SESSÃO DE COMUNICAÇÕES 41: PROFESSORES EM FORMAÇÃO

 

 

Questão de rima: professores parados, alunos...

a(  )travados  b(  )desmotivados c(  ) folgados

 

Daniela Bunn (UFSC)

Palavras-chaves: Formação.

Sujeito-criativo. Professor-criativo

 

 

Alunos cansados, desmotivados e rebeldes são facilmente encontrados nas salas de aula seja em escolas públicas, particulares ou mesmo nas universidades. São alunos que refletem a imagem de um ensino tradicional, ultrapassado e afastado do quotidiano dos jovens e adolescentes. Jogo com o título deste artigo, porém, infelizmente, a questão não é só de rima: se os alunos estão desmotivados, a culpa pode ser dividida, na maioria das vezes, entre os professores.

 

Os motivos que levam alguns professores a mostrarem indiferença em relação ao ensino e principalmente aos alunos são bem conhecidos: motivos econômicos, sobrecarga de trabalho e consequentemente cansaço e negligência na preparação das aulas. Esses fatores refletem diretamente nos alunos. Levanto uma grande questão: como formar um sujeito criativo (como prioriza a Proposta Curricular, 1998) sem, antes de tudo, ser um sujeito criativo?

 

Faço esse questionamento na posição de professora de língua estrangeira e orientadora de estágios de Português no curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina, baseada no atual convívio com cinco escolas da rede pública de Florianópolis (Ensino Médio e Fundamental). Dentre estas cinco escolas, escolhi um estágio em particular, realizado numa turma de primeiro ano do Ensino Médio, no Colégio Estadual Getúlio Vargas, para relatar como ser um sujeito criativo é importante para a formação do sujeito criativo, no caso o aluno. Esse exemplo mostra como o empenho das estagiárias pôde estimular uma classe a participar das atividades causando estranhamento simplesmente pela escolha de um material de apoio interessante e próximo do cotidiano do aluno. Um material bem escolhido e utilizado com criatividade é fator importante para prender a atenção do aluno e fazer com que ele participe ativamente da aula. Faz-se importante também exemplificar como a questão da oralidade foi abordada por essas estagiárias – questão esta, pertinente a este encontro sobre “Oralidade e Ensino”. 

 

Cabe questionar se os alunos de Letras são preparados para trabalhar a oralidade em sala de aula. Como um curso de licenciatura delega a algumas disciplinas a difícil tarefa de ensinar a ensinar. Durante três anos e meio o graduando em Letras é bombardeado por teorias e não imagina como usá-las em sala de aula. Pode-se inferir a partir do depoimento de muitos alunos que a licenciatura em Língua Portuguesa é insuficiente para abarcar as necessidades básicas do processo educativo.  Os alunos chegam esperançosos às aulas de Metodologia do Ensino procurando a chave mágica para resolver os problemas, mas existe uma grande lacuna entre a universidade e a sala de aula. O contato entre estas duas realidades distintas é curto, resume-se em média a oito aulas de observação e oito de prática (para cada estagiária). As constantes reformulações dos currículos universitários tentam sanar essa carência de contato, mas ainda falta muito para lançar ao mercado de trabalho um profissional realmente qualificado. O entrecruzamento da produção científica com a prática pedagógica torna-se, devido a essa falta de contato, um longo processo de deslizes, de erros e porventura acertos.

 

Após esta pequena digressão ressaltando problemas curriculares, torno ao mencionado estágio. As aulas do estágio de português (num total de 16h/a) transcorreram baseadas na temática “Cultura e estranhamento”, através da seleção de alguns textos como Os Ritos Corporais dos  Nacirema, A estranha linguagem dos namorados, de Drummond, e a Carta de Pero Vaz de Caminha. A intertextualidade também foi explorada a partir de Camões, Bocage, Arnaldo Antunes e através das músicas Monte Castelo de Renato Russo e Palavras Repetidas de Gabriel o Pensador. As estagiárias procuraram determinar o perfil dos alunos aplicando um questionário que forneceu importantes informações sobre estilo de vida de cada aluno, as preferências musicais, o gosto ou não pela leitura e pelas aulas de português.  A partir desses dados as estagiárias puderam desenvolver estratégias de trabalho e criar atividades que pudessem envolver o aluno, priorizando a formação de leitores e o estímulo à leitura.

 

Uma aula em particular foi muito proveitosa: as alunas fizeram uma performance explorando a oralidade. A performance foi realizada pelas estagiárias com curada entonação, pausa, expressividade no olhar, desenvoltura corporal e gesticulação contida. Houve exploração e interação com o ambiente, mesclaram-se metaforicamente o corpo, o som, o espaço, a textura. Após a leitura, um certo ar de petrificação pairou na sala, alunos mudos diante dos poemas de Bocage. Por que o silêncio, o choque, o riso contido, a cara feia, a rejeição? Cito um trecho do relatório ainda em construção que bem demostra a reação dos alunos:

 

Depois de um interminável intervalo nas aulas da Escola Getúlio Vargas, devido a semana de olimpíadas escolares e em seguida a quase uma semana de feriados e feriados e feriados, retomamos o conteúdo. E aqui se faz importante um comentário, os alunos se disseram saudosos das aulas “diferentes”, se verdade ou não somente eles poderão responder, cabe acreditar na verdade dos fatos.

Bom, neste dia trouxemos para a sala de aula, nada mais nada menos que Bocage, e pasmem, os alunos emudeceram.

Após dar as definições cabíveis da escola literária Arcadismo, suas características, principais autores e assim por diante; entreguei a “meus” alunos um poema bocagiano erótico, para análise e compreensão. Pedi então, para que fizéssemos a leitura como de costume, primeiramente em silêncio e após para o grande grupo. Já na leitura silenciosa notei suas caras de espanto, de questionamento, alguns risinhos camuflados por uma suposta timidez. Então, solicitei ao grupo que se prontificava a fazer a leitura. No princípio o silêncio, após alguns segundos de olhares baixos, faces rubras alguém levantou a mão, “eu leio professora”.

Fez-se a leitura, todos ouviram em absoluto silêncio, e confesso, se tivesse conhecimento desta “suposta timidez” de meus alunos, teria trazido antes esses poemas; sei que seria pelo menos ouvida com mais atenção. Ao término da leitura questionei-os, sobre a receptividade do poema, sobre a linguagem utilizada pelo poeta, sobre a época em que foi escrito; com o objetivo de fazê-los comparar a obra bocagiana com as letras das músicas que eles tanto apreciam na atualidade.

Quero crer que apesar do momentâneo silêncio que se fez nesta aula, os alunos apreciaram conhecer poeta tão singular, houve até quem pedisse outros poemas desse autor. E eu adorei, pois pude perceber que eles estão, em sua maioria, abertos para o diferente.

 

 

Segue o  SONETO DO MEMBRO MONSTRUOSO de Bocage:

 

 

Esse disforme, e rígido porraz

Do semblante me faz perder a cor:

E assombrado d'espanto, e de terror

Dar mais de cinco passos para trás:

A espada do membrudo Ferrabrás

De certo não metia mais horror:

Esse membro é capaz até de pôr

A amotinada Europa toda em paz.

Creio que nas fodais recreações

Não te hão de a rija máquina sofrer

Os mais corridos, sórdidos cações:

De Vênus não desfrutas o prazer:

Que esse monstro, que alojas nos calções,

É porra de mostrar, não de foder.

 

 

E O TATO de Arnaldo Antunes:

 

O olho enxerga o que deseja e o que não

Ouvido ouve o que deseja e o que não

                         (...)

Manteiga não se usa apenas pra passar no pão

                         (...)

O tato mais experiente é a palma da mão

 

                          (...)

O corpo não é templo, casa nem prisão

                          (...)

Velocidade se controla com respiração

                          (...)

O tato mais experiente é a palma da mão

 

 

            A seguir, outro trecho no qual a estagiária questionou sobre os poemas:

 

Passei então, para os comentários cabíveis ao poema, as “explicações” do por quê trazer estes poemas para a sala de aula?, das possíveis interpretações e pedi a “meus” alunos que comparassem o poema anterior, “Soneto do membro Monstruoso” de Bocage com o poema “O Tato” de Arnaldo Antunes, assim eles seguiram o restante da aula, produzindo ainda sob o efeito anestésico dos poemas acima mencionados.

 

 

            Dois pontos merecem atenção, a questão como a oralidade foi trabalhada e a ousadia de trazer Bocage para o Ensino Médio. O poema é uma aventura, como bem lembra Silviano Santiago:

 

o poema não é fácil nem difícil, ele exige – como tudo o que, na aventura, precisa ser palmilhado passo a passo. Não se avança sem contar com o desconhecido e o obstáculo. A escalada da leitura. As exigências para a leitura são as mais variadas e múltiplas, o poema que as nomeie com clareza e destemor. Porque, nomeando-as, abre-se a linguagem para a configuração do leitor.                                                               (1989, p. 53-54)

 

 

 Trabalhando com questões muito presentes no quotidiano do aluno (como a exploração do corpo), o professor vai além do trabalho em sala de aula (e da disciplina de português) e deixa alguns questionamentos aos alunos. João Wanderley Geraldi confirma:

 

                        Parece-me que o mais caótico da atual situação de ensino de língua portuguesa nas escolas de primeiro grau consiste precisamente no ensino para alunos que sequer dominam a variedade culta, de uma metalinguagem de análise desta variedade, com exercícios contínuos de descrição gramatical, estudo de regras e hipóteses de análise de problemas que mesmo especialistas não estão seguros de como resolver. (1996, p. 46)

 

 

             Valendo-se da oralização de poemas, o professor pode sair do lugar comum e estático de aulas de português tradicional. O aluno constrói sentidos, é questionado, desafiado. O importante é que o professor saia de trás da cadeira e participe ativamente da aula com os alunos, seja criativo, traga assuntos interessantes, leia poemas, estimule performances e realmente seja mediador do contato entre aluno-texto-mundo.

 

 

Referências

AGUIAR, Vera Teixeira de (Coord.). Era uma vez .... na escola: formando educadores para formar leitores. Belo Horizonte: Formato, 2001.

_________ & BORDINI, Maria da Glória. Literatura; a formação do leitor: alternativas metodológicas. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1988.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A estranha linguagem dos namorados. In: Boca de Luar. 1 ed. Rio de Janeiro: Record, s/d.

 

BAKHTIN, M.M. Estética da Criação Verbal. Trad. Do russo por Paulo Bezerra. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

ESTADO DE SANTA CATARINA. Língua Portuguesa. Proposta curricular de Santa Catarina. Florianópolis: Secretaria de Estado da Educação, 1998. p. 55-91. 

 

GERALDI, João W. O professor como leitor do texto do aluno. In: MARTINS, Maria H. Questões de linguagem. 5 ed. São Paulo: Contexto, 1996.

SANTIAGO, Silviano. “A permanência do discurso da tradição no modernismo”. In: Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 94 -123