ANÁLISE DA INTERFERÊNCIA NO ENSINO DE LÍNGUAS PRÓXIMAS

 

Cristiani de Melo Senna[1]

 

 

RESUMO:

 

Neste trabalho, trataremos das interferências ocasionadas pelo português, língua materna dos aprendizes de espanhol, na pronúncia dos alofones [E, ], da língua espanhola. As propostas de Selinker sobre a interlíngua, e os cinco processos que a caracterizam, servem como suporte teórico. A metodologia está baseada na versão fraca da Análise Contrastiva, que faz referência aos dois sistemas lingüísticos somente para explicar os fenômenos de interferência, para, posteriormente, poder ajudar o aluno a desenvolver os parâmetros que regem o aparecimento de [E, e] e [, o]. O corpus foi criado a partir de gravações de alunos universitários do primeiro e do segundo nível de aprendizagem do espanhol, como língua estrangeira.

 

 

PALAVRAS-CHAVE: interferência, aquisição, línguas próximas

 

 

INTRODUÇÃO

 

O panorama lingüístico da América Latina não é nada homogêneo, pois é um continente que se caracteriza por hospedar muitas línguas, entre as quais se encontram o espanhol e o português. Ambas as línguas têm una origem comum que faz com que as duas compartilhem recursos, porém, apesar dessa origem comum, existem muitas diferenças entre elas.

Se observarmos a descrição do sistema vocálico do espanhol e o do português, verificaremos que o português tem doze fonemas vocálicos – sete orais e cinco nasais – enquanto que o espanhol tem cinco fonemas orais e nenhum nasal. Além disso, o português possui vários ditongos e tritongos que não aparecem no espanhol.

Por isso, se poderia pensar que uma das maiores dificuldades para um falante estrangeiro na aquisição do português está no sistema vocálico, pois costuma ser difícil para eles identificar e produzir tanto as vogais nasais como as orais desta língua. Quanto ao espanhol, a dificuldade dos falantes do português está no grau de abertura das vogais.

Neste trabalho, trataremos de um dos problemas enfrentados pelos luso-falantes – os falantes do português – com relação ao espanhol como L2/LE, com o objetivo de contribuir para que aqueles que desejam melhorar sua pronuncia, ao tomar consciência de quais são os fatores que pesam nas dificuldades que enfrentam, possam fazê-lo, pois nem todos os aprendizes que estudam espanhol se conformam com um espanhol que lhes permita, apenas, comunicar-se. Ao contrário, querem fazê-lo da melhor maneira possível.

Vamos, através de uma análise de gravações, focalizar o alofone fechado [o] do fonema vocálico /o/, na fala de brasileiros estudantes de espanhol dos níveis inicial e intermediário. Estabelece-se como hipótese que, à medida que o aluno brasileiro aumenta sua exposição ao espanhol, aumentam suas chances de internalizar os contextos fonéticos que aparece o alofone fechado da vogal /o/.

 

REFERENCIAL TEÓRICO

 

Chamamos interlíngua os sistemas lingüísticos independentes cujas regras não estão nem na língua materna nem na língua objeto, mas entre as duas (Selinker, 1971: 79). Não existe um falante-ouvinte nativo ideal da interlíngua, por isso a análise da mesma deve realizar-se a partir da produção oral do falante quando este tenta transmitir significados em uma língua estrangeira.

Entre os principais problemas – principalmente no âmbito da aprendizagem e da aquisição da língua – estão os cinco processos centrais da interlíngua, que são: a transferência lingüística – que pode ser de ordem semântica, sintática, morfológica e fonológica – que ocorre quando itens, regras e subsistemas procedem da língua materna; a transferência de instrução; a estratégia de aprendizagem da língua segunda; a estratégia de comunicação na língua segunda e a hipergeneralização do material lingüístico da língua objeto.

O autor diz que, além destes cinco processos existem outros (talvez de menor importância), que o aprendiz deve seguir sistematizando (Selinker, 1971: 89).

Estas associações que fazem os aprendizes de uma língua estrangeira com sua língua materna podem ocorrer de modo positivo - quando as associações feitas pelo aprendiz influenciado pela L1/LM são consideradas benéficas - ou de modo negativo – quando as associações com a L1/LM levam a erros, muitas vezes, graves.

No que se refere ao sistema fonético – fonológico este costuma ser o nível que mais facilmente delata o caráter de estrangeiro de um falante. De acordo com a língua materna (L1/LM), se pode observar um acento próprio de seus falantes ao tentar falar um idioma estrangeiro.

No caso dos brasileiros, uma das transferências fonético–fonológicas mais comuns na maioria deles, com relação ao espanhol, é a tendência que têm a pronunciar as vogais com um grau de abertura maior. Isso ocorre porque, no sistema vocálico espanhol, as vogais fechadas são menos fechadas - e menos abertas - que no português. Pode-se dizer que as vogais do espanhol se mantêm numa linha média de abertura. Enquanto o sistema vocálico espanhol tem cinco vogais (/a/,/e/,/i/,/o/ y /u/), o português tem sete (/a/, /e/, /E/, /i/, /o/, // y /u/).

O alofone [o] é mais fechado no português que no espanhol e seus contextos de uso bastante diferentes. Em espanhol, aparece em sílaba livre acentuada. Ou seja, acento principal o secundário. As condições fonéticas, que favorecem o aparecimento do alofone aberto [], são: 1) que /o/ esteja em contato com a vibrante múltipla; 2) /o/ precedida de [x] y 3) no ditongo [i9] (NAVARRO TOMÁS, Tomás, 1965: 57-60). Em português, vemos que as realizações se distribuem em contextos diferentes dos do espanhol – como em português, // y /o/ são fonemas e em espanhol são alofones de /o/, sua aparição estará ligada ao contexto fonético, coisa que não acontece com os fonemas.

Em sílaba travada por qualquer consoante, se realiza, em espanhol, o alofone aberto [](que se poderia dizer que coincide articulatoriamente com seu homófono português, ainda que difira, como já foi dito, no grau de abertura). Ex.: sordo [ÈsRDo], golpe [Èglpe], costa [Èks5ta], conde [Èkn5de] (NAVARRO TOMÀS, Tomás, 1965: 59). Em português, aparece o alofone fechado e nasal, se vai travado por [n] ,por exemplo: tonto [Èto)nto] (CRISTÓFARO SILVA, Thaïs, 2002: 173).

No que se refere ao fonema /e/, este é aberto [E], quando está em contato com uma [r],, tanto se segue como se precede a vocal, ex.: perro [ÈpEro], remo [ÈrEmo], quando aparece diante de [x]: teja [ÈtExa], colegio [koÈlExjo], nas sílabas que não sejam travadas pelas consoantes [m,n,s,d,T] e quando seguida de xis [ks] que, por sua vez, esteja seguida de consoante: extenso [eksÈtenso] (NAVARRO TOMÁS, Tomás, 1965: 50-54).

A abertura vocálica está sujeita a graduação. O traço [+aberto], em português, implica uma abertura maior que o traço [+aberto] do espanhol, assim como o traço [+fechado], implica uma obstrução maior que no espanhol. Portanto, os alofones vocálicos do espanhol são abertos e fechados, mas não tanto como os fonemas do português.

 

 

Fonemas /e/, /o/ com seus alofones

Fonemas

/e/

/o/

Alofonos abertos

[E]

[]

Alofones fechados

[e]

[o]

 

 

 

 

 

 

 Quanto as vogais do português, se pode dizer:

 

Para as vogais portuguesas, a presença do que se chama ‘acento’, ou particular força expiratória (intensidade), associada secundariamente a uma ligeira elevação da voz (tom), é que constitui a posição ótima para caracterizá-las. A posição tônica nos dá em sua plenitude e maior nitidez (desde que se trate do registro culto formal) os traços distintivos vocálicos. Desta sorte, a classificação das vogais como fonemas tem de partir da posição tônica. Daí se deduzem as vogais distintivas portuguesas.  (CAMARA Jr., 1970: 41)

 

As vogais portuguesas /e/ y /o/ são consideradas médias de 1º grau – as abertas – e médias de 2º grau – as fechadas. Isso ocorre porque as vogais abertas são mais soantes que as vogais fechadas (a abertura maior favorece a sonoridade). Já as vogais fechadas também são soantes, mas, por serem fechadas, são menos soantes que as abertas, por isso Mattoso as considera de 2º grau.

 

 

Vogais Tônicas do Português segundo Camara Jr.

 

Altas

    i              u

 

Médias

      e          o

(2º grau)

Médias

           E    

(1º grau)

Anteriores

        a

Posteriores

 

 

 

 

 

 

 

Os luso-falantes aplicam os parâmetros do sistema fonético-fonológico de sua LM e não conseguem deduzir quais são os parâmetros da LE que estão estudando. Essa dificuldade para deduzir os parâmetros que regem o sistema vocálico da língua espanhola talvez seja pelo pouco tempo de exposição à LE.

 

METODOLOGIA

 

      A metodologia deste trabalho está baseada na versão fraca da Análise Contrastiva (AC), pois parte dos erros cometidos para tentar explicá-los, o que não seria possível por meio da versão forte – que contrasta as duas línguas (neste caso, o espanhol e o português) para poder prevê-los e evitá-los.

O corpus, que consta de cinco informantes de cada nível, está formado por amostras de produções orais de universitários brasileiros do primeiro e do segundo nível de aprendizagem do espanhol como língua estrangeira, de cursos regulares de licenciaturas em português-espanhol.

 

ANÁLISE E DISCUÇÃO

 

Ao fazer a análise de uma fita gravada com diálogos entre estudantes brasileiros do primeiro nível de estudo do espanhol, pôde-se verificar que todos os informantes mantêm, na fala, a oposição que ocorre no português entre os fonemas /o/ y //.

 

INFORMANTES

PALAVRA PRONUNCIADA

CÓMO A PALAVRA FOI PRONUNCIADA

CÓMO A PALAVRA DEVERIA SER PRONUNCIADA

Informante I

chismosa

 [tƒSisÈmsa]

 [tƒSisÈmosa]

Informante II

ojos

[Èxos]

[Èxos]

Informante III

ojos

[Èxos]

[Èxos]

Informante IV

sólo

[Èslo]

[Èsolo]

Informante V

chismosos

 [tƒSisÈmsos]

 [tƒSisÈmosos]

 

 

      A palavra chismosa/ chismosos se pronuncia com el alofone fechado [o], em espanhol, por estar em sílaba livre acentuada. Já em português, a /o/ apareceria – se existisse a palavra no idioma – como fonema vocálico tônico, aberto ou fechado.

Em espanhol, a palavra ojos se pronuncia com o alofone aberto, mas o que chama a atenção, na fala do aprendiz nativo do português, é que este produz uma [o] muito mais aberta que o alofone aberto do espanhol.

Ao analisar as gravações do segundo nível de aprendizagem, pôde-se confirmar a hipótese anteriormente mencionada de que quanto maior o contato com a língua estrangeira, mais internalizada ela é, pois nem todos os informantes mantêm, na /o/, a pronuncia do português.

 

 

INFORMANTES

PALAVRA PRONUNCIADA

CÓMO A PALAVRA FOI PRONUNCIADA

CÓMO A PALAVRA DEVERIA SER PRONUNCIADA

Informante I

historia

[isÈtRia]

[isÈtoRia]

Informante II

atenciosas

[atenÈsiosas]

*[atenÈsiosas]

Informante III

ahora

[aÈoRa]

[aÈRa]

Informante IV

ahora

[aÈoRa]

[aÈRa]

Informante V

horas

[ÈRas]

[ÈoRas]~[ÈRas]

 

 

 

La pronunciación de “ahora” en español es con el alófono [o] abierto, lo que coincide con la pronunciación del portugués, pero la pronunciación delata al aprendiz como hablante de portugués, porque hace una /o/ mucho más abierta que el alófono español. Ya en lo que toca a la palabra atenciosas, si existiera esta palabra en la lengua española, la pronunciación, iría a ocurrir con el alófono vocálico cerrado [o], por estar en sílaba libre, con acento principal.

     

CONCLUSÃO

 

Sendo o espanhol e o português línguas irmãs, mutuamente inteligíveis, pode-se observar que o principal problema na produção lingüística do falante brasileiro, ao tentar falar o espanhol, é que não tem consciência de que, na sua língua, // y /o/ são fonemas, por isso que a diferença no grau de abertura permite diferenciar significados. Além disso, em português, a distância entre ambos os graus de abertura tem que ser muito bem marcada, para que o cérebro possa decodificar com celeridade e eficiência, apesar das possíveis interferências, como ruídos, voz inaudível ou outras. Em espanhol, [] y [o] são alofones de /o/, mas a diferença entre ambos não acarreta conseqüências para a comunicação. Se na fala de um usuário do espanhol, não aparecem os alofones esperados, seu modo de falar chamará a atenção, dirão que sua pronuncia é “estranha”, mas ninguém deixará de entendê-lo. Em português, é diferente, /, o/ são fonemas e todos os falantes sabem diferenciá-los, porque se não os diferenciam, correm perigo de não serem entendidos.

Através deste começo de investigação – o corpus é pouco consistente, devido à escassez de informantes e de casos,– pode-se supor que a transferência lingüística do português para o espanhol ocorre porque o aluno do primeiro nível não consegue, em meio a tantas semelhanças que existem entre estas duas línguas, identificar as diferenças fonéticas e fonológicas entre a /o/ portuguesa e a /o/ espanhola, o que só conseguirá com o tempo – se dedicar-se a isto, e se aumentar o número de horas de exposição à língua.

 

BIBLIOGRAFIA

 

ALMEIDA FILHO, José Carlos Paes de (organizador). Português para Estrangeiros – Interface com o Espanhol. Campinas: Pontes, 1995.

CAMARA Jr, Joaquim Mattoso. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 2002.

CRISTÓFARO SILVA, Thaïs. Fonética e Fonologia do Português. São Paulo: Contexto, 2002.

NAVARRO, Tomás Navarro. Manual de Pronunciación Española. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1965.

SELINKER, L.  La interlengua. In: MUÑOZ LICERAS, Juana. La adquisición de las lenguas extranjeras: hacia un modelo de análisis de la interlengua. Madrid: Visor, 1992.

TARALLO, Fernando. A Pesquisa Sociolingüística. São Paulo: Ática, 1994.

WARDHAUGH, R. La hipótesis del análisis contrastivo. In: MUÑOZ LICERAS, Juana. La adquisición de las lenguas extranjeras: hacia un modelo de análisis de la interlengua. Madrid: Visor, 1992.

 



[1] Acadêmica do 3o ano do Curso de Letras – Português/Espanhol da Fundação Universidade Federal do Rio Grande, sob orientação da professora Clara da Silva