A aquisição da escrita em um caso de Desvio Fonológico

 

Cristiane Lazzarotto (UCPEL)

                                                                                                                        

Palavras-chave: desvio fonológico, aquisição da escrita, consciência fonológica.

 

Resumo

A língua portuguesa apresenta uma escrita alfabética, baseada nas relações entre sons e letras. Dessa forma, para aprender a escrever, a criança necessita apropriar-se desse sistema alfabético durante o processo de aquisição da escrita. A descoberta das relações grafo-fonológicas só é alcançada através da reflexão entre os sons da fala, ou seja, o sistema fonológico, e sua relação com os grafemas da língua. Porém, algumas crianças iniciam a alfabetização sem ter terminado o processo de aquisição fonológica, por apresentarem um atraso no desenvolvimento fonológico, ou um Desvio Fonológico (DF). Diante disso, esse trabalho pretende contribuir com os estudos sobre a aquisição da escrita, através da análise das produções escritas dirigidas de um menino de 7:1, com DF, em tratamento fonoaudiológico, a fim de verificar como essa criança está se apropriando do sistema alfabético do Português Brasileiro. Após a análise, verificamos que o sujeito, embora ainda não apresente um sistema fonológico completamente adquirido, já é capaz de relacionar fonemas e grafemas, inclusive segmentos ausentes no seu inventário fonológico. Esse fato aponta para a necessidade de mais estudos com crianças que iniciam a alfabetização, ainda apresentando um sistema fonológico incompleto, visto que, na prática fonoaudiológica, temos observado alguns casos apresentarem boa evolução no processo de aquisição da escrita, enquanto que outros não. É preciso que se investigue se essa diferença está apenas relacionada a características individuais, ou se o ambiente pode contribuir para o bom desempenho, ou não, dessas crianças.

 

1 Introdução

A língua portuguesa apresenta uma escrita alfabética, baseada nas relações entre sons e letras. Dessa forma, para aprender a escrever, a criança necessita apropriar-se desse sistema alfabético durante o processo de alfabetização. A descoberta das relações grafo-fonológicas só é possível através da reflexão e da manipulação dos sons da fala, já que a noção de fonema é fundamental para o entendimento do princípio alfabético (Vandervelden e Siegel, 1995).

A essa capacidade dá-se o nome de consciência fonológica, a qual faz parte do conhecimento metalingüístico, ou seja, é uma capacidade metalingüística que permite refletir sobre as características estruturais da fala e manipulá-las (Zorzi, 2003). Essa habilidade é imensamente importante para compreender a mensagem escrita, uma vez que, para ler e escrever, é preciso realizar as correspondências grafo-fonológicas e analisar os signos semiológicos em fonemas e sintetizar os fonemas em signos semiológicos (Cielo, 2001).

A consciência fonológica surge gradualmente, ao longo de um continuum que engloba desde um grau nulo de consciência, passando pela sensibilidade, pelo “dar-se conta”, até a consciência em si, que pressupõe a capacidade de explicitação verbal do resultado desse tipo de conhecimento (POERSCH, 1998a). As crianças vão desenvolvendo essa habilidade ao longo de sua maturação cronológica e a partir da interação com o meio, incluindo a instrução formal. Assim, deve haver tarefas de consciência fonológica mais e menos difíceis de resolver, conforme o estágio de desenvolvimento infantil (Cielo, op. Cit.).

Dessa forma, pode-se dizer que, ao mesmo tempo em que a criança adquire a linguagem oral, ela vai desenvolvendo a capacidade de refletir e de "brincar" com essa linguagem. Ao ingressar na classe de alfabetização, teoricamente, todas as crianças já adquiriram a fonologia de sua língua e já possuem um bom nível de consciência fonológica, embora não apresentem, ainda, uma consciência fonêmica, ou seja, ainda não são capazes de isolar os fonemas do fluxo da fala, bem como substituí-los, apagá-los, invertê-los, de forma intencional. Essa habilidade só será desenvolvida a partir da exposição e do aprendizado da língua escrita (Cielo, 2001, Lazzarotto e Cielo, 2003).

Contudo, algumas crianças iniciam o processo de aquisição da escrita sem ter terminado o processo de aquisição fonológica, por apresentarem um atraso no desenvolvimento fonológico, ou um Desvio Fonológico (DF). Os DF podem ser caracterizados por uma alteração ou por uma demora na organização do sistema fonológico, durante seu processo de aquisição. Matzenauer-Hernandorena (1995) aponta que várias pesquisas em aquisição da linguagem[1] já comprovaram que toda criança com DF apresenta um sistema, embora seja um sistema próprio, cuja organização pode estar bem distante daquela da língua-alvo.

De acordo com Grunwell (1990), o quadro clínico de um desvio unicamente fonológico é representado por características como:

(a)    erros resultantes, principalmente, de desvios consonantais;

(b)   fala espontânea ininteligível em idade superior a 4 anos, embora estudos mais recentes venham demonstrando que em idades mais precoces já há sinais na fala da criança que indicam uma aquisição fonológica com problemas (Mota, 2001);

(c)    desenvolvimento global adequado à faixa etária, no que se refere ao nível cognitivo, auditivo, neurológico e neuropsicomotor;

(d)   compreensão da linguagem oral adequada para sua idade mental;

(e)    ausência de alterações anatomo-fisiológicas do aparelho fonador e

(f)     linguagem expressiva relativamente adequada, no que se refere aos aspectos semânticos e sintáticos. Devido à falta ou à pequena contrastividade existente no sistema fonológico de uma criança com DF, as interações comunicativas entre ela e o meio são pouco eficazes, o que pode agravar ainda mais o quadro.

Diante de um fato como este - a entrada de uma criança com DF na primeira série do ensino fundamental - o que esperar do seu desempenho no que se refere à aquisição da escrita? Que tipo de relações grafo-fonológicas será estabelecido por esse sujeito? O fato de apresentar um sistema fonológico incompleto implicará num atraso na aquisição da escrita?

A partir desses questionamentos, este trabalho tem como objetivo analisar as produções escritas de um menino de 7anos, com DF, e verificar como esse sujeito está se apropriando da escrita alfabética do Português. A fim de delimitar o objeto de estudo, pretende-se analisar como J. representa, através de grafemas, o segmento /t/, ausente de seu inventário fonológico.

 

2 Metodologia

O sujeito deste estudo é J., 7 anos e 1 mês, do sexo masculino. Esse menino apresenta um DF e está em tratamento fonoaudiológico desde agosto de 2004, ano em que ingressou na primeira série. Naquele ano, J. não foi aprovado para a série seguinte, por não estar alfabético, repetindo a 1ª série do fundamental nesse ano de 2005. A avaliação fonológica e da escrita que serão apresentadas foram realizadas em agosto de 2004, ou seja, no início do tratamento fonoaudiológico de J.

Os dados de fala foram coletados através do instrumento Avaliação Fonológica da Criança – AFC – (Yavas, Matzenauer-Hernandorena e Lamprecht, 1991), constituído de cinco desenhos temáticos (“zoológico”, “sala”, “banheiro”, “cozinha” e “veículos”), acrescido do “circo” elaborado por Matzenauer-Hernandorena e Lamprecht (1991, 1996). Esse instrumento permite, através da nomeação espontânea, a eliciação de todos os segmentos consonantais do PB, em todas as posições licenciadas pela fonologia do PB – Onset simples Absoluto (OA), Onset simples Medial (OM), Onset Complexo (OC), Coda Medial (CM) e Coda Final (CF). Em seguida, foi feita uma análise através da Teoria da Otimidade[2], por meio de hierarquias de restrições, para analisar o problema que J. tem no emprego da plosiva coronal /t/.

Já os dados da escrita de J. foram obtidos e analisados a partir do Ditado para levantamento ortográfico (Ramis apud Costa 2000) – Anexo 1 – . Esse ditado consta de 20 palavras, as quais permitem averiguar como o aprendiz lida com as seguintes questões ortográficas: sonora/surda, encontros consonantais, dígrafos, "r" em final de sílaba, gu/qu, c/qu, "m" em final de sílaba, antes de "p" e "b", nasalização, transcrição da fala, j/g e m/n em início de sílaba.

 

3 Resultados

3.1 Sistema fonológico de J.

A partir da avaliação fonológica, obteve-se o inventário fonético de J., o qual se mostra incompleto, pois em sua fala espontânea são produzidos apenas os sons [p, b, k, g, f, v, m, j, w[3]], conforme pode ser visto no Quadro 1. Já no Quadro 2 tem-se o sistema de fones contrastivos de J.

 

QUADRO 1 – Inventário fonético de J.

 

labial

dent/alv

pal

velar

plosiva

p b

_ _

 

k g

fricativa

f v

_ _

_ _

 

africada

 

 

_ _

 

nasal

m

_

_

 

líq. lateral

 

_

_

 

    ñ-lateral

 

_

 

_

glide

 

 

j

w

 

 

 

 

 

QUADRO 2 – Sistema de fones contrastivos de J.

OA

p

p

 

 

 

 

b

b

t

k

d

k

 

 

k

k

g

g k

f

f

 

v

v

s

k

z s/ ocor.

S

k

Z

k g

 

 

m

m

 

n

ø

 

 

 

 

 

 

 

l

ø

 

 

 

{

ø

 

OM

p

p

b

b

t

k

d

g k ø

 

 

k

k

g

g k

f

f

v

v

s

k

z

g

S

k

Z

g

 

 

m

m

 

n

ø

 

ø

ø

 

 

 

 

 

l   

j w ø

 

´

j ø

 

 

 

 

 

r

w ø

 

 

 

{

w ø

 

 

                                             CM                                       CF

s

ø

l

s/ ocor.

 

s

ø

l

w

r

 ø

N

ø

 

r

ø

N

w j

 

 

A partir desses dados, podemos verificar que J. apresenta um sistema fonológico com poucos contrastes. Em relação s plosiva coronal surda, pode-se observar que, tanto na posição de OA, quanto na de OM, J. demonstra uma dificuldade no estabelecimento do contraste do ponto articulatório, realizando esse segmento como um dorsal.

 

3.2 Hierarquia de restrições

A ausência do fonema /t/ no inventário de J. evidencia uma dificuldade no estabelecimento do contraste de ponto. Assim, para representar a ausência desse segmento através de restrições, bem como a produção de J., são necessárias as seguintes restrições: *[Coronal][4], *[Labial][5], *[Dorsal][6], Ident[ponto][7].

É necessário demonstrar como as três primeiras restrições, que são de marcação, estão conflitando com a restrição de fidelidade Ident[ponto], que preserva o traço de ponto do input, para dar conta dos dados analisados. Em (1), temos a hierarquia dessas restrições e o tableau que a representa.

 

(1)   Hierarquia de restrições representativas da alteração de ponto da plosiva coronal surda, na gramática de J.

*[Coronal] >> Ident[ponto] >> *[Labial] >> *[Dorsal]

/sapato/

*[Cor]

Ident[ponto]

*[Lab]

*[Dors]

sapato

*!*

 

*

 

F kapaku

 

**

*

**

papapu

 

**

**!*

 

apaku

 

*

*

*

/tapete/

 

 

 

 

tapetSi

**!

 

*

 

F kapeki

 

**

*

**

apetSi

*

 

*

 

papeki

 

**

**!

*

 

3.3 Avaliação da escrita

Para avaliação da escrita de J. foi utilizado o Ditado para levantamento ortográfico (Ramis apud Costa, 2000), no Quadro 3 pode-se verificar as produções escritas de J, seguidas da palavra-alvo ditada.

 

 

 

 

 

 

 

QUADRO 3 – Produção escrita de J.

1. parato (prato)

11 fota (voltar)

2. mióca (minhoca)

12. oeia (orelha)

3. pcnta (perguntar)

13. bito (pintor)

4. caobo (campo)

14. fugão (fogão)

5. seti (seguir)

15. rebia (respirar)

6. fuca (flores)

16. grafato (gravador)

7. difernote (diferente)

17. ateta (atleta)

8. tãobo (tambor)

18. boto (bloco)

9. matia (máquina)

19. vido (vidro)

10. coita (corrida)

20. etãodito (esconderijo)

 

4. Discussão

de-se observar, a partir das informações descritas na seção anterior, que J. não apresenta o fonema /t/ em seu inventário fonológico, por apresentar problemas com o traço [coronal]. Além disso, em todas as suas produções, esse fonema é realizado pela plosiva dorsal /k/. Já em relação à escrita, nota-se que J., apesar disso, é capaz de representar esse fonema ausente através do grafema correto em todos os vocábulos do ditado, ou seja, todas as palavras que apresentam o fonema /t/ e que, portanto, deveriam ser escritas com a grafema "t" estão representadas de forma correta, em relação a esse fonema. Esse é o caso dos itens 1, 3, 7, 8, 11, 13 e 17.

Mais curiosamente, em alguns dos itens lexicais que possuem os fonemas plosivos dorsais /k/ e /g/, J. acaba realizando uma supercorreção, pois os representa através dos grafemas "t" e "d". Esse fato pode ser observado nos itens 5, 9, 18 e 20.

Diante disso, é possível levantar as seguintes hipóteses na tentativa de explicação dos fenômenos:

-                           J. não apresenta uma DF, mas sim uma dificuldade articulatória que o impede de produzir corretamente a plosiva coronal /t/, tendo a representação mental correta desse segmento;

-                           J., embora possua um DF, de modo que a representação mental do /t/ esteja alterada, apresenta um bom nível de consciência do seu desvio, o que o leva a representar corretamente o segmento através da escrita.

Se a primeira hipótese for a correta, seria possível pensar que as produções escritas de uma criança com DF seriam muito úteis num diagnóstico diferencial entre um desvio fonológico e um desvio fonético ou articulatório. Além disso, esse fato romperia com a idéia que muitos educadores possuem em relação à aprendizagem de crianças que ainda possuem alterações de linguagem oral: nem todas estão destinadas ao fracasso, muitas dela, apesar do desvio de fala, apresentam um bom desempenho nas habilidades de leitura e escrita.

Se for considerada a segunda hipótese com a mais correta, pode-se concluir que uma intervenção baseada na consciência fonológica de segmentos adquiridos e ausentes é capaz de garantir uma representação grafo-fonológica correta no período inicial de aquisição da escrita. Essa tese seria reforçada pelo fenômeno de supercorreção que J. realiza nos vocábulos seguir, máquina, bloco e esconderijo, onde as plosivas dorsais foram representadas pelos grafemas "t" e "d". Assim, sua atenção e consciência para o desvio estão maiores que sua consciência fonêmica de segmentos produzidos corretamente, o que o está levando a produzir esse tipo de "erro".

A explicação para esse fenômeno não está bem clara, o que exigiria mais estudo, pesquisa e, principalmente controle de variáveis, tais como: método de alfabetização utilizado pelo professor, método terapêutico utilizado pelo fonoaudiólogo, nível de consciência fonológica e de consciência do desvio fonológico da criança, entre outras.

 

5. Considerações finais

Nesse breve estudo, pode-se verificar que uma criança com DF é capaz de representar segmentos ausentes de seu inventário fonológico de forma adequada na escrita. Esse fenômeno merece atenção de futuras pesquisas e precisa ser mais bem investigado. As duas hipóteses lançadas para explicar os dados encontrados, se corroboradas por estudos mais aprofundados, podem trazer contribuições importantes tanto para o diagnóstico e terapia dos DF, quanto para o processo de aprendizagem da escrita em crianças com alterações da linguagem oral.

Esse fato aponta para a necessidade de mais estudos com crianças que iniciam a alfabetização, ainda apresentando um sistema fonológico incompleto, visto que, na prática fonoaudiológica tem-se observado alguns casos apresentarem boa evolução no processo de aquisição da escrita, enquanto que outros não. É preciso que se investigue se essa diferença está apenas relacionada a características individuais, ou se o ambiente pode contribuir para o bom desempenho, ou não, dessas crianças.

 

 

Referências bibliográficas

CIELO, C.A. Habilidades em consciência fonológica em crianças de 4 a 8 anos. Tese de Doutorado, Porto Alegre: PUCRS, 2001.

 

COSTA, A. Terapia dos distúrbios da linguagem escrita. Anotações de grupo de estudos. Porto Alegre, 2000.

 

GRUNWELL, P. Os desvios fonológicos numa perspectiva lingüística. In: YAVAS, M. (org.) Desvios fonológicos em crianças: teoria, pesquisa e tratamento. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1990. p. 51-82.

 

LAZZAROTTO, C. Avaliação e planejamento fonoterapêutico para casos de Desvio Fonológico com base na Teoria da Otimidade. Dissertação de Mestrado. Pelotas: UCPEL, 2005.

______ e Cielo C.A. Consciência fonológica e sua relação com a alfabetização. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia. São Paulo, vol. 2, p. 15-24, 2002.

 

 

MATZENAUER-HERNANDORENA, C.L.B. Distúrbios no desenvolvimento fonológico: a relevância do traço [coronal]. Cadernos de Estudos Lingüísticos. Campinas, (29), p. 69-75, 1995.

 

MOTA, H. Terapia fonoaudiológica para os desvios fonológicos. Rio de Janeiro: Revinter, 2001.

 

PRINCE, Alan e SMOLENSKY, Paul. Optimality theory: Constraint interaction and generative grammar. Report n. RuCCS-TR-2. New Brunswick: Rutgers University Center for Cognitive Science, 1993.

 

VANDERVELDEN, M.C. e SIEGEL, L.S. Phonological recoding and phoneme awareness in early literacy: a development approach. Reading Research Quarterly, v. 30, n. 4, p. 854-875, 1995.

 

YAVAS, M.,MATZENAUER-HERNANDORENA, C.L. e LAMPRECHT, R.R. Avaliação fonológica da criança. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

 

ZORZI, J. Aprendizagem e distúrbios da linguagem escrita: questões clínicas e educacionais. Porto Alegre: Artmed, 2003.

 

 

 

 



[1] O primeiro autor a fazer referência à existência de um sistema nos casos de DF foi Ingram (1976).

[2] Uma análise mais apurada desse sistema pode ser encontrada em Lazzarotto (2005), onde J. é o sujeito 1 da pesquisa.

 

[4] Consoantes não devem ser [coronal] (Prince e Smolensky, 1993).

[5] Consoantes não devem ser [labial] (Idem Ibidem).

[6] Consoantes não devem ser [dorsal] (Idem Ibidem).

[7] O valor do traço existente no input deve ser preservado no output.