A importância das trocas simbólicas para alfabetizar letrando
Flávia Isaia
Pinheiro
Mestre em Educação, pedagoga e psicopedagoga
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - RS
RESUMO
O estudo em questão apresenta como propósito divulgar e discutir alguns resultados de pesquisa acerca dos processos cognitivos e suas inter-relações com a literatura infantil. A investigação foi realizada com um grupo de seis crianças de uma escola pública da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre, cujas idades variavam entre 6 e 7 anos, no segundo semestre de 2003. O grupo foi observado em contextos que envolviam a literatura infantil dentro da escola. O procedimento de avaliação do processo cognitivo das crianças deu-se através de entrevistas clínicas – a primeira, realizada em setembro, e a segunda, em dezembro. O processo cognitivo dessas crianças é entendido aqui como sendo aquele que assinala a passagem dos raciocínios pré-conceptuais (transduções) para a atividade representativa de ordem operatória. O ato de escutar, recontar, comentar e discutir as histórias, presente tanto nas entrevistas clínicas como no trabalho escolar com a literatura infantil, privilegiou a narrativa (linguagem) das crianças, justamente por reconhecer a importância da mesma, tanto no que diz respeito ao começo como ao avanço da conceituação. A qualidade das trocas simbólicas ocorridas entre as crianças e a professora durante as situações sistemáticas de interação com a literatura infantil produziu avanços significativos no quadro da representação cognitiva de todas as crianças, quando foram comparados os dados obtidos na segunda entrevista com aqueles da primeira. Além disso, a pesquisa confirma as contribuições de Piaget no que diz respeito ao pensamento intuitivo das crianças pesquisadas, as quais manifestaram raciocínios aparentemente operatórios, porém ligados a uma configuração perceptiva. Esses raciocínios indicam que para a criança compreender a ordem (seqüência da história) preestabelecida no objeto livro são necessárias ações ordenadas no plano da representação, bem como sua interação com o objeto livro e o adulto intérprete-leitor.
PALAVRAS-CHAVE: Letramento: Literatura Infantil. Estruturação do Real.
INTRODUÇÃO
Meu interesse como pesquisadora deslocou-se
do campo da alfabetização para o campo do letramento, justamente por acreditar
que tornar-se letrado, ou seja,
ter-se apropriado da escrita através da contação ou leitura de histórias
significa tornar-se consciente da necessidade de ter que aprender a ler e a
escrever para poder alcançar possibilidades maiores de letramento.
O ideal seria, então, continuar oportunizando
situações para os alunos tornarem-se letrados desde o primeiro ano escolar, uma
vez que o contato inicial com a literatura não exige o domínio do código
escrito. Assim, estaríamos colocando num primeiro plano o letramento como condição de envolvimento da criança em variadas
práticas sociais de leitura e escrita, entendendo-o
como sendo mais que alfabetização. Somente a partir daí a alfabetização
passaria a ter e a fazer sentido.
Penso que a separação polarizada entre a
oralidade e a escrita possa ser evitada desde os primeiros momentos da criança
na escola, em especial nos primeiros anos do 1º ciclo, se conseguirmos
possibilitar interações das crianças com a literatura infantil através de orientações de letramento[1]
adequadas às suas necessidades.
Quando utilizo a expressão orientações de letramento adequadas às
necessidades das crianças refiro-me à importância de levar o aluno a
aprender não apenas a fazer sentido dos livros, mas também a falar e
representar esse sentido, ou seja, estender sua compreensão de livros para
outros contextos situacionais, usando o seu conhecimento de mundo,
ficcionalizando ou alterando histórias.
Ao estudar a relação existente entre o livro de história infantil e a construção do pensamento das crianças a partir da interação das mesmas com a leitura de histórias, passei a relacionar algumas das colocações teóricas de Piaget (1937; 1945) com a compreensão que as crianças poderiam ter em relação às histórias guardadas nos livros.
Quando o adulto lê novamente uma história conhecida da criança, ela geralmente consegue antecipar o que se segue na história. Isto acontece porque, segundo Piaget (1937, p.93), é a partir do sexto estágio que a criança consegue resolver os problemas colocados no decorrer das suas experiências precedentes e ela o faz por um método novo: o da representação. Ele também afirma que “Além disso, é bastante possível que a evolução da causalidade no plano sensório-motor obedeça às mesmas leis que seu desenvolvimento no plano do pensamento reflexivo e verbal” (PIAGET, 1937, p.231). Assim, se a criança do sexto estágio torna-se capaz de dedução causal, ou seja, de prever os efeitos partindo de uma causa considerada, também pode-se pensar na influência da dedução causal mais adiante, na maneira pela qual a criança concebe as causas dos acontecimentos que compõem as histórias, ao tentar atribuir objetividade e coerência entre os fatos de uma mesma história.
Ao assimilar os aspectos da história do livro, a
criança constrói noções que lhe permitem, de alguma maneira, ordenar e
estabelecer a ligação entre os fatos da história[2].
Nesse sentido, torna-se importante lembrar que nenhum comportamento, nem mesmo
quando é novo para o indivíduo, constitui um início absoluto. Está sempre
apoiado em esquemas anteriores, ou seja, a criança alcançará maior sucesso na
assimilação da história no momento em que os personagens e/ou os fatos tiverem
um significado para ela. Isto só a criança pode determinar e revelar pela força
com que reage emocionalmente àquilo que um conto evoca na sua mente consciente
e inconsciente.
Além disso, não podemos esquecer que as características qualitativas das práticas de
leitura de histórias (TEBEROSKY, 2003, p.25) contribuem muito para essa
assimilação, especialmente no que se refere à relação entre os objetos de duas
dimensões dos livros e os objetos de três dimensões do mundo real. É na medida
em que os adultos tratam os objetos simbólicos como representantes dos objetos
reais, que as crianças aprendem também a estabelecer relações entre essas duas
categorias de objetos.
Sabemos que as crianças gostam de ouvir várias vezes a
mesma história, o que possivelmente as ajude no ato de recontar. Mas outro
aspecto também deveria ser levado em consideração: as crianças imitam o modelo
de leitor do adulto, conforme menciona Teberosky (2003, p. 25): “Aprendem,
então, com um modelo de leitor:
captam a entonação, as pausas, a posição, os comentários que os adultos fazem
ao ler, para logo poder imitá-los em atividades de simulação de leitura”.
A ESTRATÉGIA
DE PESQUISA UTILIZADA
Utilizei o estudo de caso como estratégia de
pesquisa (YIN, 2001, p.25) na intenção de compreender e explicar como a
literatura infantil contribui para a construção do pensamento das crianças. Meu
objetivo como pesquisadora é de expandir e generalizar teorias (generalização
analítica) – em especial, as
contribuições de Piaget – e
não enumerar freqüências (generalização estatística).
A unidade central de análise
é a representação cognitiva da criança. A investigação desta unidade de análise
foi realizada com crianças de 6 e 7 anos de idade que freqüentavam uma turma de
1º ano, do 1º Ciclo de uma escola pública da Rede Municipal de Ensino de Porto
Alegre.
Selecionei um pequeno grupo
de crianças que faziam parte do contexto desta turma com a finalidade de
acompanhá-las ao longo do segundo semestre de 2003, observando as situações de
interação dos mesmos em contextos que envolviam a literatura infantil dentro da
escola.
O critério de escolha das crianças envolveu
tanto a assiduidade nas aulas como as situações em que elas se destacaram por
sua participação em atividades que envolviam a literatura infantil dentro da
escola, especialmente aquelas relacionadas com a leitura de histórias em voz
alta pelas professoras.
No mês de agosto, eu já havia selecionado as
seis crianças que passaram a compor esse grupo: Alessandra (7a 10m), Andrea (6a 7m), Daniela (6a 4m), Guilherme (6a 4m), Hermes (6a 5m) e Bernardo (6a 2m).
As observações tiveram a duração de um turno
inteiro, sempre às terças-feiras à tarde, uma vez por semana, passando pelos
seguintes procedimentos:
1º) Observação das condutas das crianças em
condições naturais, sem intervenção significativa de minha parte;
2º) Primeira avaliação do processo cognitivo
através de entrevista clínica, visando a reconstituição oral de duas histórias
infantis;
3º) Observação das condutas das crianças em
condições naturais, sem intervenção significativa de minha parte;
4º) Segunda avaliação do processo cognitivo,
através de entrevista clínica, visando a reconstituição oral de duas histórias
infantis;
Ao descobrir quais eram os livros de histórias
infantis mais apreciados por algumas crianças, passei a delinear a proposta da
entrevista clínica com a intenção de direcionar minha conversação para o
próprio objeto-livro que a criança poderia manipular. Mantive a idéia inicial
de realizá-la com duas histórias infantis: uma história conhecida da criança e
a outra, desconhecida.
Sabemos que da história conhecida para a
história desconhecida o grau de complexidade da tarefa aumenta. Se pensarmos na
história conhecida da criança, por exemplo, podemos afirmar que esta
possibilita maior segurança na hora de recontar tendo em vista que a criança já
apresenta uma certa familiaridade, seja com as imagens e/ou com o texto escrito
da mesma. Em se tratando da história desconhecida, ao contrário, a criança
depara-se com uma nova situação-problema e as chances de já ter pensado sobre
essa história antes e com os detalhes que lhe vão sendo perguntados são
inexistentes.
Se o recontar da história conhecida já fornece
informações a respeito do ponto de vista cognitivo da criança, podemos afirmar
que é através da história desconhecida que a criança é desafiada a elaborar uma
explicação que revele a organização de seu pensamento, justamente porque ela
não pensou sobre essa história antes do momento da entrevista.
AS HISTÓRIAS
DESCONHECIDAS
Cabe agora falar
um pouco sobre as histórias desconhecidas selecionadas para as Entrevistas I e
II. Durante a primeira entrevista, realizada no mês de setembro, utilizei como
história desconhecida o livro Lúcia-Já-Vou-Indo
(PENTEADO, 1980). A opção por este conto se deu em função da indicação de
Aguiar (2001) quando ela se refere ao que significa adaptar na literatura
infantil. A autora explica que adaptar, na literatura infantil, é valer-se
de recursos que põem criança e texto em sintonia, e que tais recursos dependem
do conhecimento que o autor-adulto possui da criança em suas diferentes fases e
do projeto que ele traça para esse sujeito em formação. Em outras palavras, ao
adaptar, o autor-adulto sente a necessidade de superar a distância que o afasta
de seu leitor em cada obra que produz, adequando-a ao sujeito que vai
vivenciá-la através do assunto, estilo, forma ou do meio.
Já na segunda entrevista, realizada no mês de
dezembro, utilizei como história desconhecida o livro A verdadeira história dos três porquinhos! (Scieszka, 1993). Foi amor à primeira vista, quando conheci
esta história durante a Feira do Livro realizada em Porto Alegre no mês de
outubro[3]
. Lembrei-me de Abramovich (1995, p.20) quando ela afirma que o mais importante
é que a história seja escolhida pelo contador por ser bela ou boa, por ter uma
bela trama, ser divertida ou inesperada, ou por dar margem para alguma
discussão. Penso que a minha opção por essa história tenha reunido todos esses
aspectos simultaneamente e, em especial, o fato de vir a ser ainda uma outra
versão da história clássica dos três porquinhos.
Comentei com a professora da turma o meu
desejo de utilizar essa história durante a segunda entrevista e indaguei se as
crianças já conheciam a história dos três porquinhos, pois tal conhecimento
tornaria os aspectos mencionados por Abramovich – especialmente aquele
referente a dar margem para alguma
discussão – mais interessantes, uma vez que a criança poderia estabelecer
relações entre a história clássica e a versão da história desconhecida.
O TRABALHO ESCOLAR COM A LITERATURA INFANTIL
Procurei localizar uma turma
de alunos cuja prática pedagógica estivesse voltada, justamente, para a
valorização das formas de representação da criança em contextos que envolvessem
a literatura infantil dentro da escola. Isto sem deixar de lado as situações
que incentivassem a cooperação[4],
necessária para conduzir o indivíduo à objetividade.
Assim, não seria apenas o
professor quem iniciaria, responderia e organizaria as atividades, mas também
os alunos, uma vez que o ambiente pode promover a busca de informação e
exploração por parte dos alunos.
Os contextos que envolvem a
literatura infantil dentro da escola, por sua vez, relacionam-se à freqüência
com que as crianças se comunicam com leitores e escritores e à participação em
atividades de leitura compartilhada para aprenderem as expressões próprias da
linguagem dos livros. Isso nos leva a conceder grande importância à leitura de
histórias em voz alta, por parte do professor.
Quando o professor realiza a
leitura em voz alta, a criança aprende a participar como audiência, porque
escutar essa leitura não é algo passivo. Ao escutar a leitura, as crianças
aprendem que a linguagem escrita pode ser reproduzida, repetida, citada e
comentada.
Comentários que explicitam
os nexos entre as ações, que interrogam sobre o que acontecerá na história, ou
que formulam novas perguntas diante da informação encontrada ajudam a criar
mecanismos próprios da leitura, como os de antecipação e inferência.
As manifestações textuais de
natureza imagética presentes nos livros utilizados pela professora e pelos
alunos também contribuem para a compreensão da linguagem visual, ampliando os
conceitos tradicionais de leitura que permanecem muitas vezes centrados numa
visão de linguagem entendida como manifestação oral ou escrita (PANOZZO, 2001).
Penso que o espaço da sala
de aula deva refletir essa imersão induzida no mundo das imagens e da escrita,
sendo atrativo e bem organizado, para que os alunos possam movimentar-se com
segurança.
Nessa delimitação do espaço,
o canto da biblioteca é um ponto
central (TEBEROSKY, 2003, p.145). O tempo escolar deve contemplar atividades
que levem os alunos a manusear os livros, a folheá-los e compartilhá-los, e a
estender suas opiniões e aprendizagens a murais, dramatizações e manifestações
plásticas que traduzam o impacto afetivo e cognitivo da experiência obtida.
Convém lembrar que estou partindo do pressuposto de que a qualidade das
trocas simbólicas ocorridas na escola em situações sistemáticas de interação
com a literatura infantil pode vir a produzir alterações significativas no
quadro da representação cognitiva das crianças pesquisadas.
Para tanto, cabe agora relatar como aconteceram essas atividades de
leitura compartilhada das histórias infantis no ambiente escolar, tanto no que
diz respeito à freqüência com que as crianças se comunicaram com leitores e
escritores como à sua participação em tais atividades.
O Quadro 1 tem como
objetivo destacar o que foi trabalhado no âmbito das histórias infantis em
algumas das minhas tardes de observação na turma, no período de julho a
dezembro de 2003.
QUADRO 1
Atividades
desenvolvidas com a literatura infantil na escola (formais e informais)
Data |
Atividades desenvolvidas |
1º/07 |
·
Busca
espontânea de livros infantis por um grupo de cinco crianças – inclusive
Hermes e Daniela – na gaveta do armário móvel da sala durante a aula. |
07/07 |
·
Interação
das crianças com os livros na biblioteca; escolha de um destes livros pelas
crianças para escutarem a história (história escolhida: As sobrinhas da bruxa Onilda e a roupa nova do rei (COMPANY, 1997);
e desenho relacionado à história. |
05/08 |
·
Hora
do Conto na biblioteca com a história O
sanduíche da Maricota (GUEDES, 1991). A professora contou a história na
“televisão” de madeira com tela transparente, como se estivesse passando um
filmezinho. A seguir, foi reconstituindo a história junto com as crianças,
utilizando desta vez o próprio livro: folheava as páginas do livro enquanto
as crianças reconstituíam a história apoiando-se nas imagens. ·
Folha
para colorir o desenho do sanduíche aberto com todos os ingredientes
preferidos da galinha. |
30/09 |
·
Retomada
da parte inicial da história O pintor
de lembranças (CAÑIZO, 2002) pelas crianças na rodinha. Após essa
reconstituição oral apoiada nas imagens do livro e nas indagações da
professora referentes à história, a professora seguiu contando a história,
inclusive inventando falas para os personagens a partir das imagens e do
texto escrito. ·
As
crianças finalizaram o trabalho iniciado na aula anterior, pintando-o com giz
colorido molhado na água. Tratava-se do desenho das lembranças das próprias
crianças, acompanhados do registro escrito pela professora da fala da criança
junto ao desenho. |
11/11 |
·
Leitura
em voz alta, feita pela professora na rodinha, da história O menino Nito (ROSA, 2002). ·
Construção
do menino Nito pelas crianças com sucatas e tinta para pintarem-no. |
18/11 |
·
Leitura
em voz alta, feita pela professora na rodinha, da história Chapeuzinho Amarelo (BUARQUE, 2003). ·
A
professora indagou sobre os medos das crianças e propôs que elas também
inventassem a mesma brincadeira de Chapeuzinho na história: transformar as
palavrinhas para não ter mais medo. |
25/11 |
·
Construção
espontânea de um pequeno livro com a escrita de uma história, feito pela
aluna Alessandra. ·
Leitura
em voz alta para os colegas, feita pela aluna Alessandra, da história por ela
escrita: Mimi, a minha gatinha. ·
Construção
da gatinha da história através de recorte e colagem. |
Cabe destacar que as atividades com histórias infantis não se limitaram
somente às terças-feiras, dia das minhas observações na escola. Pude observar
que na minha ausência também aconteceram situações que foram significativas
para a professora, as quais ela vinha me relatar com entusiasmo.
O primeiro relato de uma dessas situações aconteceu quando ela me
alcançou o desenho das lembranças das crianças, realizado em outra aula, a
partir da história O pintor de lembranças
(Cañizo, 2002) e comentou comigo
as lembranças que surgiram nesses desenhos das crianças ao mesmo tempo que os
mostrava para mim. O segundo relato aconteceu em outubro, quando ela também fez
questão de me mostrar os desenhos das crianças realizados no dia anterior,
todos produzidos a partir da história O
pintinho Plic, de Roberto Belli (livro da gaveta do armário móvel da sala).
Esses desenhos tinham sido feitos com papel crepom amassado e massinha de
modelar, na folha de papel.
Ela ainda relatou que nesse mesmo dia chamou a aluna Alessandra para
ler em voz alta para a turma dois livros na rodinha, tendo ficado admirada de
como ela já estava lendo bem. Os livros que Alessandra leu para a turma foram O potrinho Percival e A ovelhinha Isolda, ambos da Coleção
Filhotes de Animais, da gaveta do armário móvel da sala. Naquela tarde a
própria Alessandra aproximou-se de mim para me mostrar os dois livros que ela
havia lido para a turma no dia anterior. Perguntei, então, para as crianças que
estavam próximas, qual dos dois livros elas tinham gostado mais e por quê.
Guilherme respondeu: “Eu gostei do
potrinho, por causa que o potrinho era um cavalo muito bonito”. Tais fatos
ilustram o trabalho sistemático da professora com a literatura infantil,
condição que estabeleci previamente durante a escolha da turma tendo em vista a
natureza de minha investigação.
Com a intenção de tornar mais vivo este relato referente às atividades
desenvolvidas com as histórias infantis, selecionei algumas partes das aulas do
mês de novembro para descrever a seguir. O nome das crianças que fazem parte do
grupo selecionado para as entrevistas está destacado em negrito.
Mês de Novembro
Quando a professora apresentou o livro Chapeuzinho
Amarelo (BUARQUE, 2003) para as crianças, estas manifestaram já conhecer a
história da Chapeuzinho Vermelho e a música “Geni” de Chico Buarque, o autor do
livro, bem como o nome do ilustrador Ziraldo. Alexandre e Wagner demonstraram
saber inclusive para quê e para quem se destinava a escrita daquela
história, quando afirmaram que o autor escreveu “prá ganhar dinheiro” e que ele
escreveu “prá gente”.
No decorrer da
leitura em voz alta feita pela professora, as crianças comentaram sobre os seus
medos na parte da história referente aos medos da menina, tanto no início como
no final da história, conforme é ilustrado no trecho a seguir:
Daniela: Ah, eu
também tenho medo de pesadelo.
Janete: Eu não tenho medo de nada.
Alessandra: Sabia que quando eu durmo todo dia eu tenho medo de
pesadelo?
Profª: Quem é que tem medo de diabo?
(As
crianças respondem levantando o dedo)
Profª: Quem é que tem medo de dragão?
(As
crianças levantam o dedo)
Profª: Quem é que tem medo de tubarão?
(As crianças
levantam o dedo novamente)
Alessandra: Um dia meu pai foi lá no amigo dele, o Felinho. E o Felinho
deu uma caixa e quando ele abriu a caixa, tinha um monte de barata.
Alexandre: E quem é que tem medo de
lagartixa? A professora! – diz provavelmente referindo-se à uma situação
presenciada em sala de aula dias atrás.
Daniela: Quem é que
tem medo de rato?
Alexandre manifestou novamente ter conhecimento da
história da Chapeuzinho Vermelho na parte em que o texto menciona o encontro da
Chapeuzinho Amarelo com o lobo e o autor descreve como era o carão do lobo, o
olhão do lobo, o jeitão do lobo e o seu bocão. Nessa parte, Alexandre antecipou
a história: “E a Chapeuzinho falou: Por que você tem o nariz tão grande?”. Daniela também manifestou conhecer o
lobo de outras histórias, ao comentar que “Ela tem medo porque ele bota a gente
no forno”, na parte da história que diz que o maior medo de Chapeuzinho era o
tal do lobo.
A professora
instigou as crianças a imaginarem o que aconteceria na história antes que ela
virasse a página. Observa-se, no trecho abaixo, que Débora, Andrea, Alessandra e Daniela
anteciparam o que poderia acontecer (Daniela
disse “concordar” com Débora!):
Profª: O que será que aconteceu? –
pergunta antes de virar para a página seguinte, na imagem que mostra o encontro
da Chapeuzinho com o lobo.
As crianças tentam adivinhar o que acontecerá na história:
Débora: Ela nunca mais teve medo.
Andrea: Comeu.
Débora: Ela ficou amiga.
Alessandra: Ele era bom, mas ninguém entendia. Ele mesmo tinha medo dele
mesmo.
Daniela: Eu
concordo com a Débora: que ela ficou amiga.
Outras crianças dizem também concordar com Débora. A
professora lê a parte sobre o encontro da Chapeuzinho com o lobo.
Ao enxergarem
a imagem da página seguinte, as crianças imitaram o uivo do lobo (“Auuuu...”),
e Alessandra conseguiu ler em voz
alta o que estava escrito no balão de fala do lobo na imagem do livro: “Eu sou
um lobo”. A atenção das crianças voltou-se, então, para a leitura das imagens:
imagem do lobo, quando ele se transformou em bolo, e imagem dos animais que a
Chapeuzinho passou a não ter mais medo.
Podemos
observar ainda, no trecho seguinte, que Janete, Giedre e Susana conseguiram
brincar de inventar e de transformar palavras para não sentirem mais medo, como
fez a Chapeuzinho Amarelo no final da história:
Profª: Quem é que sabe transformar as
palavrinhas pra não ter mais medo?
Janete: Pulga: PUM!
Giedre: Professora, eu tenho medo de
cobra.
Profª: Então inventa uma outra palavra.
Giedre: TOBRA.
Susana: Professora, eu inventei um nome:
cachorro/MACHORRO.
Quando na semana seguinte a professora entregou uma
folha para que as crianças trabalhassem com algumas palavras da história Chapeuzinho
Amarelo, a Alessandra disse que escreveria uma história com o seu
nome nessa folha. Então, ela recortou a folha pela metade e a dobrou, formando
um pequeno livro no qual escreveu:
Mimi a minha
gatinha. Alessandra era uma menina muito só e queria uma gata bebê. A mãe de
Alessandra dizia: - Minha filha, pára com esse papo. E Alessandra dizia: - Mãe,
você não sabe a vontade que tenho de ter uma gata. E a mãe de Alessandra falou: -Tá,
eu te dou uma gata bebê. E a Alessandra ...(a história encerrou nesta
parte, ficando incompleta, pois não havia mais espaço para escrever na folha).
Depois de confeccionar o pequeno livro, ela pediu à
professora para ler sua história para os colegas: “Essa história não tem
figuras coloridas. Tem só letras” – avisou para a turma antes de iniciar a
leitura, embora tivesse feito as letras coloridas ao escrever o livro.
Observei que ao ler o final da história, Alessandra acrescentou o restante da
frase que não coube em sua folha. Então, ela leu a frase assim: “E a Alessandra ficou muito feliz.”
Ao terminar a leitura, toda a turma a aplaudiu e a
professora propôs que todos confeccionassem a gata de Alessandra.
Convém destacar que as
trocas simbólicas ocorridas entre as crianças e a professora nessas situações
sistemáticas de interação com a literatura infantil, algumas delas ilustradas
especialmente nesta seção, foram importantes para os avanços cognitivos das
crianças, quando comparei os dados
obtidos na segunda entrevista com aqueles da primeira.
OS RESULTADOS DA INVESTIGAÇÃO
Podemos afirmar,
especialmente com base na análise dos dados da menina Alessandra, que tornar-se letrado, ou seja, ter-se
apropriado da escrita através da contação ou leitura de histórias, contribui
para tornar-se consciente da necessidade de ter que aprender a ler e a escrever
para poder alcançar possibilidades maiores de letramento, como aconteceu com
Alessandra quando ela se tornou escritora e leitora do seu próprio livro. Isso
significa dizer que essa menina passou a ter uma outra condição social e
cultural – não se trata propriamente de mudar de nível ou de classe social,
cultural, mas mudar seu lugar social,
seu modo de viver na sociedade, sua inserção na cultura (SOARES, 1998). Podemos
pensar, então, que a sua relação com os colegas, com o contexto e com os bens
culturais tornou-se diferente na medida em que ela também assumiu o lugar de
intérprete-leitora.
O fato de a
Alessandra conseguir conquistar formas mais complexas de representação
conceptual, inclusive da escrita alfabética, sinaliza para a importância da
estruturação do real enquanto fonte das operações, e leva-me a inferir que o
percurso do pensamento das demais crianças poderá também atingir o grau de
letramento alcançado por Alessandra, tendo em vista os avanços significativos
das crianças obtidos nas categorias Letramento
e Estruturação do Real.
Se na Entrevista I
a consideração figurativa dos estados teve mais importância do que a
compreensão das transformações – razão dos acontecimentos na história, a qual
envolve a idéia de processo –, o mesmo não podemos afirmar com relação à
Entrevista II, quando o pensamento das crianças deixou de ser dirigido
exclusivamente pelas imagens (ilustrações) do livro e os aspectos operativos do
pensamento passaram a exercer predominância na hora de escutar, recontar,
comentar e discutir as histórias.
Essas alterações
que ocorreram no quadro da representação cognitiva de todas as crianças pesquisadas – no período entre a primeira e a
segunda entrevista – relacionam-se com a qualidade das trocas simbólicas ocorridas
entre as crianças e a professora em situações sistemáticas de interação com a
literatura infantil. Tais situações indicam um avanço cognitivo nas crianças
não somente em relação à sua capacidade representativa, mas também no que diz
respeito à operatoriedade do pensamento, como foi o caso de Alessandra. Observamos, portanto, que a interação da criança
com leituras de livros permite a ela desenvolver-se como leitora (e
escritora!), uma vez que ouvindo, discutindo e representando as histórias
escutadas a criança consegue estabelecer relações entre a linguagem oral e as
estruturas do texto escrito.
Finalizando, gostaria de comentar, ainda, a
implicação pedagógica desta investigação para uma época em que a necessidade de
políticas de alfabetização e letramento e de programas de desenvolvimento do
letramento torna-se cada vez mais visível em nossa sociedade, bem como a
formação de professores que vem ganhando destaque, tendo em vista que o sistema
escolar assume a responsabilidade de promover esse letramento.
Se é certo que o letramento é um dos
objetivos da escolarização, também é certo que ele é, no contexto escolar, um processo, mais que um produto (SOARES,
1998). Pensá-lo como sendo um processo pressupõe
que o consideremos já desde os primeiros anos, quando as crianças chegam à
escola. A partir da entrada da criança na escola, tornam-se importantes ações
pedagógicas que se relacionem com os seguintes aspectos:
Ø Presença de materiais
escritos variados na escola e na sala de aula, para que as crianças tenham
acesso, especialmente a livros de literatura infantil. Nesse sentido, o acesso
ao acervo de livros da biblioteca também torna-se fundamental.
Ø Circulação de livros
infantis do tipo realista e fantasista, com qualidade literária, ou seja, que
apresentem uma bela trama, divertida ou inesperada, bem como ilustrações que
possam auxiliar na compreensão da história lida ou contada. Esses cuidados
tornam-se fundamentais no sentido de não restringirem a obra literária infantil
a supostos textos que seriam mais adequados a esta ou aquela faixa etária, os
quais muitas vezes contam histórias desinteressantes, “chatas”, monótonas e com
problemas que nem sequer sensibilizam as crianças. Num ambiente rico do ponto
de vista literário, o critério de seleção da história pode ser feito pelo
adulto intérprete-leitor ou pelo aluno, tendo em vista que tanto a literatura
realista como a fantasista permitem à criança estabelecer relações entre o
conteúdo da história e o mundo real.
Ø Interação das crianças com
as histórias infantis, através da leitura em voz alta do adulto
intérprete-leitor, já que a escrita apresenta propriedades que não podem ser
“lidas” diretamente sobre o objeto, mas através das ações que outros realizam
com esse objeto. A mediação social é imprescindível para compreender algumas
dessas propriedades da escrita (FERREIRO, 1985). Torna-se implícita aqui a idéia
de participação das crianças, através de perguntas e comentários durante a
leitura do adulto intérprete-leitor, tendo em vista que a criança também é
intérprete, mas em outro nível. Para tanto, os comentários do adulto leitor e
suas interrogações sobre o que acontecerá na história são fundamentais tanto
para a criação deste clima de envolvimento das crianças com a história, como
para fornecer-lhe elementos do ponto de vista cognitivo das crianças.
Ø Planejamento pedagógico que
contemple atividades que levem os alunos a manusearem os livros, a folheá-los e
compartilhá-los, e a estender suas opiniões e aprendizagem a murais,
dramatizações e manifestações plásticas que traduzam o impacto afetivo e
cognitivo da experiência obtida a partir das histórias guardadas nos livros. A
organização de situações em que os alunos possam recontar as histórias para os
próprios colegas contribui para que eles também assumam esse lugar de
intérprete-leitor ocupado inicialmente pelo adulto, além de favorecer o seu
esforço intelectual no sentido de aproximar-se da narrativa criada pelo autor
da história.
A beleza de acompanhar esse processo de letramento inicial das
crianças no mundo da literatura e os seus avanços cognitivos encontra-se
justamente quando a criança passa a conseguir, além de criar, a escrever
histórias para serem lidas. Surge, então, a possibilidade que ela tem de
refletir sobre o sistema de escrita. O desafio de pesquisa passa a ser, a
partir daí, o de investigar como acontece a estruturação do real na
textualidade das histórias escritas pelas crianças.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMOVICH, Fanny. Literatura infantil: gostosuras e bobices. São Paulo :
Scipione, 1995.
AGUIAR, Vera Teixeira de
(Coord.). Era uma vez...na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte : Formato Editorial, 2001.
FERREIRO, Emília ;
TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da
língua escrita. Porto
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[1] Posteriormente, encontrei em Aprender a ler e a escrever – uma proposta construtivista (Teberosky, 2003, p. 22-26) a expressão “leitura compartilhada” utilizada pela autora para referir-se aos pais que lêem para seus filhos livros com histórias que contêm texto e imagens. Teberosky destaca duas características das práticas de leitura compartilhada: a) a qualidade da interação; b) a freqüência e a repetição da história lida. “As leituras compartilhadas são aquelas que se dirigem à criança, fazendo-a participar como destinatária do ato de leitura”. (TEBEROSKY, 2003, p. 37)
[2] “A partir dos quatro anos, as crianças já podem reproduzir fragmentos em discurso direto do que foi dito por algum personagem de um conto ou de uma narração” (Teberosky, 2003, p. 140). Na afirmação da autora, o discurso direto é entendido como sendo a citação literal das palavras ditas pelos locutores.
[3] Meu passeio à Feira do Livro objetivava adquirir os livros trabalhados pela professora durante o ano com as crianças para disponibilizá-los na segunda entrevista: histórias conhecidas das crianças.
[4] Piaget (1998, p.145) distingue um certo número de períodos na evolução do trabalho em grupo, afirmando que antes dos 7-8 anos as crianças gostam do contato, mas sem que isso modifique sua atitude individual: ainda não se trata de grupos organizados (o egocentrismo intelectual ainda predomina sobre a socialização do pensamento). As discussões e as trocas intelectuais entre as crianças continuam sendo rudimentares até os 7-8 anos.