Chiquinha: uma personagem diferente na mídia infantil (?)

 

Palavras-chave: gênero, corporalidade, feminismo.

 

Quando se pensa em televisão logo vêm à mente algumas palavras, tais como: entretenimento, passatempo, informações variadas, etc. Ela está presente diariamente na vida do ser humano. Entretanto, muitas pessoas não têm consciência de quanto elas são influenciadas pela mídia. Não estou falando somente da mídia voltada para adultos, mas também  da infantil. Pode-se concordar que por trás de uma personagem de uma novela há toda uma ideologia trabalhada de forma a fazer os adultos mudarem suas opiniões, seus pontos de vista. Se isso é bem aceito por eles, por que não fazer o mesmo com as crianças? Esse é um dos principais objetivos desse trabalho, ou seja, mostrar que programas infantis podem ter uma carga ideológica muito forte.

A mídia infantil é uma área rica, pois possui diversos gêneros, tais como seriados, desenhos animados, filmes infantis, revista em quadrinhos, etc. E é em um seriado infantil, Chaves, que esse trabalho será focalizado. Ele foi por mim eleito porque acredito que nenhum programa que resista mais de duas décadas na TV brasileira à base praticamente de reprises deve ser visto como uma atração qualquer.

Entre todas as personagens, decidi analisar somente uma, Chiquinha. Atualmente é comum assistir programas em que as “meninas” estão sempre bem arrumadas, são magras e geralmente loiras. E o fato de Chiquinha não ser aparentemente igual a elas foi a principal razão para eu iniciar uma análise.

Dentre os objetivos deste estudo estão: verificar se Chiquinha é uma personagem diferente por não ser fisicamente parecida com outras, e se é possível haver alguma ideologia em que ela está ancorada. A metodologia utilizada foi a gravação, recortes específicos e transcrição de trechos de alguns episódios. Foram observados aspectos como a apresentação física (corpo e vestuário) e o comportamento da personagem.

Para quem não a conhece, vou apresentá-la. Ela é uma menina de aproximadamente 8 anos e fora dos padrões da menina bonita e arrumada. Além de outras duas roupas, a roupa que mais usa é um vestido verde remendado, um casaco vermelho torcido nas costas,  uma bombachinha branca; seu cabelo é amarrado com duas colinhas, uma de cada lado e uma mais alta que a outra; ela usa óculos pretos e não tem um dente.

Além de diferenciar-se fisicamente, ela também conta com um comportamento que tradicionalmente não é dado às mulheres, especialmente às mulheres jovens, ou seja, ela é esperta, malandra, faz tudo o que pode para conseguir o que quer, está sempre brincando, brigando e enganando seus dois amigos, Quico e Chaves. Isso fica claro em um episódio, entre muitos, em que Quico chega com três moedas e Chiquinha propõe uma brincadeira que, segundo ela, seria da seguinte forma: as moedas seriam arremessadas uma de cada vez. As que fossem cara, ela ganharia. As que fossem coroa, o Chaves ganharia. Se fosse o contrário, Quico ganharia. Claro que ele nunca seria o vencedor, mas ele aceitou. Ela não engana somente seus amigos, engana também os mais velhos: Dona Florinda; a bruxa do 71, digo, Dona Clotilde; Professor Girafales e, até seu próprio pai, Seu Madruga.

Até aqui, tudo o que foi dito anteriormente não parece ser muito relevante. Entretanto, tendo como base teórica estudos de gênero e feminismo, Chiquinha se torna uma personagem muito importante. Para explicar o que foi dito, preciso primeiramente falar um pouco sobre feminismo e seus princípios ideológicos.

Na década de 1960, as feministas começaram a questionar idéias, imagens, a maneira como as mulheres eram representadas, etc. Segundo Elizabeth Grosz “Elas pareciam muito interessadas na inclusão das mulheres nos campos dos quais haviam sido excluídas, ou seja, na criação de representações  que permitiriam considerar as mulheres como iguais aos homens” (1995, p.85). Foram muitos os manifestos realizados em todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos, e a partir de 1970, com a publicação de A Política Sexual de Kate Millett, o movimento invadiu a academia, estabelecendo a critica literária feminista e criando as bases para que outras disciplinas incluíssem o gênero como categoria de análise.

Dentre alguns pontos que são questionados nessa linha de pensamento, Grosz enfatiza que, historicamente, tem havido “correlação e associação da oposição mente/corpo com a oposição entre macho e fêmea, na qual homem e mente, mulher e corpo, alinham-se nas representações” (2000, p.49).

Como dito anteriormente, Chaves é um seriado mexicano. No início dos anos 70, a população do México assistiu aos primeiros episódios do seriado. Em pouco tempo, o programa tornou-se uma febre no país. Um aspecto muito interessante é que as cores da roupa da Chiquinha são as mesmas utilizadas no símbolo maior do país, a bandeira: vermelha, verde e branca. Mas, qual é a relação entre a personagem e o feminismo?

A criação da personagem foi na mesma época em que as manifestações, as revoltas das feministas, principalmente nos Estados Unidos, estavam em alta. Tendo os mexicanos fácil acesso ao mundo norte americano, acredito e mostrarei que Chiquinha sofreu fortes influências ideológicas feministas.

Parto de uma teórica feminista, Judith Butler, para justificar minha análise. Para ela, “desconstruir o sujeito do feminino é liberar o termo num futuro de múltiplas significações, emancipá-lo das ontologias maternais ou racistas às quais esteve restrito e fazer dele um lugar onde significados não antecipados podem emergir” (1998, p.36), ou seja, é muito importante desconstruir a forma padrão de representações de gênero, especialmente do feminino. E a personagem em foco retrata exatamente essa ideologia. Como já dito, ela é uma menina muito esperta, malandra, ou seja, apresenta características tradicionalmente consideradas masculinas. Ela foge do modelo estabelecido culturalmente de que meninas de  sete, oito, nove ou dez anos devem estar concentradas nos estudos, estar sempre bem arrumadas usando lindos vestidos ou roupas enfeitadas, com o cabelo sempre bem escovado, etc.

Por se apresentar como esquisita, singular e talvez até feia, e por suas atitudes, sua maneira de viver, Chiquinha provoca um estranhamento por parte do público. Isso coloca em circulação um outro discurso sobre o feminismo, que pode ou não ser incorporado à vida de outras meninas. E esta é uma estratégia importantíssima para movimentos pela igualdade e pelo apreço à diferença. Conforme Grosz “deve-se recusar modelos singulares, modelos baseados num tipo de corpo como a norma pela qual todos os outros são julgados”. Nesse sentido, acredito que a criação da personagem tenha sofrido forte influência dos ideais feministas e que sua influência nas crianças possa abrir o universo das representações para formas menos fechadas e naturalizadas do feminismo.

 

REFERÊNCIAS:

BUTLER, J. Fundamentos contingentes: o feminismo e a questão do “pós-modernismo”. Cadernos Pagu, Campinas, n. 11, p. 11-42, 1998.

GROSZ, E. Corpos reconfigurados. Cadernos Pagu (Corporificando Gênero). Campinas, n. 14, p. 45-86, 2000.

______. ¿Qué es la teoría feminista? Debate Feminista, v. 12, p. 85-105, 1995.

JOLY, L; THULER, F; FRANCO, P. Chaves: foi sem querer querendo?. São Paulo: Matrix, 2005.

LOURO, G.L. (org.). O corpo educado. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

http://www.lachilindrina.com acessado em 05 de junho de 2005.