A VIGILÂNCIA SOBRE OS CORPOS NO ESPAÇO ESCOLAR.

OS EFEITOS DE SENTIDO DO SORRIA VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO[1]

 

Cristina Zanella Rodrigues (UCPel)

 

 

O olho que tudo vê e controla

É desde a infância que se instaura a máquina de produção de subjetividade capitalística, desde a entrada da criança no mundo das línguas dominantes, com todos os modelos tanto imaginários quanto técnicos nos quais ela deve se inserir.

Felix Gattari

 

O mundo deste século XXI se transforma sofregamente diante de nossos olhos. Em nossa vida cotidiana somos assolados com imagens de violência: crimes, atentados, guerras, fome, corrupção, tráfico, só para citar alguns exemplos. As lentes filmadoras estão a postos para captar qualquer movimento que seja considerado relevante mostrar à sociedade. A par disso que nos chega através da mídia, há um movimento de disponibilização da imagem individual: espontaneamente milhares de pessoas expõem publicamente suas caricaturas em comunidades virtuais, orkuts, blogs, fotologs, etc.

Esse movimento, que denominei globalização da imagem, desencadeia um processo de naturalização do fato de estarmos a todo instante tendo nossa imagem capturada e disponibilizada para outros que não se fazem presentes factualmente. Aqui me refiro tanto ao fato de podermos nos tornar notícia e aparecer na mídia, ao fato de divulgarmos publicamente nossas caricaturas na Internet bem como ao fato de sermos observamos diariamente por câmeras de vigilância que estão presentes nos mais variados espaços públicos.

Assim, a vigilância feita por câmeras filmadoras, encontradas em toda a sorte de lugares tornou-se um fato “natural” em nossa vida. Os diferentes contextos em que aparecem encerram em si um cabedal de objetivos a serem alcançados em prol da ordem. A escola é um desses lugares. Hoje é comum, em seu espaço, o uso de tecnologias de poder que controlam continuadamente as atitudes dos sujeitos. Com base na teoria da Análise de Discurso de Pêcheux, busca-se mostrar como o controle e a vigilância constantes sobre o corpo fazem parte do cotidiano das instituições escolares que historicamente vêm adotando práticas opressoras. Na realidade, o uso dessa tecnologia de poder materializa, através do discurso, práticas de coação que exercem um trabalho de manipulação sobre o corpo, impondo-lhe a docilidade e a submissão.

Para isso, observamos o enunciado Sorria você está sendo filmado, objeto de análise deste trabalho, contrapondo-o a discursos correlatos que circulam em outros espaços. Partimos da hipótese de que esses enunciados, embora escritos, aproximam-se da oralidade e que tal estratégia procura produzir um efeito de redução do distanciamento entre o locutor (oculto) e interlocutor, acarretando implicações de ordem discursiva relativas ao poder que é exercido sobre os sujeitos.

A presença do cartaz denota que o corpo é vigiado e monitorado a todo instante. E aqui ele é entendido como objeto e alvo das relações de poder através da disciplina institucional, que se dá, em grande parte na escola, por meio dos regulamentos e das práticas escolares. É o corpo dócil, aquele que “pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.” (Foucault, 1987, p.117).  Esse processo de submissão em prol da utilidade e conformidade corporal é histórico e, segundo o filósofo, intensificou-se a partir do século XVII quando o corpo deixou de ser desígnio do suplício e passou a ser visto como elemento de submissão. Deixou-se de procurar a força inata e a valentia individual para se fabricar uma fisionomia-objeto de controle mediante as práticas de coerção que exercem o trabalho de manipulação sobre o corpo. Daí que nasce a mecânica de poder que acaba por definir como se pode ter domínio do corpo para que se faça o que e como se quer. Assim, a disciplina fabrica corpos dóceis.

As câmeras de vigilância, no espaço escolar, seriam então tecnologias de poder a serviço da disciplina, um exemplo de materialização do poder hábil de controlar as intervenções do corpo para mantê-lo no seu lugar, a concretização de um conjunto de “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (FOUCAULT, 1987, p.118).

Assim, é o processo de disciplinamento no/do corpo um dos fatores que vão influenciar na constituição da subjetividade: ela é construída ideologicamente conforme dada conjuntura sócio-histórica. As condições de produção nas quais se desenvolve a disciplina é que vão constituir o discurso e determinar a posição que deve e pode ocupar o sujeito naquilo que diz.

 

Escola e o processo de subjetivação através da disciplina

 

A escola deveria ser o ambiente no qual se produz a cidadania emancipatória “definida como a construção competente da autonomia do sujeito histórico”, conforme nos diz Pedro Demo (2002, p.12). Acrescenta o autor que a economia moderna competitiva depende sobremaneira da educação de qualidade, afinal a qualificação dos recursos humanos não pode mais ser alcançada por treinamentos ou ensino reprodutivo – “o trabalhador precisa aprender a aprender e a saber pensar” (DEMO, 2002, p. 13) - pois é este o trabalhador que dá lucro conforme a economia capitalista.

Mas essa “qualidade total” apresenta-se como uma faca de dois gumes: se de um lado procura-se o crescimento inovador, de outro forja os processos educativos de qualidade na medida que se instituem formas de aperfeiçoamento gerencial e planejamento estratégico. A escola deixa de ser espaço para inovação de saberes para ser gerenciadora de saberes. Por isso, ao existir câmeras no espaço escolar, percebe-se que tal controle transforma a escola em administradora de sentidos e não otimizadora de pensamento crítico.

A utilização de filmadoras no ambiente educacional denota claramente a intenção de controlar e punir aqueles que desobedecem aos regulamentos disciplinares da escola. Assim, a disciplina fabrica corpos dóceis, pois ela “aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência)”, conforme Foucault (1987, p. 119).

É a escola se rendendo à ideologia capitalista, ou seja, é a escola adotando os mesmos princípios e métodos administrativos vigentes numa empresa. É a educação adotando uma posição coativa que aceita o conhecimento inovador só se ele for lucrativo e servir aos interesses capitalistas, pois, de acordo com Foucault “se a expressão econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada” (1987, p. 119).

 

Uma contradição: repetição ou ruptura?

 

Para a análise discursiva do enunciado “Sorria você estão sendo filmado” foi feita, numa primeira etapa, a análise da materialidade lingüística e dos processos de enunciação que fornecem pistas quanto ao modo como as marcas lingüísticas se relacionam no texto. Num segundo momento, procurou-se chegar aos possíveis efeitos de sentido que remetem para certas posições-sujeito que dominam a prática discursiva em questão, suas condições de produção e seus efeitos metafóricos, levando em conta a historicidade e a subjetividade.

O primeiro aspecto a ser considerado refere-se ao fato de que todos os verbos do enunciado aparecem no tempo presente, não o tempo cronológico mas o denominado tempo lingüístico. É aquele que no discurso instaura um agora, que é o fundamento das oposições temporais da língua. Esse agora  é o hoje e pressupõe uma anterioridade e uma posteridade - o ontem e o amanhã, isto é, diz respeito a um acontecimento em relação ao discurso. Para Fiorin “o agora é reinventado a cada vez que o enunciador enuncia” (2001, p.142).

Daí, segundo o autor, a especificidade do tempo lingüístico. Ele se ordena no momento da enunciação e é gerado no discurso, ou seja, o agora é gerado pelo ato de linguagem, pois é ela que “propicia ao homem a experiência temporal, na medida em que só quando o tempo é semiotizado pode o ser humano aprendê-lo e medi-lo.” E a singularidade do tempo lingüístico está ligada a dois pontos: (i) “seu eixo ordenador e gerador é o momento da enunciação” e (ii) “está relacionado à ordenação dos estados e transformações narradas no texto” (FIORIN, 2001, p.139).

Dessa singularidade decorre existirem dois sistemas temporais na língua: o sistema enunciativo que se refere ao momento da enunciação e o sistema enuncivo que diz respeito ao momento de referência instalados no enunciado. O momento da enunciação é o eixo de ordenação temporal da língua, por isso a ele aplicamos a categoria de concomitância e não-concomitância e obtemos três momentos de referência: concomitante, anterior e posterior ao momento da enunciação. O momento do acontecimento é estabelecido em relação aos diferentes momentos de referência. No segmento analisado, o momento de referência é concomitante ao momento do acontecimento, dando a idéia de continuidade pelo uso do tempo presente, pois o momento de referência “é um sempre implícito”, conforme Fiorin (2001, p. 151).

O primeiro verbo do segmento analisado – “Sorria” - está no imperativo afirmativo, modo verbal que encerra idéia de ordem. Entretanto, não se espera provocar um sorriso, mas sim um “bom” comportamento. O imperativo, nesse sentido, mesmo estando presentificando a ação, tem valor de futuro porque ele exprime uma ação que está por realizar-se, reforçando a idéia de ação continuada porque pode estar antecipando e tentando suspender uma reação adversa por parte de quem está sendo filmado.

O segmento seguinte é constituído de uma perífrase verbal – “está sendo filmado” -, e enquadra-se no presente durativo, pois passa a idéia de continuidade. O momento de referência (MR) é o tempo de duração no qual se desenvolvem as atividades escolares e o momento da enunciação (ME), por se tratar de um cartaz afixado na parede, é o mesmo do MR, ou seja, a enunciação se dá durante o período das atividades dentro da escola.

Assim, a idéia de continuidade (duratividade), presente tanto no imperativo quanto na perífrase verbal, apontam para o controle e vigilância constantes sobre os corpos dos sujeitos da comunidade escolar. A formulação encerra então um efeito de sentido que remete para uma posição-sujeito que prima pelo cumprimento da ordem, ou seja, o sujeito observado assume uma posição de docilidade em relação ao fato de estar sendo vigiado. Pois em seu discurso estão relacionados outros dizeres, ou seja, tudo o que já se disse sobre imagem, violência, vigilância, disciplina, segurança, prevenção associado ao que se diz sobre a escola, a educação, a construção de conhecimento.

Outra marca lingüística analisada diz respeito ao agente da passiva. Identificamos que o “você” é o sujeito paciente, ou seja, ele recebe tanto a ação do imperativo “Sorria” quanto da locução verbal passiva “está sendo filmado”. Embora o agente da passiva não apareça, pois foi omitido, alguém está sendo filmado por outro alguém. Esse outro assume uma posição-sujeito na qual é permitida a utilização de tecnologias de poder para tornar visível sobre quem os meios de coerção se aplicam.

Essa omissão do sujeito observador é providencial pois passa a idéia da onipresença do olho que tudo vê, mas não é visto. Esse lugar da onde fala o sujeito oculto lhe permite assumir uma posição-sujeito em uma Formação Discursiva (FD) que lhe outorga poderes maiores do que o de vigiar, uma vez que a imagem denuncia a contravenção às regras escolares ao mesmo tempo em que serve de prova irrefutável da indisciplina cometida – é transformação sumária do suspeito em culpado.

Entretanto, no que diz respeito à FD é importante salientar que ela determina aquilo que pode e deve ser dito, a partir de uma posição em dada conjuntura. Ocorre que não se pode pensar em FD como um bloco homogêneo e fechado. Nela interagem discursos outros que remetem a outras FDs. Nela ocorrem posições-sujeito outras que tomam o mesmo caminho. Assim, é a “ideologia [...] juntamente com o sujeito, que é tomada como princípio organizador da formação discursiva”, como explica Indursky (p.4, 2005). Podemos, então, dizer que as posições-sujeito de que se tratam nesse contexto de vigilância no espaço escolar, fazem parte de uma FD na qual são dominantes os discursos da disciplina, da segurança, do medo que remetem para uma Formação Ideológica (FI) capitalista, na qual o processo de subjetivação se dá através de mecanismos que visam o assujeitamento dos indivíduos.

 

Um outro enunciado, um outro efeito de sentido, uma mesma ideologia

 

Até aqui tratamos do enunciado “Sorria você está sendo filmado” presente no espaço escolar. Apresento, então, outra formulação que encerra um outro efeito de sentido. Trata-se de uma formulação coletada de um cartaz encontrado em vários lugares da cidade. É a propaganda de um curso de Português para quem pretende fazer concurso, aperfeiçoar-se em redação para vestibular, etc. Enfim, é um local de estudos da Língua Portuguesa diferente da escola. O objetivo não é a construção de conhecimento crítico, mas sim a prestação de um serviço, o preenchimento de uma lacuna no mercado educativo, a língua portuguesa ensinada com o objetivo de aprovação em processos seletivos e concursos.

O enunciado é o seguinte: “Aulas filmadas, confira!”. Para a análise tomaremos as mesmas posturas metodológicas adotadas no estudo do enunciado anteriormente citado. No primeiro segmento, “Aulas filmadas”, percebemos a presença do substantivo “Aulas” e do predicado “filmadas”. O que ocorre é a predicação das “Aulas” inferida pela elipse do verbo ser, ou seja, poderíamos dizer “As aulas são filmadas”. O uso do verbo ser, nesse sentido, remete para o que Fiorin denomina “presente pontual, quando existe coincidência entre MR e ME” (2001, p. 149). O presente pontual indica, conforme o mesmo autor, “estados ou transformações que ocorrem no momento de referência presente [...]” no caso, esse momento é aquele em que transcorre a aula. Não ocorre aqui o mesmo efeito sentido do “você está sendo filmado”. Este se enquadra no presente durativo e passa a idéia de vigilância constante sobre a corporeidade, aquele condiz com o presente pontual - enseja a impressão de que se quer filmar a aula no espaço de tempo definido em que ela transcorre.

Porém, em ambos os casos ocorre o mesmo processo de omissão do agente da passiva. No caso do “Sorria você está sendo filmado” o agente que promove a ação de filmar é omitido e o sujeito observado é claramente exposto: é “você”. Da mesma forma, no segundo caso, ocorre a supressão do agente, pois as “Aulas são filmadas por alguém”, mas o objeto filmado é “aula”, mesmo que o sujeito dela faça parte. Percebe-se, então, que a omissão do agente da passiva que ocorre em ambas formulações remete para uma FD condizente com a FI capitalista, na qual a subjetividade é construída mediante mecanismos que visam o assujeitamento dos indivíduos, uma vez que oculta aquele que tem o poder de observar mas não ser observado.

O segmento seguinte, “confira!” é constituído por um verbo no modo imperativo. Entretanto, aqui o imperativo não encerra valor de futuro, como no caso do “Sorria você está sendo filmado”, pois não procura antecipar uma ação. Ademais, ele não aparece no início da formulação, e sim no final o que remete para um efeito de sentido mais próximo de um convite do que de uma ordem. O sujeito que sofre a ação do imperativo “confira” não é coagido a efetivamente comparecer no curso e apreciar as aulas que são filmadas. Portanto, o efeito de sentido não remete para uma FD condizente com a vigilância constante sobre a corporeidade. Aqui se assume uma posição-sujeito condizente com uma FD na qual discursos do comércio, da publicidade, da propaganda pretendem convencer o sujeito a se tornar consumidor.

Esses discursos constituem a memória discursiva, ou seja, esses enunciados que não estão ditos, mas constituem aquilo que é dito, “aquilo que fala antes, em outro lugar” e “que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma de pré-construído”, conforme Orlandi (2003, p.31), determinam o que pode e deve ser dito em determinadas condições de produção. Portanto, a presença de câmeras filmadoras em diferentes espaços destinados ao ensino e aprendizagem reforçam a idéia de que a ordem capitalista cria representações, fabricando modos de relações humanas no que diz respeito a como se estuda, como se é ensinado, como se trabalha. E nós aceitamos isso como natural, porque partimos do pressuposto de esta é a única ordem possível no mundo, que não pode ser alterada sob pena de impregnar a vida social organizada.

 

 

Discurso não libertário

 

Através da análise do segmento “Sorria você está sendo filmado”, encontrado ao lado de câmeras filmadoras presentes no espaço escolar, chegamos à conclusão que a idéia de duratividade, presente no imperativo e na perífrase verbal, remete para o controle e vigilância constantes sobre o corpo – ação peculiar de uma instituição de ensino que adota práticas opressoras. Numa possível paráfrase teríamos “Comporte-se você está sendo vigiado”. O uso dessa tecnologia de poder acaba por materializar, através do discurso, práticas de coação que exercem um trabalho de manipulação sobre o corpo, que constituem a sujeição de suas forças e que lhes impõem docilidade.

Não se trata aqui, em última instância, de atacar a escola enquanto instituição de poder, mas sim de analisar os discursos correlatos a uma forma de poder que se exerce sobre os sujeitos em sua vida escolar. Até porque o fato de existirem processos de disciplinamento demonstra justamente que os sujeitos se insurgem e que muitas vezes acabam por criar alternativas para burlar o sistema de observação constante. É melhor investir num modelo de educação que possibilite ao indivíduo constituir-se como sujeito de sua própria existência do que intensificar práticas de coação mediante incessante vigilância.


Referências Bibliográficas

 

DEMO, Pedro. Pesquisa e construção de conhecimento. Metodologia científica no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.

 

FIORIN, José Luiz. As astúcias da Enunciação. As categorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2001. (p. 127 – 162).

 

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. História da violência nas prisões. 30ª ed. Petrópolis: Vozes, 2005.

 

ORLANDI, Eni. Análise do Discurso. Princípios & Procedimentos. 5ª ed. Campinas, SP: Pontes, 2003.

 

INDURSKY, Freda. Formação Discursiva: ela ainda merece que lutemos por ela? In: Seminário de Estudos em Análise do Discurso. o campo da análise do discurso no brasil: mapeando conceitos, confrontando limites, 2., 2005, Porto Alegre. Disponível em: <http://www.discurso.ufrgs.br/sead/doc/freda.pdf>. Acesso em 12 de novembro de 2005.

 



[1] Este trabalho origina-se do projeto de pesquisa “Corpos Discursivos no espaço escolar”, cujo objetivo é investigar as diferentes práticas discursivas, relativas ao corpo, que se efetivam nas instituições escolares.