As representações do oral e seu ensino por professores em exercício e em formação

 

 

Denise Telles Leme Palmiere

(Universidade São Francisco)

 

 

Palavras-chave: oralidade, ensino de língua materna, gêneros textuais

 

Resumo

Este trabalho tem como objetivo investigar as representações sobre o oral e seu ensino por professores em exercício e em formação, procurando compreender as possíveis repercussões no agir pedagógico – atual ou futuro – desses professores. Para tanto, tomamos por base o quadro teórico e metodológico do interacionismo sociodiscursivo tal qual delineado por Bronckart (1997/1999) e Schneuwly (2004).

 

Introdução

 

Cada vez mais, é crescente o número de trabalhos – e até mesmo de programas e propostas curriculares oficiais - que apontam para a necessidade do ensino formal do oral na escola. Espera-se que o professor de língua desenvolva, em sala de aula, atividades específicas e sistemáticas com as diferentes formas de oralidade, de forma a levar o aluno a um maior domínio de seu funcionamento em situações reais de comunicação.

Nesse sentido, são vários os pesquisadores que enfatizam a importância do ensino específico e planejado da língua oral como, por exemplo, Milanez (1993), Geraldi (1996), Castilho (1998), Fávero (1999), Marcuschi (1998, 2002, 2004), Ramos (1997), Schneuwly (2004), Dolz e Schneuwly (2004), entre outros.

Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (Brasil, 1997 e 1998) reiteram essa visão: “(...) cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral”[1]. Os PCN não apenas recomendam o ensino da língua oral, como também propõem - a partir do conceito bakhtiniano de gêneros do discurso - uma prática pedagógica de formalização de usos planejados da fala. Objetivos, estratégias e sugestões de abordagem são propostos pelos PCN, embasados na diversidade de gêneros do oral e das situações de uso público da fala.

Não se pode negar, portanto, a existência de avanços concretos no tratamento do ensino de língua oral, seja nos estudos empreendidos por diferentes pequisadores, seja nas propostas curriculares oficiais. No entanto, esses avanços parecem ainda não ter chegado à sala de aula, apesar da linguagem oral estar bastante presente nas rotinas cotidianas do contexto escolar. Como apontam Dolz e Schneuwly (2004), a linguagem oral

“(...) não é ensinada, a não ser incidentalmente, durante atividades diversas e pouco controladas. Assim, como denunciam didatas, sociólogos, lingüistas e formadores de professores (...), o ensino escolar da língua oral e de seu uso ocupa atualmente um lugar limitado. Os meios didáticos e as indicações metodológicas são relativamente raros; a formação dos professores apresenta importantes lacunas.[2](DOLZ E SCHNEUWLY, 2004:149-150)

Marcuschi (2002), analisando o tratamento dado ao oral pelos livros didáticos de língua portuguesa, conclui que

“Claudicam a teoria, a terminologia e as observações empíricas. Os autores dos manuais didáticos, em sua maioria, não sabem onde e como situar o estudo da fala. A visão monolítica da língua leva a postular um dialeto de fala padrão calcado na escrita, sem maior atenção para as relações de influências mútuas entre fala e escrita. Certamente não se trata de ensinar a falar. Trata-se de identificar a imensa riqueza e a variedade de usos da língua.” (MARCUSCHI, 2002:23,24)

Esse autor salienta que a resistência ao ensino do oral é fruto da tradicional supremacia do ensino da linguagem escrita e de uma série de equívocos em relação às concepções de língua, fala e texto, que se podem ver estampados nos livros didáticos e currículos de ensino em geral.

É isso também o que se observa quando se consideram as várias reformas educacionais realizadas no país. A título de exemplo, no Programmas para os Jardins de Infância e para as Escolas Primárias, publicado em 1929, que normatizava o ensino infantil e primário da cidade do Rio de Janeiro, embora se recomendasse o ensino da “expressão oral”, esta aparecia circunscrita à variedade de prestígio, ou, ainda, como mera oralização do escrito, à serviço do ensino da linguagem escrita. Como aponta Vidal (1999) em relação ao conteúdo do referido documento,

“No primeiro ano [do ensino primário], enfatizava-se a expressão oral, incentivando o aluno a realizar narrações sobre elementos do seu cotidiano, como a vida de animais domésticos ou o trajeto de casa à escola. Caberia à professora corrigir erros de pronúncia, aperfeiçoar a dicção e introduzir as crianças nas regras sociais de conversação, principalmente ‘quanto à gesticulação exagerada ou imprópria, à entonação, à altura de voz e o princípio de não ser interrompido  o interlocutor[3]’ (...).” (VIDAL, 1999:347; grifos meus)

            Essa autora traz, ainda, a citação de um parágrafo do Programmas referente às prescrições do ensino da leitura que é bastante elucidativo: embora procure ressaltar a importância do trabalho com a oralidade, o que se percebe no trecho do documento é uma visão de língua como norma e a dependência do oral em relação à norma escrita:

“A aquisição da técnica de ler em geral se faz pela leitura em voz alta e a da técnica ativa será auxiliada pelas representações dramáticas. Estas e a recitação de quadras, poesias e histórias aprendidas de cor, a princípio pela audição, depois em livros ou coletâneas darão ao aluno o desembaraço necessário para falar em público com gesto comedido, expressão clara e correta, entonações adequadas e emprego apropriado das pausas, habituando-o também a puras formas do dizer, pois que as frases repetidas e memorizadas serão em pouco tempo assimiladas ao seu modo de expressar-se. Ir-se-á introduzindo gradativamente e intensificando seu hábito de leitura silenciosa, a mais usada no decorrer da vida.” (Programmas, 1929: 36, apud VIDAL, op. cit: 348; grifos meus)

Como se pode observar, todo o trabalho proposto com a oralidade nessa reforma educacional do início do século XX estava atrelado `a norma escrita da língua, correspondendo à oralização de um escrito, que se faz por meio da leitura em voz alta, da declamação, da recitação. De acordo com Vidal (op. cit.), esse trecho do Programmas, embora dedicado a enaltecer a importância do trabalho com a oralidade, acaba por recomendar o primado do ler silenciosamente. A passagem da leitura oral para a silenciosa - do oral para o escrito - significa, segundo a autora,   “mais que a mera aquisição de técnicas de leitura, representa uma elevação, um aperfeiçoamento do indivíduo para a vida – o cumprimento da função da escola.” (VIDAL, op. cit.: 348)

É importante ressaltar que a referida reforma educacional encontrava-se inserida no contexto de uma visão saussureana da linguagem, que privilegiava o estudo da língua vista como ‘código’ ou sistema lingüístico, em detrimento da fala e dos usos da linguagem, desconsiderando-se as condições efetivas de produção da linguagem.

Os anos se passaram e, com eles, vieram muitas outras reformas educacionais. Com relação especificamente ao ensino-aprendizagem de língua portuguesa, Rojo e Cordeiro (2004) chamam a atenção para o fato de que, nas últimas décadas, ocorreu no Brasil uma “virada discursiva ou enunciativa”[4], ressaltando-se a necessidade de se enfocar, em sala de aula, a língua em seu funcionamento e em seu contexto de produção, evidenciando mais as significações geradas/construídas do que as propriedades formais que dão suporte a funcionamentos cognitivos – o que também inclui, obviamente, a modalidade oral da língua.

Diante de todas essas considerações e da atual expectativa de que o professor desenvolva atividades sistemáticas com as diferentes formas de oralidade, surgem algumas indagações: como o professor de língua tem se colocado diante da questão do ensino do oral? Até que ponto suas concepções de língua e de oralidade ainda repercutem a redutora perspectiva saussureana de língua, desconsiderando as dimensões particulares do funcionamento da linguagem em relação às práticas sociais em geral? Como o professor se posiciona diante de uma suposta supremacia da escrita em relação à oralidade?

Entendemos que o ensino da oralidade está profundamente vinculado às representações que os professores têm do oral e de seu ensino, sendo de fundamental importância que tais representações sejam desveladas: para o professor, o que é a língua oral? Que tratamento ele considera que deva ser dado à oralidade em sala se aula? Que tratamento ele efetivamente tem dado?

Nesse sentido, a partir de uma pesquisa feita com alunos cursando graduação em Letras (sendo que alguns já atuam como professores), este trabalho tem como objetivo investigar as representações sobre o oral e seu ensino por professores em serviço e em formação, procurando compreender as possíveis repercussões de tais representações em seu agir pedagógico.

A base teórica que assumimos é a abordagem enunciativo-discursiva de Bakhtin (1953/1992), que considera que a língua é realizada por meio de enunciações, sendo decorrente das ações do homem nas suas interações sociais, em diferentes situações sócio-históricas. A partir dos pressupostos bakhtinianos, tomamos por base o quadro teórico do interacionismo sociodiscursivo tal qual delineado por Bronckart (1997/1999) e Schneuwly (2004). Nessa perspectiva, as unidades lingüísticas são consideradas como propriedades das condutas humanas, sendo estas analisadas como um agir significante cujas propriedades estruturais e funcionais são produto da socialização. Nesse sentido,  a linguagem é vista como uma prática, um agir; sendo da ordem do que habitualmente se chama de discurso, que se apresenta empiricamente sob a forma de textos (orais ou escritos). É no nível dos textos/discursos - manifestações empiricamente observáveis do agir comunicativo - que se manifestam as relações de interdependência entre as produções de linguagem e seu contexto social. 

Nessa perspectiva, assumimos, aqui, que as práticas de linguagem – sejam escritas ou orais - devem sempre ser consideradas em sua relação com os contextos sociais que orientam as opções lingüísticas do agente produtor.

 

O professor e suas representações do oral

 

A pesquisa foi realizada com 21 alunos de graduação em Letras (Licenciatura em Língua Portuguesa) em uma universidade privada do interior do estado de São Paulo, sendo 11 alunos do quarto semestre e 10 do sexto semestre. O curso em questão tem duração de 3 anos; assim sendo, os sujeitos aqui pesquisados encontram-se um pouco além da metade do curso ou já são concluintes da licenciatura. Dentre esses professores em formação, vários já se encontram em sala de aula, atuando como professores do ensino fundamental.

A esses professores em formação, foram apresentadas as três questões que se seguem, precedidas das seguintes orientações[5]:

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais, “(...) cabe à escola ensinar o aluno a utilizar a linguagem oral”. Essa pesquisa tem o interesse de investigar como você vê o ensino da linguagem oral. Assim, pede-se que você responda às seguintes questões:

 

1.      O que é, para você, a “linguagem oral”?

2.      Como você acha que dever ser o ensino da linguagem oral na escola?

3.      No caso de você já atuar como professor, como você tem trabalhado a linguagem oral com seus alunos?

 

Essas questões, como já anteriormente apontado, objetivavam desvelar as representações do oral para esses futuros – ou já atuantes – professores, bem como possibilitar algumas considerações a respeito de suas possíveis repercussões no agir pedagógico desses professores.

As respostas por eles fornecidas revelam, pelo menos, quatro concepções sobre o oral:

-         oral como fala;

-         oral como modalidade dependente da norma escrita;

-         oral como espaço do lúdico e do espontâneo;

-         oral em sua dimensão enunciativa multiforme.

Com relação à primeira das concepções acima elencadas, um grupo de respostas revela uma visão do oral reduzido ao conceito de fala. Assumimos, aqui, a distinção apontada por Marcuschi (2004:15) entre oralidade e fala: a primeira, considerada como prática social de uso da linguagem oral; a segunda, correspondendo ao contraponto formal de tal prática. Nesse sentido, um primeiro grupo de respostas deixa ver uma concepção do oral que o limita meramente a aspectos formais, descaracterizando-o enquanto prática social.

Seguem-se alguns trechos transcritos de algumas dessas respostas:

I. “Linguagem oral para mim é como as pessoas utilizam a fala, sendo considerada como um código a qual (sic)  cada lugar tem o seu.” (4o / 2 / P[6])

II. “A linguagem oral é toda a manifestação lingüística não escrita. Corresponde à fala.” (4o / 4 / A)

III. “A linguagem oral está relacionada à questão de expressar-se oralmente, ou seja, através da fala.” (4o / 3 / A)

IV. “Para mim a linguagem oral é a expressão oral de idéias, ou seja, forma de expressar pensamentos.” (4o / 5 / A)

V. “A linguagem oral é essencial, pois foi uma das (ou então a única) primeiras formas de comunicação da espécie humana e devemos saber utilizar essa linguagem para nos fazermos entender em nosso dia-a-dia.” (6o / 1 / A)

 

Nesse conjunto de respostas, o que se evidencia é que a representação do oral está calcada numa concepção tradicional de língua como expressão do pensamento ou, ainda, numa concepção estruturalista de língua como ‘código’ ou sistema lingüístico, mero instrumento de comunicação. Nessa perspectiva extremamente redutora, a oralidade corresponde à versão oral desse sistema de comunicação, capaz de  transmitir ao receptor uma mensagem, através da fala. Nessa concepção, desconsideram-se os usos da linguagem oral e as condições efetivas de sua produção. É importante destacar que tal representação do oral aparece essencialmente em respostas dadas por alunos que ainda cursam o quarto semestre de licenciatura (mais especificamente, por 6 deles - o que corresponde a um pouco mais da metade dos alunos pesquisados dessa série), constando em  apenas uma das respostas elaboradas por alunos do sexto semestre.

A segunda representação que se faz ver em nossos dados é a do oral como uma modalidade profundamente atrelada e dependente da norma escrita da língua, como se pode observar nos trechos que seguem:

VI. “A linguagem oral deve ser ensinada na escola na sua maneira mais formal, ou seja, deve se aproximar ao máximo da norma dita padrão; é certo que o falante deve se adequar a cada situação, mas sabendo falar de uma forma mais correta, também vai saber interagir em outras situações.” (4o / 8 / A)

VII. “(...) A linguagem oral é trabalhada em conjunto: eles (os alunos) perguntam o certo e usamos o dicionário para tirar as dúvidas. Construímos cartazes e afixamos para consultarem sempre que necessário. Quando surge alguma palavra ‘torta’, questionamos: “- Será que é assim? O que é isso?” E assim eles se autocorrigem.” (4o / 9 / P)

VIII. “(...) mesmo nos esforçando e policiando, não conseguimos falar sempre corretamente e empregando a língua perfeitamente. A linguagem oral é dinâmica e influenciada (bombardeada) por modismos e exigências”[7]. (6o / 10 / P)

 

Vê-se que o oral é percebido por alguns desses (futuros) professores como o espaço em que aparecem os “modismos”; cumpre à escola conservar “puro” esse espaço, aproximando-o ao máximo da norma padrão escrita. Qualquer “palavra pronunciada de forma torta” deve ser abolida. O dicionário – e os cartazes afixados nas paredes da sala de aula! – são tomados como o parâmetro para a oralidade; o ideal a ser atingido na oralidade advém da escrita. Assim, a segunda representação do oral para a qual apontam nossos dados é um oral analisado a partir da escrita, dependente dela, e circunscrito à estrutura formal escrita da língua, independentemente de seus usos e dos contextos sociais que orientam as opções lingüísticas do agente produtor. 

Tal visão encontra-se ancorada na equivocada concepção de língua como monolítica, homogênea, e invariável, em que não há espaço para a variação lingüística. Alguns desses professores desconsideram que a língua, como fenômeno social, é caracterizada pela heterogeneidade e variabilidade. Como bem ressalta Possenti (1996: 33-34), “todas as línguas variam, isto é, não existe nenhuma sociedade ou comunidade na qual todos falem da mesma forma.”  No entanto, esses professores, diante de qualquer coisa que não corresponda à norma-padrão escrita da língua portuguesa – a única considera “certa” ou “correta” -  abrem espaço para uma atitude de preconceito lingüístico, a despeito da forte tendência atual de se lutar contra as mais variadas formas de preconceito.

Em decorrência dessa visão do oral como profundamente dependente da escrita, quando esses alunos/professores fazem considerações sobre as atividades orais de linguagem que realizam ou que esperam realizar com seus futuros alunos, acabam por apontar atividades que são, na verdade, mera oralização da escrita, tais como: leitura em voz alta; interpretação oral e paródia de textos escritos; dramatização; recitação. Há, ainda, aqueles que confessam não priorizarem o trabalho com o oral. É o que se pode observar nas respostas abaixo:

IX. “O trabalho com a linguagem oral deve ser feito paralelo à escrita, através de leituras, seminários, aulas expositivas e teatros.”  (6o / 8 / A)

X. “Acho que todas as formas de expressão da língua partem de um bom treinamento em leituras.” (4o / 5 / A)

XI. “Leitura, pronúncia e participação dos alunos.” (4o / 7 / A)

XII. “Já realizei trabalhos com músicas, interpretações e paródias.” (6o / 10 / P)

XIII. “Os trabalhos que realizo são: recontar histórias, discutir elementos do texto, seja na estrutura ou no próprio aspecto temático que o texto traz.” (6o / 3 / P)

XIV. “Com meus alunos eu trabalho mais a escrita do que a linguagem oral.” (4o / 2 / P)

 

Uma terceira representação de oralidade encontrada é o oral como espaço do lúdico e do espontâneo:

 

XV. “O ensino da linguagem oral na escola deve ser de forma que o professor dê oportunidade aos seus alunos de se expressarem verbalmente, colocando suas emoções, opiniões e sentimentos.(...) Os alunos contam como foi o seu final de semana; opinam sobre determinado assunto, etc.” (4o / 10 / P)

XVI. “Tendo a discutir ao máximo um tema com os alunos, criando uma interação com os colegas.” (4o / 11 / P)

XVII. “A linguagem oral é todo tipo de comunicação feita oralmente, sem o compromisso de registros escritos; (...) é mais decompromissada de regras que a linguagem escrita.” (6o / 6 / A)

 

Esse grupo de respostas revela que, para alguns desses (futuros) professores, a concepção de língua falada coloca-se em oposição à de língua escrita, privilegiando um relação dicotômica entre ambas: a fala considerada espontânea, natural, distensa, enquanto a escrita, por outro lado, seria o espaço da norma de correção do português padrão e formal.

São vários os autores que têm contestado essa perspectiva tradicional da natureza fragmentada e dicotomizada da fala em relação à escrita, tais como Ong (1998), Olson e Torrance (1995), Marcuschi (1991, 2002, 2004), Rojo (1999), entre outros. Como aponta Marcuschi (2002),

“Não se trata de imaginar ou detectar diferenças ou semelhanças e sim relações dentro de um contínuo, pois não existem, entre fala e escrita, diferenças que perpassam todo o contínuo e que são essenciais, mas sim graduais e sempre multifacetadas. Tudo depende de qual escrita e de qual fala estamos tratando, afastando-se assim um olhar dicotômico sobre essa relação.” (MARCUSCHI, 2002: 30)

Finalmente, a quarta concepção de oral que aparece em nossos dados é o oral tomado em sua dimensão enunciativa multiforme. De modo distinto dos grupos anteriormente apontados, são vários os sujeitos de nossa pesquisa que, em suas respostas, apresentam uma interessante visão de oralidade considerada como prática de linguagem realizada em contextos sociais específicos. É o que se pode perceber, por exemplo, nos trechos como os que seguem:        

XVIII. “A definição de linguagem oral é muito mais complexa do que se imagina. Para compreendê-la, é preciso, antes de tudo, não confundi-la com a fala ou com a mera oralização da linguagem escrita. Também se faz necessário desmistificar que a linguagem oral é a modalidade oposta à linguagem escrita, já que os mecanismos que as separam delimitam uma linha bastante tênue. A linguagem oral pode ser percebida por meio das situações discursivas em que ela se realiza, isto é, através dos gêneros do discurso.” (6o / 2 / P)

XIX.  Linguagem oral “é o uso da língua falada nas diversas situações sócio-comunicativas (...). Sua eficácia se faz no momento de interação dos falantes (...). O ensino da linguagem oral é necessário na escola para que o aluno saiba adequar essa linguagem às diferentes situações, porém a escola não pode desconsiderar que esse sujeito já utiliza a língua oral desde seus primeiros passos.” (6o / 5 / A)

XX.  “São as manifestações de fala, seja uma conversa entre amigos, um debate, um seminário, entre outros.” (6o / 4 / P)

XXI. “É a linguagem oral, é o falado. Estão presentes na linguagem oral vários gêneros, como: bate-papo, argumentação, pergunta e resposta, aula expositiva, etc.” (6o / 7 / P)

 

Vê-se que, para esse grupo de professores, a oralidade é vista como fenômeno de textualidade em relação estreita com as situações de comunicação e sempre realizada por meio dos gêneros textuais.  Conseqüentemente, o ensino do oral é visto a partir da diversidade de gêneros e das situações de usos sociais da fala:

XXII. “O ensino da linguagem oral na escola não deve ser confundido com leitura em voz alta (que é mera oralização da escrita). O aluno precisa saber interagir socialmente por meio da linguagem oral e isso deve ocorrer com o ensino de gêneros orais. Vale ressaltar ainda que a linguagem oral deve ser ensinada não somente sob a ótica da produção, mas também da escuta (...). Como professora, tento mostrar que a linguagem oral deve ser dominada para diferentes situações de uso, realizando isso com o trabalho com os gêneros orais.” (6o / 2 / P)

XXIII “O ensino deve ser pautado na adequação do aluno às diversas situações comunicativas, mas nunca pensar que só o oral ensinado na escola é o que dá competência ao aluno. É direito do aluno e dever da escola ensinar que em uma entrevista de emprego usa-se uma linguagem que certamente será diferente da que eles usam com sua família.” (6o / 5 / A)

XXIV.  “Ensinar a linguagem oral na escola deve estar ligado com situações não corriqueiras como “bate-papo” ou falar com um conhecido ao telefone; mas se cabe à escola preparar o aluno para uma futura formação, então temos que buscar gêneros que o preparem para o mercado de trabalho.” (6o / 7 / P)

 

Tal perspectiva do ensino do oral está em consonância com o que é apresentado por Dolz e Schneuwly (2004) como o papel da escola com relação ao ensino do oral. Segundo esses autores,

“Já que o papel da escola é sobretudo o de instruir, mais do que o de educar, em vez de abordarmos os gêneros da vida privada cotidiana, é preciso que nos concentremos no ensino dos gêneros da comunicação pública formal. (...) O papel da escola é levar os alunos a ultrapassar as formas de produção oral cotidianas para os confrontar com outras formas mais institucionais, mediadas, parcialmente reguladas por restrições exteriores.” (DOLZ E SCHNEUWLY, 2004: 174,175)

É importante destacar que os (futuros) professores que apresentam essa representação de oralidade que leva em conta seus usos e as condições efetivas de produção são – quase que na totalidade – aqueles que se encontram no último semestre do curso de gradução.

Os resultados aqui apresentados permitem tecer algumas considerações a respeito do papel do curso de licenciatura na formação desses (futuros) professores, pelo menos no que diz respeito às suas concepções sobre o oral e seu ensino. É possível perceber que a concepção redutora do oral como “fala” ou como mero espaço da espontaneidade, bem como a visão inadequada de uma dicotomia entre oralidade e escrita, aparecem mais circunscritas aos alunos/professores que ainda se encontram no quarto semestre da licenciatura. Por outro lado, o que aparece em muitas respostas, independentemente da série em que o aluno se encontra, é a equivocada concepção de língua – escrita e oral - como homogênea e invariável e, conseqüentemente, a intolerância diante da variação lingüística. Com relação a esse aspecto, o curso parece ainda não ter provocado grandes repercussões sobre os alunos.

Diante de todas as nossas considerações, parece ser possível concluir que a formação profissional propiciada pelo curso de Letras aqui em questão tem contribuído de maneira significativa para a construção – ou mesmo para a ressignificação, no caso de alunos que já atuavam como professores antes de iniciarem o curso universitário – de uma adequada representação de oralidade e, conseqüentemente, de seu ensino. Espera-se, diante disso, que essa concepção do oral e de seu ensino possa, de fato, repercutir substancialmente na atuação desses sujeitos como professores de língua materna, levando seus alunos a um maior domínio das diferentes formas de oralidade em situações reais de comunicação.

 

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[1] Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998. p. 25.

 

[2] Embora as considerações desses autores digam respeito ao contexto da Suíça francófona, cabem perfeitamente para o ensino de português no Brasil.

[3] (Programmas, 1929: 35, apud Vidal, 1999).

[4] As autoras abordam especificamente o enfoque que é dado aos textos e a seus usos em sala de aula.

[5] Nossa pesquisa inspirou-se em pesquisa semelhante realizada por Schneuwly (2004: 130) com  professores-estudantes de Ciências da Educação no contexto do ensino de francês na Suíça francófona.

[6] Os números e letras que aparecem ao final de cada trecho correspondem, respectivamente: a) ao semestre do curso de Letras que o aluno está cursando; b) ao número de identificação atribuído a cada um dos participantes na pesquisa; c) P = se o sujeito já atua como professor; A = se ainda não atua como professor.

[7] Grifos meus.