A oralidade do Rap – A Oficina de Poesia aos Jovens do Rap da Serrinha
Cleber Rosso Bicca (UFSC)
Palavras-chaves: oralidade, rap, pedagogia da autonomia.
Através do
projeto de extensão “Oficina de Poesia aos Jovens do Rap da Serrinha”
desenvolvido pela Prof.ª Dr.ª Alai Garcia Diniz (UFSC), realizaram-se
atividades que incentivaram jovens à inclusão social através do rap.
Utilizaram-se vários estímulos: a arte da palavra cantada; o estímulo a ações
criativas e solidárias; ações de arte como forma de cidadania; incentivo ao
não-uso de drogas e violência e o desenvolvimento de uma visão crítica e
autônoma da realidade.
Em uma
sociedade neoliberal, globalizada, com claras distinções sociais, preconceitos
e discriminação de classe, gênero e etnia, as vozes desta grande massa de
pessoas oprimidas por uma realidade cruel e ideologicamente formada não
encontram um meio de expressão. Cada vez mais, sociedade letrada, que domina os
meios de comunicação, a indústria midiática, do poder econômico e político, se
esvazia de humanismo em prol dos
interesses de mercado, inculcando nesta massa uma pseudo-percepção do mundo, na
qual, eles próprios são os responsáveis pelo estado social-econômico em que se
encontram. E ao adotarem esta falsa percepção do mundo, estas comunidades
“marginais” acabam aceitando como fatalismo o que lhes acontece, como a fome,
desemprego, a falta de moradia e a violência, levando consigo, introjetando em
si uma culpa indevida, um opressor que lhe seguirá como sombra invasora. Sombra
opressora que vai se somatizando a identidade, principalmente dos jovens
periféricos, que se encontram à mercê
do estilo de vida consumista e discriminatório produzido por essa elite à qual
logram em alcançar.
Que podem os professores, enquanto
educadores, possuidores da responsabilidade da transmissão de conhecimentos
técnico-culturais, fazer neste caso? Qual o compromisso de cada educador com
estas pessoas, principalmente de áreas periféricas?
Dentro da pedagogia da autonomia, de Paulo Freire,
cabe aos professores trabalhar a identidade cultural dos educandos, não os
deixando a mercê de uma política determinista neoliberal, desenvolvendo junto à
eles a capacidade de, criticamente, avaliar a sua forma de intervenção no
mundo. Identidade esta que nunca está completa, que, como diz Stuart Hall, “é definida historicamente e não
biologicamente” (HALL, 2005, p.13), e está sempre fragmentada, sempre
requer uma auto-crítica. Freire nos diz:
Uma das
tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições
em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor
ou professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se com ser
social e histórico como ser pensante, comunicantes, transformador, criador,
realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. (FREIRE, 2005,
p.41)
Um educador
que deseje auxiliar os educando a desenvolverem uma visão crítica, à uma tomada
de posição frente a este realidade que lhe impõem,
um educador progressista, tem o dever de estimular a curiosidade em sala de aula. A curiosidade é inata ao serem
humanos – a diferença entre uma observação de um fenômeno entre uma pessoa
comum e um cientista é o grau de curiosidade que cada um desenvolve. “O que
precisa é possibilitar, que voltando-se sobre si mesma, através da reflexão
sobre a prática, a curiosidade ingênua, percebendo-se como tal, se vá tornando
crítica” (FREIRE, 2005, p. 39), o que exige “pensar certo”, que nas palavras de Freire (p.37) é “um ato comunicante. Não há por isso um pensar
sem um entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo , não é
transferido e sim mas co-participado. ” Isso descarta o modo tradicional de
ensino, cujo elitistimo autoritário, hierárquico e unidirecional, o ensino “bancário” que Freire tanto ataca em suas
pedagogias.
A este tipo de
educador, progressista, lhe é necessário uma série de saberes descritos nesta
pedagogia. Entre outros, implica em:
·
Defender a ética humana;
·
Conhecer a realidade social, cultural e econômica dos educandos, e o
reconhecimento do condicionamento do
educando por esses meios e não o determinismo
ou fatalidade de sua presença no
mundo;
·
Medir os níveis de curiosidade, através do qual possibilitará
desenvolverem meios e métodos adequados aos educandos;
·
Não discriminar, sejam em palavras ou gestos, seus educandos (gênero,
classe, etnia, cultura ou credo religioso);
·
Querer bem a eles como ser humano (sem fazer o papel de assistente
social ou psicólogo, o que não seria ético);
·
Acreditar na sua capacidade do educando ser crítico à sua realidade;
·
Não ser autoritário nem licencioso;
·
Saber escutar e falar com o
educando e não à ele;
·
A necessidade de comprometimento com os educandos e com o conhecimento
que nunca é “acabado”.
·
Estar em constante processo de autocrítica de seu trabalho
Os professores
de línguas estrangeiras (LE), em especial, possuem o espaço necessário para a
realização da construção do conhecimento e
aplicação destas alternativas pedagógicas. A aula de LE permite que se trabalhe
o conteúdo de forma crítica, uma vez que no próprio diálogo destes discursos se
trabalhe as formas estruturais, significativas e gramaticais, usando a língua
como meio de construção de sentidos. No ensino “bancário”, a despreocupação com
aspectos do significado, faz, muitas vezes, professores trazerem textos em LE
sem se perguntarem qual a proximidade dos textos com os educandos. Às vezes,
textos sobre nomes de substantivos em LE, como alimentos, hotéis, formas de
transportes, que mais do que desconhecimento, é a abstração da informação
frente ao educando. Por isso, frequentemente, a aula do professor de LE é vista
como a “perfumaria da escola”, onde
os educandos irão aprender como se fala trem,
navio, o nome pratos típicos em uma LE, sem, muitas vezes, usufruírem dos meios
de transportes mais básicos como onibus ou mesmo não tendo alimentos em sua
mesa. Há uma necessidade de um olhar do educador para o público alvo do ensino
de LE.
Há necessidade
de incorporar o cotidiano como alimento
à crítica da sociedade; nisto a oralidade desempenha um papel fundamental. O
termo oralidade pode ser visto como a ação da voz, de como o discurso, o
retrato de uma vivência, se difunde. A oralidade, em uma tradição oral
marginal, pode ser vista, de acordo com Zumthor, como processo de produção,
conservação e repetição de conteúdo social através da voz. A repetição
de fatos, de maneira a que se preservem e transitem temas relacionados com uma
comunidade específica. A oralidade por sua vez, não só é um texto; é um evento,
uma performance, e ao estuda-la
sempre devemos fazer referencia à um determinado tipo de interação social.
Tanto para Paul Zumthor, quanto para Victor Vich, a oralidade se constitui de
um circuito comunicativo onde vários
determinantes se dispõem para constituí-la. A partir de um resgate do
cotidiano, o conhecimento de domínio popular ou o próprio meio social é
transladado pelo educador ao
seu discurso, possibilitando assim trabalhar, antes que a gramática e a
sintaxe, a visão da realidade formada pela ideologia neoliberal, o que possibilita
ao educando conhecer sua falta de conhecimentos específicos, e a
impossibilidade de aceitar a realidade de forma fatalista, como “tendo de ser assim”. A performance,
“se
entende como o espaço encarregado de dramatizar tais características e de revelar
as possibilidades,de atuação dos sujeitos na constituição do mundo social: ela
nos permite visibilizar os processos de
constituição das identidades nos seus múltiplos negociantes frente ao poder”
(VICH, ZAVALA, 2004, p. 13)
Entre os
vários meios e textos que um professor pode utilizar para essa retomada da
oralidade, está a música. Principalmente em regiões marginalizadas, a música,
neste caso o rap, cria, por excelência, um território de resistência, fornece
amplo palco ao ensino pluri-interdisciplinar. O rap, derivado da vertente da
cultura hip hop, é “originário dos EUA, difundiu-se como cultura juvenil
internacional, assumindo uma trajetória e significados específicos no Brasil”
(DAYRELL, 2005, p.42). Em sua gênese, esse estilo musical, um grande galho da
arvore que é a musica negra, deriva, segundo Dayrell (2005, p. 45) “do soul – uma feliz junção do rhythm and blues, uma música profana,
com o gospel, música protestante
negra”. O rap teve importante participação no processo de visibilização dos direitos
da comunidade afrodescendente nos EUA, principalmente nos anos 60, onde os
compositores, escritores e artistas em geral deram inicio ao processo de orgulho
negro, através do qual se comprometeram em resgatar a poesia da rua e, com
estilos próprios, retransmiti-la.
No Brasil, o rap adentrou via São Paulo, e hoje é
gênero musical comum na maioria dos estados. Porém, como nos EUA, mais que
apenas pela qualidade sonora, o rap
ascendeu por causa do conteúdo de suas letras. Letras que, carregadas com o odor
das ruas, retomam a realidade em uma experiência crítica. Artistas como MvBill,
Facção Central, Racionais Mc’s conseguem recuperar e problematizar a meio
social de morros e favelas, ocasionando a discussão sobre a violência, drogas,
criminalidade, convivência familiar e comunitária.
O educador
progressista de LE pode, ao utilizar o rap, encontrar a possibilidade focalizar
a interrogação crítica e o debate de situações apresentadas pelo o que seus
alunos ouvem, possibilitando a formação estudantes cientes de como as relações
de poder, dos modelos formulados pela cultura de massa e instituições, o
influenciam culturalmente para manter a estrutura dominantes/dominados e
desenvolvem a afinidade do educandos com a LE.
Há uma grande variedade de grupos e rappers que cantam em LE. No
trabalho que desenvolvo junto ao NELOOL, já verifiquei a existência desses
artistas em todos os paises da América Latina, Europa, China, Japão. O uso de
um rap em LE na sala de aula de periferias aproxima o aluno ao texto, despertando
sua curiosidade, o prazer do texto,
pois como Barthes nos diz, “texto de prazer [é] aquele que contenta, dá
euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma
prática confortável da leitura” (2002, p.20). Ao observar o educando, sua
postura, sua fala e seus gestos frente ao rap é possível identificar e
visibilizar sua curiosidade e retomar o que podemos chamar ampliação da lição-zero, descrita por Lima (2002), na
qual, após recuperar o conteúdo lingüístico que os alunos conhecem, incentivando-os
assim a expressarem em LE os conteúdos conhecidos, pode-se trabalhar o entorno
social que precede a cada aluno. A partir da introdução do rap, termos e
expressões que lhes são comuns na fala
do cotidiano adquirem similares em LE. Essa ponte, feita através de um rap,
poderá possibilitar ao educador interação com o educando uma vez que passa a
conhecer a sua realidade, a partir do momento que passa conforme Freire a falar
com ele e não à ele. Os resultados irão
gerar uma autonomia, um construção de conhecimentos ambivalentes,
bi-direcionados, novos, tanto para o educando quanto para o educador.
Claro que a
aula de LE não deve transformar-se em um comício, onde idéias libertárias sejam
incentivadas a gritos. Porém, é dever do professor progressista assumir-se
enquanto educador e deixar que seus exemplos demonstrem sua posição,
possibilitando ao educando criação e compreensão da justa raiva, a indignação frente às injustiças que lhe são
impostas. Isso fará com que ele tome consciência da necessidade de mais
conhecimento e incentive a busca autônoma. “O que posso e o que devo fazer é,
na perspectiva [de educador] progressista em que me acho, ao ensinar-lhe certo
conteúdo, desafiá-lo a que se vá percebendo na e pela própria prática, sujeito
capaz de saber.”
É provável que
um professor autoritário diga que não isso é responsabilidade do professor de
LE e sim dos professores de filosofia ou de outros programas governamentais de
assistência, e veja com um olhar fatalista do “não a nada a ser feito”. “Se a
educação não é a chave das transformações sociais, não é também simplesmente
reprodutora da ideologia dominante” (FREIRE, 2005, p. 112).
Com este olhar, as atividades desenvolvidas pelo NELOOL, através do
Departamento de Extensão, junto aos jovens do bairro Serinha em
Florianópolis-SC, privilegiam, em primeiro plano, a formação de uma identidade
dos alunos. Os encontros, sediados em um centro comunitário do próprio bairro,
intercalando com encontros na sala do NELOOL. A preocupação com a criação de
uma identidade não deixa de lado a preocupação com a necessidade de instigar
eles a curiosidade, a necessidade de
junto com o monitor realizarem atividades, como brainstorms, jograis, leituras de poesia marginal, poesia modernistas,
análises de rap.
Focalizo, agora um exemplo de possível trabalho a ser desenvolvido com o
rap. Trata-se de um rap hispânico, do
rapper Zenit. Junto a um excerto do rap Suelo
Soñar, pode-se assinalar
1. Suelo
soñar y no me gusta, hay estrés cuando despierto me doy cuenta, me gusta más mi
vida
2. Suelo
soñar com que soy niño y que siendo más mayor aquella meta nunca será
conseguida
3. Suelo
soñar que no manejo bién el micro y cada frase queda muda ante la ira del que
mira
4. Suelo
soñar com que mi DJ ya no picha, no el mundo se detiene y esse platô ya no gira
5. Suelo
soñar que pido pasta por la calle y p’a comer
he de ponerne em uma interminable fila...
6. Suelo
soñar que ahora soy un mecanismo de juguete y solo funciono se me ponem uma
pila
7. Suelo
soñar que hago el payaso como un mono cuando tengo que luchar y convertime em
un gorila
8. Suelo
soñar que soy un pez muy chiquitito y cuando quiero darme cuenta soy tragado
por Godzilla
9. Suelo
soñar que nadie escucha lo que digo, nadie sigue a quien yo sigo un color: lila
10. Suelo
soñar que ya no tengo personalidade y todo lo que pienso está metido en tu
mochila
11. Suelo
soñar que mi actitud está torcida y que ahora soy un homicida esclavizado por
la bebida
12. Pero
despierto e mi mente ya respira
13. Ya soy
fuerte en realidad
14. Suelo
soñar y sueñocon mentiras.
Alem dos aspectos formais da música como a melodia e o ritmo, o educador
poderá utilizar o rap para apresentar a noção de rimas, (neste caso
assonantes), métrica (aabbcccccccdexe), aliteração(como no inicio dos versos)
antítese poética (12-15). A fonética poderá ser observada, principalmente no
que se refere a pronúncia do ll e o y_, e
suas diferenças com a pronúncia rio-platense ou hispano-américa em geral. Os
tempos verbais e seu uso nesta música,
podem ser uma introdução para alcançar-se a construção de entendimento mais
avançados. Os usos coloquiais de certas palavras com significados estritamente
regionais, como pasta e lila , bem
como o uso de apócopes, contrações (p’a, micro) e os diminutivos (pez muy
chiquitito) poderão ser utilizados como exemplo práticos de uso e aproximarem
os educandos ao interior da
língua. O educador progressista
aproveitará, antes de tudo, a possibilidade de discorrer junto com eles, sobre
como o sonho, neste rap, se refere, antes tudo, à realidade. Todas as negações
pela qual é obrigado a passar, a fragmentação do seu eu, que acabam por fazê-lo
pensar que “não tem mais personalidade” e seu futuro ser “um homicida escravizado pela bebida”. Porém, nos últimos
três versos, o rapper consegue, a partir de um despertar, se torna
possível sua mente respirar, reconhecendo-se como forte, ante as tentativas de ser
anulado em frente a industria cultural e a ideologia neoliberal dominante. Este
exemplo, bastante restrito, refletiu uma das várias leituras e da quantidade de conhecimento que precisa
ser percebido e construído e que um educador pode fazer junto aos seus
educandos, através das aulas de LE em
regiões marginais ao utilizar em sua pratica diária os preceitos da pedagogia
da autonomia..
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