A ORALIDADE NO GÊNERO NOTÍCIA DE JORNAL: TEXTUALIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DISCURSIVO

 

Cristiano Egger Veçossi (UFSM) [1]

(Cristiano_letras@mail.ufsm.br)

RESUMO:

 

Este artigo objetiva apresentar o estudo da notícia de jornal enquanto gênero discursivo notadamente polifônico. Centramos nossa atenção, especificamente, nas ocorrências de discurso direto, as quais, retextualizadas a partir dos enunciados orais produzidos pelos atores sociais relacionados ao fato noticiado, pretendem criar o efeito de sentido de que se está relatando as falas realmente proferidas. A análise das notícias evidencia o discurso direto como a estratégia mais recorrente da inserção do oral no texto noticioso.

   

PALAVRAS-CHAVE: Gênero notícia de jornal, discurso direto, oralidade.

 

1 INTRODUÇÃO

 

No dia-a-dia, nas diversas atividades nas quais nos envolvemos, estão sempre presentes os gêneros discursivos. São eles que permitem que se estabeleçam as mais variadas relações interpessoais. Segundo Bakhtin (1997: 279), um gênero é composto por três elementos básicos: conteúdo (temático), estilo e construção composicional. O conteúdo, conforme o autor, diz respeito às relações de sentido depreensíveis a partir do enunciado. O estilo compreende as seleções de ordem lexical, fraseológica e gramatical feitas pelo enunciador. Por fim, destaca-se, na caracterização de um gênero discursivo, a forma como ele está disposto.

Neste artigo, propomos uma análise do gênero notícia de jornal, pertencente ao domínio discursivo jornalístico. Pretendemos examinar, especialmente, as ocorrências de discurso direto no texto noticioso, com o objetivo de percebermos de que modo certos traços mais freqüentes na oralidade se manifestam no texto escrito.

Cabe ressaltar que, na notícia, há um “eu” que se responsabiliza por esse enunciado. No entanto, esse “eu” traz para o seu texto outras vozes (outros enunciados), constituindo um todo polifônico. A inserção dessas vozes no texto da notícia se dá, conforme Marcuschi (2004), por meio de um processo de retextualização, uma vez que o discurso relatado, presente nela, advém de depoimentos colhidos oralmente pelo jornalista. Aqui recorremos a Maingueneau (2002), o qual faz uma análise das diferentes formas através das quais se pode relatar o discurso alheio. Interessa-nos ver como é feita, na notícia, a articulação do discurso direto ao relato, a agregação ao texto escrito de traços mais comumente encontrados na fala oral, que intenções o jornalista, produtor da notícia, tem com isso e como essas operações contribuem para a construção do sentido global do texto.

 

2 REFERENCIAL TEÓRICO

 

Inicialmente, convém explicitarmos o que diz Bakhtin (1997: 284) acerca dos gêneros discursivos:

 

Uma dada função (científica, técnica, ideológica, oficial, cotidiana) e dadas condições, específicas para cada uma das esferas da comunicação verbal, geram um dado gênero, ou seja, um tipo de enunciado, relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico.

 

A partir da definição apresentada por Bakhtin, percebemos a estreita ligação existente entre os gêneros e a sociedade. O homem ordena as suas atividades, nas mais diferentes situações comunicativas, em função dos diferentes gêneros. Desse modo, o leitor vê claramente que há diferença entre, por exemplo, uma receita de bolo e uma notícia de jornal. Isso porque, como argumenta Pinheiro (apud Meurer e Motta-Roth, 2002: 260), “o gênero é uma instância que determina a leitura de um texto desde o ponto de vista de sua forma e de seu conteúdo”.

Nesse sentido, Bakhtin (1997: 279) assinala que “cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados sendo isso que denominamos gêneros do discurso”.

Quanto ao que Bakhtin chama de “esfera de utilização da língua”, cabe aqui destacar o que diz Marcuschi (In: Dionísio, Machado & Bezerra, 2002: 23-24) sobre o que se denomina domínio discursivo:

 

Usamos a expressão domínio discursivo para designar uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana. Esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. Do ponto de vista dos domínios, falamos em discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso, etc., já que as atividades jurídica, jornalística ou religiosa não abrangem um gênero em particular, mas dão origem a vários deles. [...]

 

No domínio discursivo jornalístico, enquadram-se gêneros como nota, editorial, artigo de opinião, reportagem e notícia, dentre outros, os quais não são encontrados em outras esferas de produção discursiva.

A notícia, gênero ao qual dispensamos atenção neste artigo, caracteriza-se, do ponto de vista da estrutura, conforme Lage (1993: 16), como “o relato de uma série de fatos a partir do mais importante ou interessante; e de cada fato, a partir do aspecto mais importante ou interessante”.

Bakhtin (1997: 281), em seus escritos sobre os gêneros discursivos, assinala que existem gêneros de discurso primários e secundários. Os gêneros primários do discurso, segundo o autor, fariam parte de eventos comunicativos nos quais predomina a oralidade. Os secundários seriam gêneros mais complexos, uma vez que “absorvem e transmutam os gêneros primários (simples), que se constituíram em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea”.

Considerando que todo dizer é, por natureza, polifônico, Bakhtin (1997: 316) esclarece que os enunciados de outrem podem se inserir no nosso enunciado de diferentes maneiras:

 

[...] podemos inserir diretamente o enunciado alheio no contexto do nosso próprio enunciado, podemos introduzir-lhe apenas palavras isoladas ou orações que então figuram nele a título de representantes de enunciados completos. Nesses casos, o enunciado completo ou a palavra, tomados isoladamente, podem conservar sua alteridade na expressão, ou então ser modificados [...]; também é possível, num grau variável, parafrasear o enunciado do outro depois de repensá-lo, ou simplesmente referir-se a ele como a opiniões bem conhecidas de um parceiro discursivo; é possível pressupô-lo explicitamente; [...]

 

  

Desse modo, podemos perceber que, na notícia, ocorre a reunião de enunciados pertencentes a diferentes enunciadores. Muitas vezes, além da voz do jornalista (produtor do texto), são inseridas vozes alheias. No entanto, os depoimentos dos atores sociais envolvidos no fato, tão freqüentes no texto da notícia, são, em primeiro momento, colhidos oralmente e, somente depois, passam a ser textualizados. Nesse sentido, Duarte (In Fonseca et alii, 1994: 83), ao trabalhar a relação entre oralidade e escrita, afirma que, na transformação de textos orais em escritos, manifesta-se o problema da “reprodução do discurso no discurso”, uma vez que, segundo a autora, o que foi efetivamente pronunciado tem de ser direta ou indiretamente relatado, e isso ocorre com maior ou menor fidelidade.

Marcuschi (2004: 46-47), em um estudo no qual relaciona oralidade e escrita, esclarece que a retextualização (termo utilizado para designar a atividade através da qual se passa da fala à escrita) não se dá naturalmente. Segundo o autor,

 

Trata-se de um processo que envolve operações complexas que interferem tanto no código como no sentido e evidenciam uma série de aspectos nem sempre bem-compreendidos da relação oralidade-escrita. Assim, para evitar mal-entendidos, faz-se necessária uma observação preliminar em relação ao que está em jogo nessas atividades. Em hipótese alguma trata-se de propor a passagem de um texto supostamente “descontrolado e caótico” (o texto falado) para outro “controlado e bem-formado” (o texto escrito). Fique claro, desde já, que o texto oral está em ordem na sua formulação e no geral não apresenta problemas para a compreensão. Sua passagem para a escrita vai receber interferências mais ou menos acentuadas a depender do que se tem em vista, mas não por ser a fala insuficientemente organizada. Portanto, a passagem da fala para a escrita não é a passagem do caos para a ordem: é a passagem de uma ordem para outra ordem.

 

Em seguida, o autor (2004: 53-55) estabelece algumas variáveis, relevantes para o processo de retextualização. A primeira delas, o propósito ou objetivo da retextualização, diz respeito aos diferentes níveis de linguagem que os texto virão a ter em virtude da variedade de finalidades com as quais estejam relacionados. Nesse sentido, é importante lembrar que, na notícia, quando se retextualizam as falas dos atores sociais envolvidos, as quais são originalmente orais (e aqui nos referimos especificamente ao discurso direto), leva-se em conta um dos objetivos básicos do jornalismo: passar uma imagem de objetividade. No entanto, no caso da notícia, durante a atividade de retextualização, omitem-se certas marcas próprias da fala oral (os marcadores conversacionais), o que pode ser entendido como uma tentativa de imprimir certo grau de concisão ao texto, intuito corrente nos gêneros pertencentes ao domínio jornalístico.

Aqui entramos na segunda variável apontada por Marcuschi: a relação entre o produtor do texto original e o transformador. Segundo o autor, quando uma pessoa que não o próprio autor do texto oral faz o processo de retextualização, ocorre que esta pessoa acaba tendo mais respeito pelo “original” e então efetua menor número de mudanças no conteúdo, embora realize algumas mudanças na forma. No caso da notícia, no processo de retextualização, muitos dos marcadores conversacionais, característicos da oralidade, são omitidos.  No entanto, algumas palavras e expressões, bem como certas repetições que denotam a aproximação com a fala oral são, nos fragmentos em discurso direto, mantidos, o que provoca o efeito de que houve fidelidade no processo de retextualização.

Quanto à relação tipológica entre o gênero textual original e o gênero da retextualização, Marcuschi diz que a transformação de um gênero textual oral para o mesmo gênero escrito produz modificações menos drásticas do que quando ocorre mudança de gênero. No caso dos depoimentos acrescentados ao texto da notícia como discurso relatado (e aqui pensamos mais uma vez no discurso direto), acreditamos que estes, originalmente, façam parte do gênero “entrevista”, uma vez que o jornalista os obtém por meio de perguntas feitas a pessoas que tenham algum tipo de envolvimento com o fato relatado. Assim, embora não haja por completo mudança de gênero, ocorre a inserção de um gênero oral (“a entrevista”) em outro escrito (“a notícia de jornal”), no qual se inserem outras vozes, resultando num todo polifônico (o texto noticioso). Quanto à polifonia no gênero notícia de jornal, convém observarmos o que diz Cunha (In: Dionísio, Machado & Bezerra, 2002: 179): “a notícia é uma espécie de relato, constituída de fragmentos de discursos, de modo que se suprimíssemos as falas alheias, não restaria quase nada”.

Por fim, Marcuschi elenca os processos de formulação típicos de cada modalidade como uma das variáveis que diferenciam a língua falada da escrita. Quanto a isso, o autor assinala que, na modalidade escrita, é possível revisar um texto sem que o receptor da versão final deste fique sabendo que houve determinadas correções. No caso da fala, as correções feitas no texto oral são percebidas pelo receptor, haja vista que o produtor da fala pode, no máximo, fazer uso da metalinguagem para corrigir-se e, nesse caso, a correção continuará fazendo parte do texto final.  Assim, no caso da notícia, geralmente são apagadas as marcas metalingüísticas próprias da fala oral, no sentido de que o texto final (no caso, as passagens em discurso direto) forme um todo coeso.                        

Como se sabe, o discurso direto não é o único meio de incluirmos outras vozes em um texto. Podemos introduzi-las, por exemplo, através do discurso indireto, ou indireto livre. No entanto, o efeito de sentido obtido com esses diferentes modos de inserção do discurso alheio não é o mesmo. A inserção da voz de outrem, em forma de discurso direto, no texto noticioso, é marcada tipograficamente por meio de aspas, antes e depois do enunciado alheio ou este é antecedido por um travessão. Com isso, o leitor, diante de um fragmento textual entre aspas ou precedido por travessão, tem a impressão de que a fala relatada é uma cópia fiel do enunciado produzido pelo enunciador citado.

 Maingueneau (2002), ao trabalhar com textos pertencentes aos domínios jornalístico e publicitário, faz um estudo pormenorizado acerca das formas através das quais se pode relatar o discurso alheio. O autor estabelece, inicialmente, uma distinção entre o que ele chama de discurso citante e discurso citado. No texto noticioso, o enunciado jornalístico faria parte do discurso citante, enquanto que ao discurso citado corresponderiam as falas dos atores sociais envolvidos no fato noticiado, trazidas para o interior do texto. Assim, conforme Maingueneau (2002: 140),

 

[...] o discurso direto (DD) não se contenta em eximir o enunciador de qualquer responsabilidade, mas ainda simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante e a do discurso citado. [...]

 

 

 Não é difícil compreender o porquê de o jornalista recorrer constantemente ao discurso direto como forma de relatar as falas de outrem. Conforme Maingueneau (2002: 142), ao optar pelo discurso direto como modo de discurso relatado, o produtor do texto leva em consideração o gênero de discurso que pretende produzir. Segundo o autor, através do discurso direto, pretende-se passar ao leitor a idéia de que se está relatando palavras realmente proferidas (e, com isso, marcar objetividade, seriedade) ou então se utiliza o discurso direto porque o enunciador citante (no caso da notícia, o jornalista responsável) pretende se distanciar do que está sendo expresso pelo enunciador citado, ou deseja expressar sua posição respeitosa frente ao dito. No entanto, adverte-nos o teórico francês:

 

De toda maneira, não há como comparar uma ocorrência de fala efetiva (com, no oral, determinada entonação, gestos, um auditório que reage...) e um enunciado citado entre aspas em contexto totalmente diverso. Como a situação de enunciação é reconstruída pelo sujeito que a relata, é essa descrição necessariamente subjetiva que condiciona a interpretação do discurso citado. O DD não pode, então, ser objetivo: por mais que seja fiel, o discurso citado é sempre apenas um fragmento de texto submetido ao enunciador do discurso citante, que dispõe de múltiplos meios para lhe dar um enfoque pessoal. (2002: 141)

 

Portanto, os efeitos de sentido proporcionados pela inserção de outras vozes na notícia, por meio do discurso direto, estão relacionados ao gênero discursivo a que se visa produzir. Na notícia, a utilização do discurso direto vai ao encontro de um dos intuitos do jornalismo: conotar seriedade, imparcialidade, uma vez que ocorre a simulação de que se está relatando exatamente as palavras ditas oralmente pelo enunciador citado. Nesse sentido, convém observarmos algumas características apontadas por Koch (2004: 77), como sendo distintivas entre as modalidades falada e escrita. Para citar apenas alguns traços distintivos, lembramos que a autora assinala que a fala é não-planejada, fragmentária, incompleta, pouco elaborada, enquanto que à escrita geralmente se atribui o planejamento, a não-fragmentação, a completude, a elaboração. Koch (2004: 78), entretanto, atenta para o fato de que “existe uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da escrita, dependendo do tipo de situação comunicativa”. No caso da notícia, a situação comunicativa propicia a incorporação ao texto escrito de marcas geralmente associadas à oralidade, constituindo, desse modo, uma escrita informal. Isso produz certo efeito de sentido, como se poderá ver na análise do corpus. xiste uma escrita informal que se aproxima da fala e uma fala formal que se aproxima da escrita, dependendo do tipo de situaç

 

3 A PESQUISA

A partir da observação de uma série de notícias veiculadas em jornais de circulação local e estadual sobre a morte e esquartejamento de uma mulher logo após esta ter dado à luz, fato que provocou grande repercussão na comunidade santa-mariense, propomos o estudo do discurso relatado e da referenciação, haja vista que esses procedimentos textuais favorecem a introdução da opinião em gêneros caracteristicamente informativos. Procuramos investigar quais vozes são trazidas para o texto da notícia e como se dá essa inclusão. Quanto à referenciação, interessa-nos ver que expressões são utilizadas na reativação dos referentes no texto noticioso. Desse modo, procuramos identificar estratégias de inserção no texto de dados contextuais, tais como crenças e valores do leitor, expectativas da comunidade, avaliações sobre os protagonistas do fato narrado, uma vez que, na produção do texto noticioso, procede-se a uma espécie de “naturalização” desses aspectos, confundindo-os com a informação.

No recorte aqui apresentado, examinamos a inserção, no texto noticioso, durante o processo de retextualização, de certas marcas características da oralidade, haja vista que as falas em discurso direto, presentes na notícia, são, originalmente, colhidas oralmente pelo jornalista. Interessa-nos ver que efeitos de sentido são produzidos com isso.

 

3.1 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

 

Os textos analisados fazem parte de uma série de notícias veiculadas no Jornal Diário de Santa Maria (edição de sábado e domingo, 12 e 13 de março de 2005) sobre um crime que provocou grande repercussão na comunidade santa-mariense: o esquartejamento de uma mulher dias depois de ela ter dado à luz. Por questões de espaço, suprimimos as fotos que foram veiculadas junto às notícias.

Abaixo, transcrevemos seis ocorrências com discurso direto encontradas nos textos em anexo:

 

 

OCORRÊNCIA 1:

– O que eles fizeram com a minha mãe não se faz nem para um cachorro. Eles são uns assassinos, umas pessoas sem coração. Eles têm de apodrecer na cadeia – disse Taise.

 

OCORRÊNCIA 2:

– Nós éramos uma família feliz e estragaram tudo. Agora sou só eu para cuidar dos nossos filhos. Não sei como vou viver sem minha mulher – disse.

 

OCORRÊNCIA 3:

– Eles eram uma família que aparentava ser muito feliz. Conheço eles há mais de trinta anos e sempre se deram muito bem – diz um comerciante da Vila Lorenzi.

 

OCORRÊNCIA 4:

– Ela estava muito faceira com a filha que estava para nascer. Ela jamais teria coragem de bater na criança, como disseram que aconteceu no hospital – diz a cunhada.

 

OCORRÊNCIA 5:

– Eles sempre foram um casal exemplar – garantiu o cunhado.

 

OCORRÊNCIA 6:

– Ela chamou a gente e mostrou da porta. A Marilei disse: ‘Olhem aqui a minha afilhada’ – conta uma vizinha, que viu a criança apenas de longe.

 

3.2 ANÁLISE DAS OCORRÊNCIAS

 

 

Analisando as ocorrências nas quais o produtor do texto utiliza o discurso direto como modo de discurso relatado, podemos perceber que não existem marcadores conversacionais, tais como “aí”, “então”, “depois”, “né”, “tá” (marcadores conversacionais destacados por Koch, 2004: 123-124) ,  já que não se trata de uma transcrição ipsis litteris da fala oral. No entanto, algumas expressões textualizadas conotam um registro informal, comumente utilizado na oralidade. Na ocorrência 1, percebemos a expressão “não se faz nem para um cachorro”. Tal sentença, atribuída à filha da vítima, compreende uma estrutura comparativa muito utilizada na fala oral quando se quer expressar indignação diante de uma determinada ação praticada por outrem. Além disso, na seqüência dessa fala, ocorre a repetição do pronome pessoal eles, o que alude a uma estratégia freqüente no texto oral: a retomada do referente por meio da constante repetição de um termo. Repetições, segundo Koch (2004: 116), “são fenômenos extremamente freqüentes no texto falado”. A repetição de “eles” parece adquirir valor argumentativo, uma vez que ocorre o que Koch (2004: 121) chama informalmente de “técnica da água mole em pedra dura”, pois a repetição serve “como um meio de martelar na cabeça do interlocutor até que este aceite nossos argumentos”. Na ocorrência 1, à repetição do pronome “eles” soma-se o contexto no qual o enunciado é proferido: há alguém desesperado clamando por justiça. Aqui, cabe lembrar, o referente de “eles” não se encontra no fragmento em discurso direto. Ao contrário, só é recuperado através do discurso do enunciador citante.

Nesse ponto, vemos, no texto escrito, um traço elencado por Koch (2004: 77) como freqüentemente atrelado à modalidade falada: a incompletude. O texto escrito deve ser auto-suficiente, ao contrário do oral, o qual se encontra em constante relação com o contexto para fazer sentido. Entretanto, se considerarmos apenas o que está em discurso direto, não conseguiremos reconstruir o contexto da situação referida. Faz-se necessário que recorramos ao restante da notícia para, então, compreendermos, por exemplo, quem são “eles”. Assim, no gênero notícia de jornal, características apontadas como próprias da fala oral são incorporadas pelo texto escrito, no sentido de criar o efeito de sentido de que se está relatando com fidelidade as falas realmente proferidas. No entanto, como afirma Maingueneau (2002: 141):

 

Mesmo quando o DD relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-se apenas de uma encenação visando criar um efeito de autenticidade: eis as palavras exatas que foram ditas, parece dizer o enunciador. O DD caracteriza-se com efeito pelo fato de supostamente indicar as próprias palavras do enunciador citado: diz-se que ele faz menção de tais palavras.

   

Na segunda ocorrência de discurso direto, encontramos a estrutura “sou só eu”, própria da linguagem falada. Na ocorrência 3, a forma “Conheço eles” e a expressão “se deram muito bem”, conotam que, no processo de retextualização, o jornalista, ao que parece, preservou alguns traços próprios da fala dos enunciadores. A primeira estrutura, possivelmente, em outros gêneros próprios da escrita, nos quais se utiliza a escrita formal, seria substituída pela forma padrão “Conheço-os”;  a segunda, devido ao caráter coloquial, mais relacionado à fala oral, seria trocada por outra expressão.

Na quarta ocorrência, ocorre a repetição do pronome “ela”, bem como do verbo “estava”. Como já foi mencionado, a repetição de palavras é constante no texto oral.  Além disso, na ocorrência 4, encontra-se a palavra “faceira”, a qual denota o estilo da enunciadora citada. Na ocorrência 5, chama-nos à atenção o verbo posposto ao discurso direto, utilizado pelo enunciador citante (“garantiu”). Tal forma verbal conota o tom do enunciado proferido. Possivelmente, o enunciador citado tenha imprimido certeza ao seu dito, motivo pelo qual o jornalista utilizou um verbo tão enfático para relatá-lo.

Na sexta ocorrência, lê-se a expressão “a gente”, a qual é muito utilizada na fala. Levando em consideração mais uma vez o que diz Koch a respeito dos traços distintivos entre fala e escrita (2004: 77), consta que a escrita é planejada, ao contrário da fala, mais espontânea. Geralmente, quando esse termo passa para o texto escrito, é modificado pelo pronome pessoal “nós” seguido, evidentemente, da flexão verbal adequada. No texto da notícia, no entanto, parece que se faz questão de manter a expressão tipicamente oral, na tentativa de que o leitor tenha a impressão de que houve fidelidade ao que foi dito oralmente. Há, também, na sexta ocorrência de discurso direto, a incorporação de um fragmento entre aspas: ‘Olhem aqui a minha afilhada’, o qual denota que dentro do enunciado citado há outro enunciado de autoria alheia. O que está entre aspas não é atribuído nem ao enunciador citante (o jornalista) nem à enunciadora citada (“uma vizinha”).

Por fim, convém salientar que, embora na notícia não se perceba, as colocações postas em discurso direto surgiram a partir da interação entre o jornalista e as pessoas entrevistadas. No texto escrito, isso acaba se naturalizando, já que, como as perguntas são suprimidas, restando apenas as respostas dos atores sociais ouvidos, acaba parecendo ao leitor que eles produziram seus enunciados espontaneamente, quando, na verdade, foram interpelados pelo jornalista.             

 

4 CONCLUSÃO

 

A partir do referencial teórico estudado, podemos concluir que, no gênero discursivo notícia de jornal, as ocorrências de discurso direto visam a provocar o efeito de sentido de que houve fidelidade no processo de retextualização. Para isso, certas palavras e expressões, mais freqüentes na fala oral, são mantidas no texto da notícia, formando, desse modo, uma escrita informal.  Cabe salientar que esse mecanismo está ligado ao gênero que se pretende produzir, haja vista que em outros gêneros geralmente se apagam traços da oralidade no processo de retextualização.

Assim, a aparente “fidelidade” do discurso direto ao que foi realmente dito pelas pessoas entrevistadas oralmente vai ao encontro de um das finalidades almejadas pelos gêneros pertencentes ao domínio discursivo jornalístico: conotar objetividade. No entanto, como não se trata de um processo de transcrição, mas de retextualização, e devido ao caráter conciso da notícia, seria ilusório pensar que os fragmentos em discurso direto traduzem exatamente o texto oral que lhes serviu de base, uma vez que se encontram submetidos à apreciação do enunciador citante (o jornalista responsável pela notícia), o qual tem o poder de selecionar o que irá ou não compor o texto noticioso.      

 

 

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. “O funcionamento dialógico em notícias e artigos de opinião”. In: DIONISIO, Angela Paiva, MACHADO, Anna Rachel, BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

DUARTE, Isabel Margarida. “O oral no escrito: abordagem pedagógica”. In: FONSECA, Fernanda Irene (org.) et alii. Pedagogia da Escrita: Perspectivas. Portugal: Porto Editora, 1994.

KOCH, Ingedore V. A inter-ação pela linguagem. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

LAGE, Nilson. Estrutura da notícia. 3 ed. São Paulo: Ática, 1993.

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. (trad. bras.) 2. ed. São Paulo: Cortez, 2002.

MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 5. ed. São Paulo: Cortez, 2004.

_____. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”. In: DIONISIO, Angela Paiva, MACHADO, Anna Rachel, BEZERRA, Maria Auxiliadora. Gêneros textuais & ensino. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002.

PINHEIRO, Najara Ferrari. “A noção de gênero para análise de textos midiáticos”. In: MEURER, José Luiz; MOTTA-ROTH, Désirée (orgs.) Gêneros textuais e práticas discursivas: subsídios para o ensino da linguagem. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2002.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

6 ANEXOS

 

 


 

                                           

 

 

Glória era tida como uma mãe dedicada

Espanto entre os  vizinhos de Marilei

Espanto entre os vizinhos de Marilei

 

s vizinhos de Marilei Barragan da Silva, 30 anos, dizem que ela seria uma pessoa instável, mas nunca imaginaram que faria o que fez com

 Glória. A vizinhança ficou espan­tada ao saber que Marilei e o namorado, Vagner Lopes da Silva, esquartejaram e esconderam o corpo de uma pessoa.

A notícia caiu como uma bomba na Vila Presidente Vargas, em Camobi, um dia após a descoberta do crime, que se tornou o assunto mais comentado. Como há muito a ser escla­recido, já começaram a surgir suposições e boatos sobre os motivos que teriam levado o casal a fazer isso.

Na tarde de sexta-feira, o Diário esteve perto da casa onde Marilei morava com os dois filhos e conversou com a vizinhança. Segundo os vizi­nhos, várias vezes foi possível escutar e até pre­senciar as brigas do atual companheiro Vagner, com um ex-namorado de Marilei.

Para os vizinhos, Marilei dizia que estava fa­zendo um curso de enfermagem e que cuidava de uma pessoa doente. No sábado, dia 5, ela saiu na porta da casa e mostrou aos vizinhos uma criança. Era a filha de Glória, que estava sob o poder da técnica de enfermagem.

- Ela chamou a gente e mostrou da porta. A Marilei disse: ‘Olhem aqui a minha afilhada’ - conta uma vizinha, que viu a criança apenas de longe.

o

ercada pelos tios e ami­gos, a jovem Taise Silva dos Santos, 16 anos, chorava sem parar, na tarde de sexta-feira. Sem coragem de se aproximar do caixão - coloca­do na Igreja Assembléia de Deus, na vila Tomazetti - Tai­se assistiu de longe ao velório da mãe, a dona-de-casa Glória Maria dos Santos.

Os pedaços do corpo de Gló­ria foram encontrados pela Po­lícia Civil na noite de quinta para sexta-feira. A dona-de-ca­sa estava desaparecida desde o último dia 3, depois de dar à luz uma menina no Hospital Universitário de Santa Maria (Husm). Devido ao calor e ao avançado estado de decompo­sição do corpo, o velório foi fei­to em menos de uma hora. Apenas os parentes e alguns amigos próximos participaram.

O silêncio na igreja onde aconteceu o velório era que­brado pelos gritos e o choro de Taise e de outros seis filhos da vítima. Todos, junto com os demais familiares, pediam a punição de Marilei Barragan da Silva e de Vagner Lopes da Silva, que confessaram o es­quartejamento e a ocultação do cadáver. O enterro aconte­ceu no cemitério de Pau-a-Pi­que, às 17h. O caixão estava la­crado. Sobre ele, só um rama­lhete de flores vermelhas.

- O que eles fizeram com a minha mãe não se faz nem pa­ra um cachorro. Eles são uns assassinos, umas pessoas sem coração. Eles têm de apodrecer na cadeia - disse Taise.

 

                 

C

Glória era tida como uma mãe dedicada

 

 

ara quem conheceu a dona-de-casa Gló­ria Maria da Silva Santos, ela era um exemplo de esposa e mãe dedicada.

Casada há 23 anos com o motorista Jorge Ledir dos Santos, Glória teve sete filhos. O último, uma menina que está sendo chamada de Vitória pe­la famí1ia, nasceu dias antes de sua morte. Gló­ria morava com a famí1ia na vila Lorenzi.

- Eles eram uma família que aparentava ser muito feliz. Conheço eles há mais de 30 anos e sempre se deram muito bem - diz um comer­ciante da Vila Lorenzi.

Uma das cunhadas de Glória, Madalena dos Santos, 31 anos, disse que dias antes do parto, a dona-de-casa prometeu levar a filha à igreja assim que saísse do hospital. Glória, o marido e os filhos freqüentavam a Assem­bléia de Deus, na Vila Tomazzetti.

- Ela estava muito faceira com a filha que estava para nascer. Ela jamais teria coragem de bater na criança, como disseram que aconteceu no hospital - diz a cunhada.

Outro cunhado de Glória, Joel dos Santos, 28 anos, diz que a família vivia em plena har­monia. Santos conta que nunca presenciou alguma discussão do casal. Ele afirma que Glória e o marido sempre faziam questão de sair juntos.

- Eles sempre foram um casal exemplar - ­garantiu o cunhado.

P

IARA LEMOS

iara.lemos@diariosm.com.br

 

 

Criança ganhou

novo nome: Vitória

 

O marido da dona-de-casa, o motorista Jorge Ledir Cazuza dos Santos, que registrou o desaparecimento de Glória na polícia, chorou em silêncio du­rante o velório, sentado em um banco da igreja. Santos, que es­tava inconsolável, foi casado por 23 anos com a dona-de-ca­sa. O motorista garantiu que os dois nunca tiveram problemas de relacionamento. Agora, ele só pensa em exigir punição pa­ra os criminosos.

- Nós éramos uma família feliz e estragaram tudo. Agora sou só eu para cuidar dos nos­sos filhos. Não sei como vou viver sem minha mulher - disse.

O único consolo para Santos é ter de volta a filha recém-nas­cida. A babá que cuidou da criança havia dado a ela o no­me de Karen Melissa. A famí1ia da vítima resolveu rebatizá-la de Vitória, pois considera um milagre a criança ter sido salva.

 
 



[1] Aluno do 4° semestre do Curso de Letras – Português, integrante do projeto “A manifestação lingüística do contexto no gênero notícia”, desenvolvido no LABPORT – UFSM, orientado pela Profa. Ms. Nara Augustin Gehrke.