ORALIDADE E POESIA ORAL:

PROBLEMAS E ALTERNATIVAS PARA O ENSINO DE LITERATURA


Frederico Augusto Garcia Fernandes

Inicio este artigo com um trecho da aula inaugural de Roland Barthes para a cadeira de Semiologia Literária do Collège de France, em 1977 : “entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma prática: a prática de escrever”. (1978: 16-17). Em cima do que Barthes pontua, caberia questionar: qual é a relação entre oralidade e ensino de literatura? Se o nosso entendimento de literatura está diretamente associado à arte de escrever e, portanto, reduz-se ao universo da escrita, da letra, diria que, pelo senso comum, a literatura não é uma arte acessível ao universo de iletrados. Desse modo, mesmo Barthes reduzindo o conceito de literatura a uma prática e separando-a do ensino, não se pode negar que, ao menos no Brasil, a escola é, ainda, o espaço privilegiado para o aprendizado da escrita e do letramento, isto é, onde ocorre a integração do sujeito à cultura escrita. Mesmo que a escola tenha apresentado muitos fracassos em sua missão, e o número de 855 milhões de analfabetos funcionais no mundo[1] é bastante significativo, é nela que a maioria dos leitores é introduzida aos estudos literários. Por conseguinte, se se pensar exclusivamente na literatura enquanto uma “prática de escrever”, o estrato de leitores será reduzido a uma minoria intelectualizada que escreve livros literários no Brasil. 

É importante observar que a formação de bons escritores está atrelada à de bons leitores e de conhecedores da literatura, pois um escritor se torna efetivamente reconhecido quando é capaz de criar um estilo que marque uma ruptura com seus antecessores. É aí que a escola e o ensino de literatura acabam por ter um papel fundamental na formação e consolidação de uma tradição literária nacional. O problema é que o ensino de literatura no Brasil está agregado ao de Língua Portuguesa. E é aí que ocorre um distanciamento ou uma grande confusão entre língua e literatura, por um lado, e escrita e oralidade, por outro. Explico: a ideologia que permeia o ensino de língua vernácula, ou de comunicação e expressão como sugerem alguns educadores, coloca a arte da palavra no mesmo cadinho que a expressão da palavra. Não que a arte não seja uma forma de expressão, mas o mundo expresso de modo artístico contradiz, questiona e constrói uma realidade outra, tornando o leitor mais sensível ao seu mundo real, ao passo que o mundo expresso de modo real é singular, factual e, mesmo sendo questionador, não se liberta da sua função referencial. A mistura dos dois modos de expressão numa única disciplina cria a falsa ilusão de que o aluno poderá ter um livre trânsito pelos dois. Apesar disso ser a meta, o trabalho com o texto literário raramente alça vôos para além das bordas de referencialidade do texto poético.

Com efeito, ao se deparar com o ensino de literatura nos ciclos fundamental e médio, o professor perceberá que os sentidos poéticos de narrativas e poemas freqüentemente são tergiversados. Numa folheada nos livros didáticos, principalmente os empregados no ensino médio, nota-se a divisão do conteúdo por “movimentos” ou “períodos” literários, no qual cabe ao aluno perceber a arte literária a partir de suas características gerais, sem criar oportunidade para que ele faça um “mergulho” na obra, extraindo dela experiências e conteúdos ligados à sua vida.

Como observa Cyana Leahy-Dios, o modelo brasileiro de ensino de literatura: “é um paradigma positivista calcado em história literária, privilegiando uma objetividade pseudocientífica” (2000: 16). Assim, o ensino de literatura, geralmente, constitui-se via história literária, de uma história factual, em que o decorar datas, nomes de obras e de autores, bem como características principais de cada corrente estética são mais evidenciadas do que a fruição poética. Não é demais enfatizar que quando a literatura é trabalhada em sala de aula sem uma proposta metodológica, que vise a aproximar a arte da vida, o resultado será o desinteresse do aluno pela matéria.

Cabe nessa discussão uma ressalva: o fato de falarmos que o aluno não é dotado de um saber literário não significa que ele não tenha tido uma experiência poética acumulada. A apreensão da poesia via texto literário é diferente da poesia via textos orais. No entanto, o tom lúdico do jogo de palavras e os estados humanos de reação frente às coisas do mundo constituem uma experiência que a poesia oral já muniu o aluno antes de sua aprendizagem formal da literatura na escola. Experiência esta que não pode ser, simplesmente, descartada.

O outro problema que se coloca é o do português falado e o do escrito no ensino da língua. Por volta da década de 1990, houve uma maior ênfase na aprendizagem dos códigos escrito e oral na Língua Portuguesa. O principal argumento é o de que a escola não pode negar o fato de que quanto mais códigos uma pessoa conhecer, maiores serão as possibilidades de ela se comunicar. Ou, nas palavras de Maria Victoria Reyzabal: “poderíamos dizer que a falta de domínio de algum dos códigos usuais numa sociedade poder ser entendido como ruído (definindo-se este como qualquer perturbação que dificulte ou impossibilite a comunicação)” (1999: 11).

No Brasil, a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa, que tratam do Ensino Fundamental de 5a. à 8a. séries, em 1998, verbalizou esta necessidade de trabalhar o código escrito em concomitância com o oral no ensino da Língua Portuguesa. Apesar de a linguagem possuir outros códigos, que foram descartados pelos Parâmetros, a proposta não deixa de ser inovadora e importante, uma vez que abre a discussão dos vários contextos de uso da linguagem verbal. Inclusive a proposta abarca a chamada “literatura oral”, reduzindo a proposta de estudo à circulação do texto literário pela voz de seus intérpretes.

Nesse sentido, os Parâmetros privilegiam alguns gêneros “literários orais”, tais como “cordel, causos e similares; texto dramático e canção”.  Ainda, é recomendado ao professor de Língua Portuguesa que trabalhe esses textos de modo a levar o aluno a compreender e a distinguir os textos poéticos orais presentes no cotidiano do aluno (1998, p.57). De maneira resumida, esta proposta aproxima a literatura do exame das linguagens não-verbais manifestadas em performances, da análise do discurso, das formas de registro e dos diferentes gêneros coletados oralmente (1998, p.55). Os Parâmetros têm por objetivo principal a integração da cultura oral com a escrita no processo de ensino, algo já apontado nos trabalhos de Goody (1978), Havelock (1995), Edwards e Sienkewicz (1990) e Reyzabal (1999). Em outras palavras, a proposta dos Parâmetros é de aproximar o ensino da literatura de uma prática já adota pelos chamados Estudos Culturais, que visa entender o texto como um objeto cultural de um determinado contexto. A ênfase da poesia oral na formação do aluno, proposta para o professor de 5ª. à 8ª. séries, é interessante e poderia ser desdobrada para além do ensino fundamental, pois reafirma a importância cultural que as manifestações poéticas orais desfrutam em diferentes grupos sociais. 

Mas não basta haver uma proposta de trabalho com a oralidade nos Parâmetros para que isso se torne uma garantia de sucesso no ensino de língua e literatura. Se o professor não compreender mais a fundo a importância da cultura oral ao permear as relações sociais, ele não conseguirá, na análise da poesia oral, avançar para além da diferença de circulação (ou seja, os aspectos da performance e do imediatismo) marcante em relação à poesia escrita. Mecanismos importantes como a produção do texto poético oral (como se constitui a voz de uma comunidade, a função que essa voz chama para si de dirimir disputas e outros problemas internos do grupo social, o diálogo com a tradição e a atualização desta tradição, entre outros aspectos) e sua forma de armazenamento (a importância da memória oral e seus usos) são significativos para levar o aluno a pensar como a linguagem poética atua em seu cotidiano. Do contrário, com a não observação destes mecanismos, a confusão entre língua e “literatura oral” ainda permanecerá.

 

A Poesia Oral e o Ensino de Literatura

O aumento de dissertações e teses com pesquisas sobre poesia oral e popular corresponderia a uma tendência em fazer com que os estudos de cultura oral deixassem de ser prerrogativa dos programas de pós-graduação e começassem a fazer parte do cotidiano da graduação e dos diferentes níveis de ensino, incluindo aí a Educação de Jovens e Adultos. Mas na prática isso ocorre muito lentamente, os resultados destas pesquisas pouco nutrem as grades curriculares e, principalmente, quase não contribuem para uma reflexão acerca de seu papel no ensino de literatura.

Ao que parece, o trabalho com oralidade na literatura ainda é incipiente em muitas escolas. É muito comum nos níveis de ensino fundamental e médio, observarmos que os textos da chamada “literatura oral” em sala de aula, quando são trabalhados, recebem o tratamento de exóticos em razão da diferença, de populares com forte rigor ufanista e de “oral” filtrado pelas convenções da cultura escrita. Esta literatura ainda encontra-se submetida ao conteúdo do programa de literatura infantil, além disso, pousa sobre os textos uma aura de preceitos morais, que os desliga da narrativa artesanal, da troca de experiências e do caráter lúdico. Resta, dessa maneira, a absorção da oralidade pela indústria cultural, sendo comercializada através de fitas de vídeo, cassete e cd, vendidos em bancas e supermercados, cujos conteúdos não são oriundos da pesquisa de campo. Isto propicia outra veiculação da voz: a de corpo midiático, conferindo à poesia oral um registro e uma função diferenciada. A “oralidade mediatizada”[2], que nas escolas abarca todo um repertório de lendas e contos populares brasileiros, geralmente, com arranjos musicais, restringe-se à produção não casual, evitando assim o contado direto entre o contador e seu público. Esta “mediatização” atrela-se à figura do contador de histórias, profissional oriundo das artes cênicas, cujo sucesso recente é percebido em inúmeros estabelecimentos de ensino. A ele cabe a performance espetáculo, isto é, o conteúdo transmitido e a situação de recepção assemelham-se ao espetáculo teatral, que demanda ensaios, a memorização textual, a repetição e estudo da cena, a forte presença do texto escrito (o roteiro), o cenário, o figurino e demais aparatos. Logo, o improviso, as mutações e o exercício criativo, decorrentes da interação com o público, que imprime no texto a voz de seu narrador, ficam relegados.

Tanto a mediatização da voz, quanto à presença do contador de histórias são ocorrências que visam a aproximar a literatura da oralidade. Mas apenas isso não é o suficiente. É importante não esquecer que as manifestações orais pressupõem a interação, a participação do público e também sua intervenção, o que faz da voz seu principal meio de veiculação; enquanto que as fitas magnéticas e o espetáculo teatral, é importante lembrar, raramente permitem transpor a barreira física entre o ouvinte e o narrador.

Por este ângulo, a contribuição da oralidade no ensino de literatura merece algumas observações e questionamentos. O professor pode não estar atento ao fato de que, ao trabalhar os diferentes usos dos códigos oral e escrito, ele acaba por dicotomizá-los. Trabalhar os diferentes usos é distinto de trabalhar as diferenças entre os códigos, pois quando se pensa em uso, entende-se que as habilidades de comunicação oral dos alunos serão exploradas e ampliadas. Para tanto, é necessário compreender que o aluno é um ser social, e que a escola é o espaço para a interação de diferentes grupos sociais. Nesse caso, a poesia oral ao ser trabalhada como uma peça folclórica, isto é, alijada de seu contexto de produção, servirá apenas como mediadora da diferença entre o oral e o escrito ou entre o popular e o erudito.  Sob outro prisma, se a poesia oral trazida por professores e/ou alunos para a sala de aula for estudada quanto aos seus mecanismos de produção, circulação e armazenamento, poderão surgir reflexões interessantes sobre as potencialidades de sentidos e de significação de uma narrativa, dos diferentes efeitos que ela provoca nos ouvintes, do modo como ela constitui uma identidade do grupo que a conta e de como ela, sendo uma realidade outra, liga-se ao cotidiano do narrador.

Um outro aspecto para ser pensado é a maneira como o professor compreende a escola onde trabalha e a sua função nela. Se ela for entendida, apenas, como o lugar onde se aprende a decodificar o alfabeto e a escrever e, por conseguinte, cabendo ao professor introduzir o aluno ao conhecimento das letras, ocorrerá uma supervalorização das atividades de escrita em detrimento do exercício do oral. No processo de alfabetização, a supervalorização da escrita sobre o oral tende a provocar duas falsas impressões: uma, a de que os alunos não sabem nada, pois nunca haviam “lido” nada até então; outra, a de que a escola é a única mediadora do mundo da escrita com a sociedade. Eric Alfred Havelock, ao discutir o que chamou de uma “equação” entre a cultura oral e a escrita, levanta o seguinte questionamento:

Os mecanismos de educação moderna colocam ênfase principal no rápido domínio da leitura e da escrita como preparação para a escola secundária e para a vida adulta. Não deveríamos estar preparados para considerar as possíveis condições impostas ao gerenciamento de nossos sistemas educacionais por meio de nossa herança oral? (1995: 28)

            Ele também atenta para o fato de que os alunos em fase de alfabetização possuem um mundo de cantigas, piadas, histórias de assombração... Em outras palavras, pode-se afirmar que se manifesta uma necessidade de fantasiar sobre o mundo real empregando a palavra oral como expressão. Assim, a conclusão a que chega Havelock é que o bom “leitor da escrita” é, antes de tudo, um bom falante. A explicação para isso parece lógica, ao demonstrar capacidade de construir narrativas orais, o leitor estaria apto a adentrar o mundo das narrativas escritas. Logo, antes de decodificar o alfabeto, a criança ou adulto em alfabetização é o “leitor ouvinte”.

Com a assimilação da escrita, as formas de compreender e agir sobre o mundo tendem a se modificar. Isto não quer dizer que se apaga toda a memória anterior, decorrente da leitura de mundo, e que o alfabetizado começa a perceber a vida apenas pelas linhas impressas do papel. Mas também é inegável que significativas mudanças ocorrem no ser humano, quando este passa a ser inserido na cultura escrita. As pesquisas de Jack Goody apresentam resultados interessantes ao analisar a introdução da escrita em comunidades ágrafas. Para o antropólogo, as diferenças entre a fala e a escrita decorrem de que a primeira é mais persuasiva por pressupor o contato “cara a cara” com o receptor, e permeada por avanços e retrocessos temporais, ao passo que a outra é plena de detalhes e é encadeada dentro de um raciocínio mais abstrato e despersonalizado. Em suas palavras

A escrita é crítica não simplesmente porque preserva o que é dito sobre o tempo e o espaço, mas porque transforma o que é dito através da abstração de seus elementos, por meio da fixação do que foi dito, então a comunicação pelo olho cria um potencial cognitivo para os seres humanos diferente da comunicação da palavra pela língua. (1978: 128)

Conseqüentemente, a cultura escrita tende se fazer por enunciados mais propensos à reflexão, à formação de conceitos, aos raciocínios mais complexos, à ênfase nas revelações de estados psicológicos íntimos e que não levam em conta o estreitamento entre o emissor e o receptor. Trata-se de modos e veículos diferenciados pelos quais vão se estabelecendo o processo comunicativo. Isso não quer dizer que o oral se opõe ao escrito ou vice-versa, assim como o hipertexto do computador não está em oposição ao livro. No entanto, nota-se na citação de Goody que há um degrau entre a cultura escrita e a oralidade, neste mesmo degrau o ensino tropeça, às vezes por ignorá-lo, às vezes pela valorização de um nível em detrimento do outro. Na queda, as conseqüências afetam o processo de ensino literário em sala de aula.

O ensino de Literatura sofre, ainda, com a adoção de algumas práticas como o emprego do texto literário para exercícios gramaticais. Além disso, as famosas avaliações de leitura, em que o texto literário é entendido sob a égide do certo e do errado, vigoram sem o menor respeito à alteridade do leitor em relação à obra. Por exemplo, no ensino médio, “toda” a literatura brasileira deve ser ministrada em reduzidas horas semanais e em apenas três anos. Ocorre, assim, a substituição do texto pela “história da literatura”.

Sob a ótica do aluno, a literatura coloca-se como um ramerrão de informações, de nomes, datas e títulos de obras, de características principais, que são ensinadas dando a impressão de que nunca mais se repetem em outros períodos literários. A leitura de romances e/ou poemas, para ele, é indecifrável, afastada de seu horizonte cultural e caótica.

Da forma como está sendo pincelado o ensino de literatura, sem nenhuma pretensão de aprofundar a discussão, seu retrato é frio e está distante da vida. Em vez de ser a responsável por despertar a capacidade reflexiva e o prazer lúdico, a literatura transfigura-se em conhecimentos gerais, cercada por uma aura de superficialidades, cheia de perguntas de múltipla escolha em vez da fruição poética. As conseqüências disso, tentando resumi-las, é que a literatura não forma leitores da escrita, pois a obra, por mais simples que possa parecer, torna-se hermética aos olhos dos alunos.

Como forma de conter o perfil supérfluo da transmissão do saber literário, o resgate do prazer estético apresenta-se como arma eficaz. E este prazer evidencia-se com e na leitura do texto literário. Aí desperta-se também para outra problemática do ensino de literatura, que é o da formação do leitor. Diante disso, o professor encontra-se num beco sem saída: é pressionado pelos alunos a não adotar livro na sala de aula, algo que, de uns tempos para cá, vêm acontecendo também nas faculdades de Letras[3]; restando-lhe o trabalho historiográfico. No ensino médio e cursinhos, a tendência é recorrer às adaptações ou, o que é pior, aos famosos “resumos”, que são, na verdade, narrativas recontadas e fragmentadas, em linguagem acessível (porque agrega matizes orais), o que faz o aluno pensar que “leu” a obra original. Esta impressão, na verdade, constrói grandes simulacros do texto literário, que ainda não dão ao aluno a capacidade de abstração e de aquisição de um pensamento escrito, conforme prescrevem Goody e Havelock.

Agravando ainda mais este cenário já caótico, começa a se tonificar, por parte de professores de língua, a tendência de “expulsar a literatura” do ensino, no melhor estilo platônico.[4] O principal argumento, nesse caso, é que se a literatura é arte, por que não são estudas outras manifestações como a música, a pintura, a escultura etc.? Sendo assim, “se na escola não há espaço para outras artes, também não deveria haver para a literatura”. Este argumento, contudo, soa como vazio, pois restringir a arte ao ensino corresponde a deslocar uma postura mais humanista para longe da escola. A literatura tem o seu papel na escola, ao passo que, além de outras coisas, sensibiliza, preenche o ser humano com experiências e ajuda a constituir e a guardar a nossa memória mundi. E isto é apenas a ponta de um iceberg, os benefícios que a ficção pode causar no ser humano são vários, tanto de ordem psicológica, preenchendo a necessidade de fantasia, como sociológica, permitindo ao leitor que pense os valores e conceitos dentro do meio em que vive.

Pode parecer paradoxal, na medida em que a oralidade se ocupa do fenômeno literário para além das quatro paredes da sala de aula, justamente numa reflexão sobre ela ser tão patente a defesa da presença da literatura na escola. Mas não é. O literário, ao ser enfocado dentro da perspectiva do lúdico, da condição humana por ele expressada, livre de dogmatismos e de obrigatoriedades, assume uma função verdadeiramente humanizadora, além de propiciar o resgate do lúdico. E, nesse sentido, coincide e muito com as práticas orais, que são discutidas mais a fundo neste livro. Para que o texto realmente ganhe “vida”, torne-se deleite e acúmulo de experiências, é necessário que seu leitor mergulhe fundo nele.

Tomando emprestado alguns conceitos da Estética da Recepção (Jauss, 1992; Iser, 1987, 1999), percebe-se que o texto, na situação de sala de aula, não corresponde, nem rompe com o horizonte cultural do leitor, simplesmente porque a linguagem e o conteúdo não condizem com horizonte algum. O desprezo à cultura oral no trabalho com o texto literário escrito condiz com uma repulsa mútua: por parte do aluno, não há o desejo de ler um texto escrito e, por parte do professor de literatura, não há ouvidos para o aluno. Portanto, é assim que a indagação de Eric Havelock se coloca como principal pilar para justificar a inserção do oral na sala de aula. Dessa forma, a literatura não formaria leitor para o simples consumo de livros (apesar disso não poder ser dissociado), e sim, o leitor capaz de interpretar e compreender o mundo ao seu redor. A cultura oral do aluno (com as cantigas, mitos, lendas, piadas etc.) é, sem dúvida, um horizonte cultural a priori, e a partir do reconhecimento desse horizonte pelo professor, haveria condições de trabalhar em cima de textos e propostas no campo literário. Não se trata de nenhuma receita pedagógica, é importante frisar. Ressalta-se o fato de atentar para a condição de falante do aluno e, conseqüentemente, de portador de uma cultura oral e como esta bagagem pode auxiliá-lo na compreensão de um outro mundo que se abre à sua frente, que é o da leitura escrita. Em razão disso, o ensino, em sua substância, corresponderia ao preparo do aluno para a percepção e a assimilação do novo e não a sua imposição como ação e recusa como reação.

O fenômeno da percepção está ligado ao conhecimento acumulado do sujeito e, portanto, à sua consciência, que é requisitada para entender o que se coloca à sua frente. Quando isto é atingido, ocorre o ato de criação. Assim, para o estudioso da fenomenologia, Merleau-Ponty

Só podem falar-nos uma linguagem que já compreendemos, cada palavra de um texto difícil desperta em nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes essas significações se unem em um pensamento novo que as remaneja a todas, somos transportados para o centro do livro, encontramos sua fonte. (1996: 243)

Decorre daí que alguém poderá perceber o novo a partir de um conhecimento prévio que detém sobre o mundo. E este conhecimento torna-se o responsável pelo alcance de outros mundos, ampliando, por conseguinte, o “mundo percebido”. O conhecimento não se esgota com uma ponta obtusa, mas com uma conexão que se liga ao novo, o que o torna sempre mutável e dinâmico. A memória oral, a identidade, a tradição, o repertório de fábulas e de narrativas míticas podem ser compartilhados e servem como troca de experiências, fenômeno de sociabilidade, que ajuda a pular o degrau existente entre a cultura escrita e a oralidade, leia-se também literatura e vida. Nesse sentido, a valorização da oralidade na escola é o principal pilar para a assimilação do novo, da compreensão das diferenças e último, mas não menos importante, da disseminação de saberes populares.

 Todavia, a poesia oral com função desvirtuada, dos livros e de gravações descontextualizadas, que não permitem a compreensão das práticas culturais de uma comunidade, tende a afastar o aluno da convivência com o oral. As narrativas e versos orais devem fazer do aluno um leitor-ouvinte, isto é, inseri-lo dentro de uma prática de trocas de experiências.

A escola pode ser um espaço no qual o aluno exercite o potencial para contar suas próprias histórias, e também outras que, já ouvidas, passam a ser expressadas como se fossem de sua autoria. Torna-se necessário, então, que o trabalho com oralidade parta da herança oral do aluno. Ao professor cabe compartilhar experiências, trocar saberes e o aprendizado da escuta, tornando, deste modo, a literatura mais lúdica e conferindo sabor ao saber.

 

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[1] Dados do UNICEF, de 2002. Analfabeto funcional é um conceito criado pela Unesco, para definir a pessoa que lê, mas não consegue interpretar o que leu. O Censo de 2000, feito pelo IBGE, indicava que uma em cada três famílias tinha um analfabeto funcional, contabilizando 34,7% da população brasileira. Dados de 2005 feito pelo INAF (Indicador Nacional de Alfabetização Funcional) demonstram que apenas 26% da população brasileira (entre 15 e 64) consegue desenvolver plenamente as habilidades de leitura e escrita. Maiores informações, consultar www.ipm.org.br 

[2] Entende-se por oralidade mediatizada o avanço da tecnologia que possibilitou o armazenamento e a reprodução visual da performance. Segundo Zumthor: “as mídias retiraram da performance seu elemento de tatilidade. Algo se perde, assim, onde a ausência carrega consigo uma expectativa irremediável para a integridade do corpo. Esta é a razão pela qual duvido que se possa citar exemplos em que os mesmos efeitos de paixão tenham sido provocados pela poesia oral radiodifundida, ou mesmo televisionada” (2005: 94).  A respeito consultar, ainda, Zumthor  (1997: 30-31).

[3] Não disponho aqui de dados acerca de leituras efetuadas nas faculdades de Letras do Brasil, valho-me índices apresentados por institutos de pesquisas, que venho acompanhando há anos e que colocam a leitura longe de qualquer preferência nacional. Alguns dados como da média de 2,5 livros consumidos por pessoa e o baixo número de bibliotecas em relação aos habitantes (cerca de uma biblioteca para cada 40 mil pessoas), pintam um quadro de apatia em relação à leitura no Brasil.

[4] Uma manifestação interessante nesse sentido é o artigo do lingüista Aldo Bizzochi, intitulado “Repensando o ensino de literatura”, publicado na Folha de S. Paulo, em 10 de julho de 2000, Tendência/Debates, p. A-3,  no qual o professor lança argumentos como o colocado acima.