Discurso jurídico – a prosódia marcando a ironia

 

Clóris Maria Freire Dorow

Mestra em Letras – UCPEL

CEFETRS

 

Introdução

 

O discurso jurídico, forma de discurso extremamente controlada pela ideologia jurídica, obedece, via de regra, a procedimentos austeros e conservadores. Ele é, por excelência, um discurso atuante, passível, por sua própria eficácia, de emitir efeitos de convencimento que podem estar centrados em alguns recursos lingüísticos, como entonações diferenciadas para determinados vocábulos, palavras rebuscadas e emprego de ironia. Apesar desses efeitos de convencimento, paradoxalmente, a situação judicial caracteriza-se como lugar neutro, em que os debatedores investem-se de atitudes ascéticas e aristocráticas. O conflito metamorfoseia-se em diálogo de peritos, sendo o desenvolvimento do processo organizado em busca da “verdade”.

No decorrer deste trabalho, busca-se mostrar que a tensão e o conflito são aspectos constitutivos da linguagem, discutindo-se a questão do poder e sua relação com o sujeito e a linguagem. Esse poder é exercido pelo homem, ancorado nos horizontes da lei, tornando-se uma forma de coerção do sujeito.

O recurso lingüístico escolhido para ser analisado neste estudo foi a ironia, que pôde ser visualizada como estratégia de linguagem presente na formulação do discurso como fato histórico e social, mobilizando diversificadas vozes e instituindo a heterogeneidade. A não-unicidade de leitura, propiciada por um enunciado irônico, pressupõe maneiras diferentes de interação entre os sujeitos, assim como o estabelecimento de uma relação entre o objeto da ironia e os recursos lingüísticos discursivos que impulsionam o processo.

O corpus escolhido para a realização deste trabalho consistiu-se do discurso de um promotor de justiça e foi registrado durante a reunião de dois tribunais do júri referentes a crimes que, dada sua natureza, tiveram grande repercussão na cidade de Pelotas. Essa opção foi feita, entre vários júris assistidos, porque, ao se analisar o discurso do representante do Ministério Público, pôde-se perceber que esse sujeito apresentava recursos retóricos bastante enfáticos em seus posicionamentos, chamando a atenção dos jurados. Além disso, percebeu-se que as ironias presentes nesse discurso eram bastante sinalizadas, sendo essa uma forma de torná-las passíveis de compreensão, sem a qual não surtiriam o efeito desejado pelo sujeito discursivo.

 

1.            O discurso jurídico

 

 A linguagem do discurso jurídico, aparentemente literal e deveras assujeitadora, busca formas inconscientes de libertação, principalmente quando praticada em um júri de âmbito penal, que possui rituais de funcionamento que não podem deixar de ser cumpridos. Além disso, nesses rituais, cada sujeito discursivo ocupa uma posição que o constitui como sujeito daquilo que fala, sendo a sua linguagem influenciada por esse papel o qual lhe cabe exercer, seja como juiz, como promotor, como advogado de defesa, como réu ou como jurado.

A Análise de Discurso enfoca a linguagem como o elemento mediador essencial entre o homem e as realidades natural e social. Segundo Orlandi (1999), o discurso é essa mediação que viabiliza tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade que faz parte de sua existência. Priorizando o homem e sua história, o discurso põe em prática uma análise da relação da língua com os sujeitos que a falam e das situações de produção do dizer, levando em conta, assim, os processos e as condições de produção da linguagem. Dessa maneira, a Análise de Discurso privilegia a junção entre língua, discurso e ideologia, pois a materialidade específica da ideologia é o discurso, e a materialidade específica do discurso é a língua.

Assim, a pretensão do discurso jurídico, presente em nossa cul­tura, é a de construir significações estáveis, coibindo o indivíduo por meio de verdades incontestáveis, as quais não admitem outras interpretações que não aquelas feitas pelos próprios profissionais dessa área. Logo, o discurso jurídico é a prática de um ritual que impõe, para os sujeitos que o cultivam, qualidades singulares e papéis preestabelecidos, tornando a sua compreensão mais restrita e, portanto, difícil de ser questionada ou criti­cada pelos su­jeitos leigos, que acabam aceitando a “verdade” propagada por esse discurso, embasado nas leis.

           A lei é fiel a seus símbolos e, segundo seu papel na obra institucional, dire­ciona suas forças para mascarar ou diminuir o desejo.A cen­sura constitui, então, uma pena para se extirparem as feridas da alma, um castigo tera­pêutico, e o censurado é aquele que comete um erro, este previamente caracterizado pelas regras da sociedade que o nomeiam como tal. Para os juristas, o conceito de Salva­ção, por sua vez, está intrinsecamente ligado à pena e ao benefício moral.

Com isso,  lei faz crer que  sujeito é responsável, ao mesmo tempo em que exerce poder sobre ele, o assujeitamento instaura-se, e o discurso apresenta-se como um instrumento límpido do pensamento e um testemunho justo da realidade. Sob essa ótica, articula-se a questão da literalidade: o sentido literal, na visão da lingüística imanente, é aquele que um vocábulo possui independentemente de seu uso, em qualquer contexto, sendo essa sua nuança básica, discreta, inerente, abstrata e geral. Contudo, nessa mesma “transparência da linguagem”, a ideologia aponta evidências que se contrapõem ao caráter material do sentido e do sujeito. Assim, ao se examinar criticamente a ideologia, verifica-se a ilusão presente nesse tipo de concepção da literalidade, a qual então se mostra como um produto histórico, efeito de discurso que sofre as determinações das formas de assujeitamento das diversificadas formas-sujeito na sua historicidade e em relação aos diferentes tipos de poder. É ilusória, então, a crença do discurso jurídico na pretensão de sedimentar palavras sob uma única ótica de sentidos, restringindo sua significação e apostando na transparência do sentido.

Porém, apesar de o discurso desses sujeitos ser extremamente assujeitado, pelas leis, pela tentativa de literalidade e pela coação das interferências[1] ou do opositor, ou do juiz, o sujeito discursivo busca formas de libertação inconscientes, através de alguns recursos da língua, como é o caso da ironia. A ironia, por sua vez, constitui-se num recurso deveras eficaz, que não sofre coações, uma vez que ela, aparentemente, não deixa marcas explícitas de sua efetivação. Assim, a ironia é utilizada como meio de libertação do sujeito discursivo e como forma de assujeitamento do sujeito interlocutor, o jurado, que precisa ser convencido a aceitar uma das “verdades”: a “verdade” do promotor ou a “verdade” do advogado de defesa.

 

2.            A Ironia

 

No discurso jurídico, é necessário que provas sejam evidenciadas, princi­palmente com base na veracidade dos fatos cujos registros são reunidos durante um pro­cesso, e ressaltadas por meio das formas de argumentação do advogado de defesa ou do representante do Ministério Público. Assim, em face do cerceamento constitutivo do discurso jurídico, o sujeito, inconscientemente, busca estratégias que permitam o afloramento de sua subjeti­vidade, as quais só podem emergir através de determinados recursos utilizados na lin­guagem.

Um desses recursos é a ironia, que se constitui em uma forma de se exprimir alguma coisa significando, na realidade, uma outra. Na luta entre partes, como é o caso do júri, a ironia constitui-se em uma arma dialética, destrutiva, vista como desatrelada do contexto lingüístico, uma vez que o contra-sentido é captado  pelo contexto extralingüístico e, conforme mostra o corpus analisado, por marcas prosódicas.

Também para Hutcheon (2000, p.136), a ironia trabalha de maneira dialó­gica ou intersubjetiva invocando ou mesmo estabelecendo uma comunidade ou um con­senso. Assim, para que a ironia se efetive, é preciso que ela seja explicitada para o in­terlocutor, caso contrário, seu resultado será o mesmo que “palavras jogadas ao vento”, não se concretizando o efeito pretendido. Outros autores consideram que a compreensão da ironia desvela-se com maior plenitude em determinados grupos, cujos partici­pantes convivem no mesmo âmbito social, o que, então, torna a ironia quase um dialeto de uso comum, uma “realização comunitária”, criando liames intelectuais entre o grupo. No entanto, a ironia vai além da criação desses elos, podendo também ser encontrada em espaços sociais onde convivam culturas diferenciadas, com seus contrastes, quase sempre em contextos de relações de poder extremamente desiguais, como é o caso de uma ironia feita pelo promotor tendo por alvo o réu ou as testemunhas.

A interação entre o ironista e o interpretador é vista mais como uma relação entre o mestre e o subalterno do que como uma troca, um veículo de entendimento mútuo. Para Hutcheon (ibidem), os ironistas tecem elogios aos interpretadores, fazendo-os iludir-se de possuírem qualidades como a argúcia e a sofisticação. Assim, existem dois públicos distintos: o daqueles que entendem a ironia e o daqueles que não a entendem, sendo que os últimos podem não ser necessariamente o alvo do ironista, já que eles podem nem se importar com tal situação, por estarem inseridos em um contexto discursivo distinto.

Outra abordagem que deve ser mencionada é a de Jacqueline Authier-Revuz (1990), que articula uma teoria da enunciação a conceitos de psicanálise lacaniana. O foco das investigações da autora centra-se, freqüentemente, nas menções, formas mais variadas do discurso relatado. Ela estuda ainda, sob a ótica da opacificação do dizer, as marcas da heterogeneidade constitutiva que há na enunciação. A exemplo do que fazem Sperber e Wilson, Authier-Revuz conduz suas investigações de maneira cri­teriosa, mas existem aspectos que a distinguem dos primeiros, pois, ao contrário deles, a autora centra-se na descontinuidade dos atos enunciativos que direcionam as maneiras de discurso relatado ou de menção.

Authier-Revuz (ibidem, p.30) explicita algumas formas de heterogeneidade que denunciam a presença do outro: a heterogeneidade mostrada e a constitutiva. A he­terogeneidade mostrada corresponde às marcas lingüisticamente descritíveis, quais se­jam, o discurso relatado (discurso indireto e discurso direto) e as formas marcadas de conotação autonímica (aspas, itálico, comentário, glosa, etc.), as quais agem como marcas de uma atividade de controleregulagem do processo de comunicação. A he­terogeneidade mostrada opõe-se à concepção de homogeneidade do discurso, inscre­vendo, registrando, uma duplicidade de indicações: a linearidade da cadeia vê-se ocu­pada por discursos de estatutos diferenciados, abrindo espaços para a alteridade.. Uma outra língua, um outro registro discur­sivo, um outro discurso (técnico, feminista, moralista, do senso comum, etc.), uma outra modalidade de consideração de sentido e inclusive um outro, o interlocutor, são sinais de heterogeneidade, imiscuindo-se na cadeia do discurso em enunciação. Existem, segundo a autora, formas mais intricadas de heterogeneidade, nas quais o outro não está evidenciado por traços unívocos na frase: o discurso indireto livre, a ironia, a antífrase, a imitação etc., essas não mais no âmbito da “transparência”, da evidência exibida ou falada, mas no nível do implícito, do sugerido, do semi-encoberto. Desse modo, não há uma partição lingüística clara, visível, entre o dito do locutor e o do outro, e as vozes misturam-se nos horizontes de uma só construção lingüística.

Tomando-se por base o corpus analisado neste trabalho, pode-se conceituar ironia como a instauração de um novo significado. Assim, o objetivo de se empregar a ironia em um discurso é o de se evidenciar um confronto entre sentidos diferentes, em que se antagonizam o sentido esperado pelo interlocutor e o sentido que a ironia pre­tenda instaurar. Com certeza, todo enunciado irônico produz, no interlocutor, um im­pacto devido à reconstrução do sentido, e é nesse processo de destruição e de reconstru­ção que se evidencia a heterogeneidade mostrada e a marcada do discurso, produzindo significado. Além disso, a ironia embasa-se em fatos do senso comum, que estabelecem uma idéia conhecida, facilitando a compreensão por parte do interlocutor. Assim, a efe­tividade da ironia condiciona-se a um prévio conhecimento da realidade do seu enun­ciado e à observação atenta do interlocutor para a forma como os vocábulos são articu­lados prosodicamente.

 

3.            A  Prosódia

 

Uma das formas empregadas para se demarcar o uso da ironia, no discurso jurídico, é a pausa  entre os constituintes prosódicos. Além dessas pausas, há alongamentos em sílabas pretônicas, deslocamentos de acentos secundários e ênfase do acento secundário das palavras, ocorrências que não são usuais na língua portuguesa, o que aponta para novos significados no discurso. Conforme Nespor e Vogel (1994, p.13), a Teoria Prosódica caracteriza-se pela representação mental da fala como segmentada em fragmentos hierarquicamente organizados. No decorrer típico da fala, esses fragmentos mentais – os constituintes prosódicos da gramática – estão marcados com diversificadas classes de sinais, que abrangem desde modificadores segmentais até trocas fonéticas mais sutis. Assim, cada constituinte prosódico atua como lugar de aplicação de regras fonológicas específicas e de processos fonológicos.

Além da entonação e da duração, outro elemento supra-segmental que precisa ser analisado é o acento, o qual será relacionado aos exemplos do corpus que apresentam o deslocamento ou a ênfase do acento secundário em palavras usadas com ironia. Como ressalta Matzenauer-Hernandorena (1999, p.74), as línguas podem apresentar três tipos básicos de acento:

a)      acento primário: é o acento mais forte de uma palavra. Ex.: cása.

b)     acento secundário: é o acento relativamente menos forte que o acento primário de uma palavra. Ex.: dócemente

c)      acento principal: é o acento mais forte de uma seqüência de palavras. Ex.: vamos cantár.

Assim, além do acento primário, as palavras também podem apresentar o acento secundário, cujo grau de tonicidade é relativamente menor. É importante que se explicite, ainda, a possibilidade de variação da posição do acento secundário inicial. Isso porque, quando o número de sílabas pretônicas é ímpar, a construção de constituintes binários apresenta um constituinte defectivo na margem esquerda da palavra, efetivando-se um choque de acento entre a primeira e a segunda sílaba. Collischonn (1999, p.155), ao referir Haraguchi (1990), afirma que um dos dois acentos em choque é variavelmente desconsiderado por uma regra (Apague α), produzindo ora o acento secundário na primeira sílaba, ora na segunda sílaba da palavra.

No corpus aqui estudado, verificaram-se diversas ocorrências de variação do acento secundário quando o número de sílabas pretônicas era ímpar, tendo prevalecido, nesses casos, a atribuição do acento à primeira sílaba da palavra, como se pode observar em:

responsabilidade

planejamento

ludibriada

O contraste decorrente do uso da ironia é explícito no texto, sendo assi­nalado, para o sujeito ouvinte, através das marcas prosódicas de alongamento da sílaba tônica e do deslocamento ou ênfase do acento secundário. Apontando para uma reestruturação de saberes, causando impacto e fazendo instaurar-se um processo de subjetivação diferen­ciado, a ironia coloca em jogo, de forma marcada, um outro sentido. Ela se constitui, assim, como um caso de heterogeneidade do discurso. Retomando as palavras de Authier-Revuz (1990), a heterogeneidade do discurso encontra-se influenciada pelos outros discursos, sabidos e propalados através do dialogismo, e pelo Outro do discurso, instaurando um significado que emerge do inconsciente.

No discurso analisado neste trabalho, detectam-se, em palavras com funcionamento irônico, recursos prosódicos como o alongamento da sílaba tônica e o deslocamento ou ênfase do acento secundário, os quais permearam a retórica do promotor, tendo contribuindo para que ele captasse a atenção dos jurados e para que os convencesse, levando-os à decisão desejada pelo sujeito discursivo.

No julgamento de Rubens Amaral, os principais objetivos do promotor eram desmistificar o depoimento das novas testemunhas arroladas no processo e mostrar a vítima como uma pessoa coerente com seus ideais de sindicalista, esta buscando não arruaças e desordem, mas justiça social.

No outro julgamento, o de Mara Elaine Ferreira Santos, a argumentação do promotor objetivou provar a co-autoria da ré no assassinato do próprio pai da acusada. Para tanto, o representante do Ministério Público valeu-se de determinados fatos, uma vez que não havia provas materiais contra Mara Elaine, mas apenas o registro de certas circunstâncias, as quais só seriam possíveis mediante o conhecimento da ré acerca do crime que fora perpetrado. Tais circunstâncias envolviam o fato de que os cúmplices do homicídio haviam sido a mãe e aquele que viria a ser o marido da ré, tendo este contratado um criminoso de aluguel para executar a macabra tarefa e atraído a vítima para o local da execução sumária.

 

4.           Conclusão

 

Durante a análise dos textos integrantes do corpus deste trabalho, constatou-se que afloraram, da memória discursiva, elementos do senso comum, os quais instaura­ram significados usuais em vocábulos do discurso do sujeito enunciador, como forma de tornar as idéias desse discurso mais próximas do cotidiano do sujeito interlocutor.

A ironia, por sua vez, revelou a heterogeneidade mostrada e marcada dos enunciados, tendo sido usada como arma poderosa, pelo promotor, para destruir argu­mentos da defesa. Neste estudo, evidenciou-se que o enunciado irônico constitui-se não só através do contexto discursivo, mas também por marcas prosódicas, sendo que, nos vocábulos sobre os quais a ironia incidiu, houve dois tipos de ocorrências: o desloca­mento do acento secundário, incidindo ele sempre na primeira sílaba das palavras com número ímpar de sílabas pretônicas; e o alongamento do acento secundário dos vocá­bulos, ficando este com intensidade quase igual à do acento primário. No tocante às marcas prosódicas que denotam ironia, principalmente em relação ao acento secundário, algumas idéias necessitam ser retomadas, ao final desta análise, para que certos aspectos possam ser mais bem entendidos.

Primeiramente, assinala-se que houve o deslocamento do acento secundário sempre para a borda esquerda do vocábulo porque esta constitui o limite – o limite inicial – da palavra, e a atribuição de um acento de intensidade nessa posição implica uma pausa em relação ao precedente, fato que oportuniza a saliência fonética da palavra em meio ao enunciado. A esse respeito, destaca-se que o promotor atribuía maior intensidade à sílaba com acento secundário do que se verifica costumeiramente no discurso “comum”.

Deve-se observar, ainda, que houve o deslocamento do acento secundário em palavras cujo significado era fundamental para a constituição da argumentação do promotor e, conseqüentemente, para o convencimento dos jurados. Sobre essas pala­vras, marcadas prosodicamente, incidia-se, então, a ironia, o que ocorreu, particular­mente, em advérbios e adjetivos. Desse modo, as qualidades atribuídas ao réu ou à ré, nos dois julgamentos, foram usadas ironicamente, pelo promotor, numa forma de tornar o seu efeito contrário ao esperado pelo advogado de defesa, destruindo seus argumentos.

A maioria das palavras ou expressões usadas ironicamente em que houve o alongamento da sílaba tônica fizeram parte de enunciados proferidos pelo promotor, não tendo ele retomado a argumentação do adversário. Além disso, elas serviram para fortalecer a culpabilidade dos réus. Já no caso das ironias centradas na ênfase ou no deslocamento do acento secundário, de maneira geral, estas retomaram argumentos utilizados pelo advogado de defesa ao inquirir as testemunhas, ou ainda idéias expressas pelas testemunhas no interrogatório do júri ou no desenrolar do processo.

Para que o resultado da contenda pendesse para o lado do acusador, era ne­cessário que as ironias fossem entendidas pelos interlocutores, os jurados, e, talvez por isso, ainda que inconscientemente, o promotor tenha empregado o recurso de marcá-las prosodicamente. O resultado disso foi que, nos dois julgamentos, a verdade do promotor foi aquela que prevaleceu entre os jurados, vitória essa que foi possível porque o su­jeito discursivo soube se valer de recursos retóricos bastante marcantes, como a ironia, empregando-os contra os argumentos mais importantes do seu adversário.

Para fazer justiça, os jurados embasam-se na verdade, a qual é expressa com maiores recursos de convencimento pela oratória mais bem articulada, que faz emergirem elementos da memória discursiva que se atualizam historicamente, agindo como se fossem criados presentemente e dando a ilusão de que o sujeito é o dono do seu dizer. Assim, só através da análise, amparada na materialidade discursiva, é que se pode entender o modo como os sentidos, os sujeitos e seus interlocutores são constituídos como efeitos de sentidos filiados a redes de significação.

 

 

Rederências Bibliográficas

AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos,  p.25-42, jul./dez. 1990.

______.  Palavras incertas: as não coincidências do dizer. Campinas, São Paulo: Editora UNICAMP, 1998.

CAGLIARI, L.  Elementos de fonética do português brasileiro. 1981. Tese (Doutorado) – UNICAMP, 1981.

COLLISCHONN, G.  O acento em português.  In: BISOL, L. (Org.).  Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro.  2. ed. rev. ampl.  Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.  p.125-58.

DUCROT, O.  O dizer e o dito.  Campinas, SP: Pontes, 1987.

ERNST-PEREIRA, A. Da inconsistência do humor, o contraditório da vida, o discurso proverbial e o discurso de alterações. 1994. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 1994.

FOUCAULT, M.  A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1995.

______.  A ordem do discurso.  São Paulo: Loyola, 1998.

______.  Vigiar e punir.  Petrópolis: Vozes, 2000.

GONÇALVES, C.  Estratégias de focalização no português brasileiro. Rio de Janeiro: Assel/Rio/UFRJ/FAPERJ, 1998.

 

GUERRA, J.B. A Arte de Acusar. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.

 

HAROCHE, C.  Fazer dizer querer dizer.  São Paulo: Hucitec, 1992.

 

HUTCHEON, Linda. Teoria e Política da Ironia. Belo Horizonte: UFMG, 2000.

 

MATZENAUER-HERNANDORENA, Carmen Lúcia.  Introdução à teoria fonológica.  In: BISOL, Leda (Org.).  Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro.  3. ed. rev.  Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001.  p.11-89.

 

MUECKE, D. C.  A ironia e o irônico. São Paulo: Perspectiva, 1995.  

PÊCHEUX, M.  Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Campinas, SP: UNICAMP, 1997a.

­­­­­­­­­­­______. O Discurso estrutura ou acontecimento. Campinas, SP: Pontes, 1997b.

ORLANDI, E.  Destruição e construção do sentido.  Campinas, SP: COMUT, 1983.

­­______.  Análise de discurso.  Campinas, SP: Pontes, 1999.

______.  Discurso e texto.  Campinas, SP: Pontes, 2001.

SPERBER, D.; WILSON, D.  Les ironies comme mentions.  Paris: Seuil, 36, 1978.

                        

 



[1] Segundo Guerra (1998), esses apartes dão vida ao debate, despertam a atenção da opinião pública e, principalmente, são importantes para evitar a mentira, esclarecer o Júri e arrasar o adversário.