manter uma imagem positiva do “eu”.” (ERNST, 2005)

 

            Essa despreocupação em manter a imagem positiva do “eu” ocorre pelas condições de produção anônimas e privadas em que esses diálogos surgem. Não há um sujeito enunciador presente, mas há posições-sujeito marcados pelas formulações que extraviam o que não pode ser dito. Por isso a linguagem grotesca, chula e ofensiva se faz presente. O “eu” não-identificado pode enunciar o corpo sexuado sem as pressões moralistas da instituição, assim como ele pode  protestar, acusar e ofender, ignorando as penas que isso poderia acarretar.

            Por isso é possível encontrar nos escritos de portas e paredes de banheiros uma evocação a discursos relativos a corporeidade que são preconceituosos e criminosos, como é o caso dos racistas e dos homofóbicos. Não é incomum ver formulações que denigrem o corpo negro e a homossexualidade nos banheiros, pois a partir do anonimato que eles condicionam e propiciam o preconceito ganha um espaço comum. É sabido que  diálogos racistas e homofóbicos são produtores de efeitos de sentidos que geralmente causam um estranhamento nos núcleos sociais. A instituição escolar apesar de manter práticas que limitam o discurso da corporeidade, pois virtualmente ela procura equalizar os corpos, não há espaço para a criação de estereótipos. Os saberes veiculado pela escola a respeito disso, assim com as normas sociais e jurídicas, não permitem designações como “o negro” e “o gay”.

            Entretanto nos banheiros o diálogo a respeito da sexualidade e cor da pele é amplo e aberto sempre pressupondo o outro. Veja a seguir um diálogo retirado de uma parede de banheiro de uma universidade:

           

            Negros, porque vocês não voltam para a África?

¾ A raça negra é a verdadeira raça superiora! Aprendam com os negros, brancos de merda!

¾ Nego é recalcado por natureza! Vão se fudê macacada!*

¾> Recalcado é racista de pau pequeno! Racistas gays brochas! <¾

 

Esse diálogo inicia atráves de uma pergunta que não pressupõe necessariamente uma resposta. Entretanto, foi respondida por sujeitos que desafiam o locutor, empregando também formulações ofensivas. No terceiro enunciado, a formulação é mais ofensiva, por empregar termos chulos com relaçào a sexualidade. É interessante observar que o travessão, recurso gráfico que configura um diálogo na linguagem escrita, só ocorre nas respostas.  Na realidade a continuidade do diálogo não se dá apenas pelo o uso do travessão, mas também por uma seta que interliga a formulação anterior com a nova escrita. Essa seta destaca a resposta do interlocutor, que pela repetição do vocábulo “recalcado” no seu enunciado, retoma explicitamente a palavra do outro, marcando a alternância de sujeitos no diálogo. Pode-se perceber ainda  que o embate entre as raças evoca interdiscursivamente outros discursos ligados a sexualidade, como por exemplo, a referência ao tamanho do órgão sexual do negro e  à supremacia da raça branca.

Tal diálogo coloca em suas formulações objetos que não são discursivizados abertamente, pois dentro do banheiro, há uma “autorização” condicionada pelo anonimato que transforma o proibido em permitido. Foucault (1998) diz que o simples fato de burlar o permitido, cria em que desvia a lei pela transgressão, uma sensação de se colocar fora do alcance do poder. Não é surpreendente, pois, que os diálogos nos banheiros se tornam símbolos do que não pode ser dito socialmente, metamorfoseando-se com o locus onde eles surgem, que representa práticas que não podem ser feitas abertamente.

            Os padrões impostos pela instituição perdem sua força diante dos sentidos que emergem no espaço que os banheiros oferecem, sentidos produzidos às avessas da “normalidade” e da moralidade. Nesse espaço, os diálogos hostis e irônicos emergem sem a preocupação da manutenção positiva do “eu”. Os valores outrora conservados e mantidos pela sociedade, ali são desvalorizados. Nesse lugar, não há barreiras impostas pela instituição que possam vetar as diferentes produções de sentidos decorrentes desse diálogo sobre o corpo.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

 

BAKHTIN, Mikhael. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992

BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral II. Campinas: Pontes, 1989

ERNST, Aracy. Corpo, discurso e subjetividade. In: SEMINÁRIO DE ESTUDOS EM ANÁLISE DO DISCURSO, II, nov. 2005, UFRGS, Porto Alegre

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade, I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1998

­­______. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1996

PÊCHEUX, Michel. Análise automática do discurso (AAD-69). In:

GADET, F. e HAK, T. (orgs.) Por uma análise automática do discurso.

Campinas, Editora da UNICAMP, 1997.