O PROCESSO DE AQUISIÇÃO
DAS LÍQUIDAS LATERAIS NA MANIFESTAÇÃO ORAL
DO PORTUGUÊS BRASILEIRO E DO PORTUGUÊS EUROPEU
Clarissa Diassul da Silva Redmer (UCPEL)
Liliane Goulart Richardt (UCPEL)
Susan Neugebauer Riet (UCPEL)
Carmen Lúcia Barreto Matzenauer (UCPEL)
Palavras-chave: aquisição da fonologia, consoantes líquidas laterais, Português Brasileiro e Português Europeu
1
Introdução
A literatura da área de aquisição da fonologia tem revelado alguns padrões, encontrados em diferentes línguas naturais, com relação à emergência de segmentos. Um desses padrões é a tardia aquisição das consoantes que constituem a classe das líquidas, em relação a outros segmentos.
Partindo do reconhecimento da relevância de se observarem tendências gerais no processo de aquisição da linguagem e da também indispensável identificação de particularidades de língua e/ou de manifestação dialetal, além da constatação do tardio domínio, durante o desenvolvimento fonológico, de consoantes líquidas, realizamos pesquisa com o objetivo de verificar o comportamento das líquidas laterais, em posição de coda de sílaba, por crianças brasileiras e portuguesas. A motivação para o presente trabalho partiu da constatação, por Freitas (2001) e por Matzenauer (2001), de que as líquidas laterais anterior e palatal – /l/ e /´/, respectivamente – podem mostrar diferente ordem de emergência, em posição de onset silábico, em crianças que estivessem em processo de aquisição do Português Brasileiro (PB) e do Português Europeu (PE).
Considerando os resultados de tais pesquisas, duas questões nortearam a presente investigação, as quais aparecem em (1).
(1)
(a) Se há diferença, entre crianças brasileiras e portuguesas, no processo de aquisição do PB e do PE, na emergência das líquidas laterais anterior e palatal, em posição de onset simples de sílaba – sendo que essas duas líquidas têm manifestação fonética, nessa posição silábica, equivalentes no PB e no PE ([l] e [´], respectivamente) –, haverá também diferença de emergência da líquida lateral em coda de sílaba, já que, nessa posição, sua manifestação fonética predominante no PB é como o glide [w] e, no PE, é como lateral velarizada?
(b) Haverá diferença de emergência da líquida lateral, entre crianças brasileiras e portuguesas, quando esse segmento ocupa a coda medial ou a coda final?
2 Bases teóricas da pesquisa
O presente trabalho foi fundamentado em dois modelos da fonologia não-linear: na Teoria Autossegmental (Clements & Hume, 1995) e na Teoria da Sílaba (Selkirk, 1982).
A Teoria da Sílaba foi utilizada porque o estudo refere o comportamento de líquidas laterais em relação a posições silábicas, focalizando a análise especificamente na coda como constituinte da sílaba. Nesse sentido, tomamos como base a proposta de Selkirk (1982), seguindo a Teoria Métrica da Sílaba, que representa os constituintes núcleo e coda vinculados ao nó da rima e que vincula a rima e o onset ao tier da sílaba, conforme é mostrado em (2).
(2) Estrutura interna da sílaba (Selkirk, 1982)
s
(Onset ) Rima
Núcleo (Coda)
A Teoria Autossegmental foi tomada como suporte teórico, porque o presente estudo investiga o processo de aquisição de segmentos. Com essa fundamentação, foi possível analisar a influência da estrutura interna das líquidas laterais na sua integração ao sistema fonológico de crianças brasileiras e portuguesas. Em se tratando da Fonologia Autossegmental, seguimos Clements & Hume (1995), que propõem uma geometria de traços para mostrar que os traços que compõem os segmentos apresentam uma organização hierárquica.
Os pressupostos da Fonologia Autossegmental foram basilares para a revisitação que, no início do estudo, fizemos das análises propostas por Freitas (2001) e por Matzenauer (2001), com relação ao comportamento das líquidas laterais na margem esquerda da sílaba – ou seja, na posição de onset silábico.
Segundo Matzenauer (2001), as quatro líquidas do Português – as duas laterais [l] e [´] e as duas róticas [{] e [r] – mostram algumas características semelhantes e outras diferentes no processo de aquisição do PB e do PE. Uma das importantes diferenças é o fato de que as líquidas não apresentam as mesmas etapas de desenvolvimento fonológico nas duas formas dialetais aqui estudadas. Os estudos sobre a emergência das líquidas em onset silábico simples evidenciam a tendência, na aquisição do PB, ao ordenamento mostrado em (3) (Matzenauer-Hernandorena, 1990; Lamprecht, 1990; Miranda, 1996; Azambuja, 1997; Rangel, 1998).
(3) PB: [l]> [{]> [´] > [r]
Diferentemente, as pesquisas sobre a aquisição do PE mostram a tendência a outro ordenamento, como se vê em (4), sendo predominante, segundo Freitas (1997), o ordenamento mostrado em (4b), com a emergência simultânea das duas líquidas laterais.
(4) PE: (a) [l] > [´] > [{]> [r] ou
(b) [l] / [´] > [{]> [r]
É interessante salientar que a ordem de aquisição identificada como a mais freqüente em crianças falantes de PB também foi observada em casos de desvios fonológicos (Keske-Soares, 2000).
Focalizando-se apenas as duas líquidas laterais [l] e [´], destacamos que, para Matzenauer (1999, 2001), a emergência mais tardia da lateral palatal, no processo de aquisição da fonologia por crianças brasileiras, deve-se ao fato de essa ser uma consoante complexa, ou seja, a sua estrutura interna contém uma articulação primária consonantal e uma articulação secundária vocálica, conforme é mostrado em (5b). Diferentemente, a líquida lateral alveolar, de aquisição mais precoce, é uma consoante simples, apresentando uma só articulação oral, como pode ser visto em (5a).
(5)
(a) (b)
A estrutura interna complexa para a lateral palatal, seguindo Giangola (1994) e Wetzels (1992, 1997), foi proposta pela autora a partir de evidências encontradas no processo de aquisição da fonologia do PB. Foi observado que a líquida palatal, nesse processo, pode ter, como manifestações fonéticas, todas as formas apresentadas em (6).
(6)
[Æ] ~ [j] ~ [l] ~ [lj] ~ [li] ~ [´]
palhaço [pa’asu]
vermelha [ve’meja]
espelho [i’pelu]
folha [‘folja]
orelha [o’relia]
telhado [te’´adu]
Especialmente pelo fato de a líquida /´/ poder ter, em seu lugar, as realizações como glide coronal [j], como a seqüência [lj] ou como a seqüência [li], há possibilidade efetiva de a autora defender a presença de um nó vocálico na estrutura interna da lateral palatal. E devemos observar que esses três tipos de manifestações fonéticas da lateral palatal ocorre não somente na fala de crianças, mas também é encontrada na fala de adultos.
Freitas (2003, p.220) observa que, em se tratando da aquisição do PE, as crianças mostram realizações fonéticas diferentes das crianças brasileiras. O emprego de formas fonéticas representativas da líquida /´/, no processo de aquisição do PE, aparece em (7).
(7)
[Æ] ~ [j] ~ [l] ~ [´]
coelhinho [kw’iâøu]
olha [’j]
colher [ku’lElS]
vermelha [vö’me´]
Como as crianças portuguesas não empregam as seqüências [lj] e [li] em lugar da palatal /´/ no processo de aquisição do PE, as quais representam uma fissão na representação complexa da estrutura interna da lateral palatal mostrada em (5b), Freitas (2001) defende que as laterais palatais são processadas, pelas crianças portuguesas, em um estágio inicial da aquisição, como uma consoante simples, que se distingue da lateral alveolar pelo traço [±anterior][1]. Tal representação da lateral palatal pelas crianças portuguesas explicaria a aquisição simultânea das duas líquidas laterais, bem como o não emprego das seqüências [lj] e [li] em lugar da líquida [´].
Diante da possibilidade de diferentes representações para a lateral palatal entre crianças portuguesas e brasileiras, buscamos, então, analisar o processo de aquisição da líquida lateral também na margem direita da sílaba – ou seja, na posição de coda silábica –, a fim de confrontarmos as etapas de desenvolvimento que particularmente a líquida lateral anterior apresenta nas duas margens silábicas.
3 Aspectos
metodológicos da pesquisa
O corpus da investigação foi constituído por dados de crianças brasileiras e portuguesas, com idade entre 1:3 a 2:5 (anos: meses). Os dados de crianças brasileiras foram retirados do Banco de dados AQUIFONO, existente na Universidade Católica de Pelotas (UCPEL) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Para analisarmos os dados de crianças portuguesas na faixa etária mencionada, utilizamos o corpus da tese de Maria João Freitas, da Universidade de Lisboa (Freitas, 1997).
O corpus do PB foi transcrito foneticamente e, subseqüentemente, para responder às perguntas propostas pelo presente trabalho, foi submetido a um levantamento das ocorrências quando o alvo era uma líquida lateral em coda, com o registro do número de todas as realizações verificadas. O corpus do PE foi submetido ao mesmo levantamento de realizações fonéticas do segmento-alvo [l] em posição de coda silábica.
4 Resultados
Em virtude de a realização fonética predominante da líquida lateral em coda ser o glide [w] na região em que vivem as crianças falantes de PB informantes desta pesquisa, e de a realização fonética da lateral em coda silábica, na comunidade em que vivem as crianças falantes de PE informantes desta pesquisa, ser a lateral velarizada [Â], esperávamos encontrar diferenças no processo desenvolvimental das duas formas do Português. E foi exatamente isso que os dados analisados confirmaram.
4.1 A aquisição da líquida lateral em coda
silábica nos dados do PB
No corpus aqui analisado relativo ao processo de aquisição do PB, a lateral em coda apresentou apenas duas manifestações fonéticas, que estão apresentadas em (8): um zero fonético ou o glide dorsal [w]. Lembramos que o glide [w] é a forma fonética, para a lateral em coda, empregada predominantemente pela comunidade em que as crianças aqui pesquisadas estão inseridas. As idades em que tais manifestações fonéticas ocorreram estão entre parênteses (anos: meses, dias).
(8)
[Æ] ~ [w]
(a) (b)
coda medial coda final
balde
[‘badZi]
(1:4,6) azul [a’zu]
(1:9,9)
fralda [‘fada] (1:9,22) gol [‘gow] (1:4,12)
pulseira [pu’sera] (2:2) Brasil [ba’ziw] (1:11,15)
bolsa [‘boSa] (1:9,22) papel [pa’pEw] (1:6,26
balde [‘bawdZi] (2:3,20) jornal [Zo’naw] (2:5)
soldado [sow’dadu] (2:5) sol [‘sw] (2:5)
bolsinha [bow’siâøa] (2:5) anel [a‘nEw] (2:5)
Os dados em (8) evidenciam que o comportamento da lateral em coda, no processo de aquisição da fonologia da língua por crianças brasileiras, mostra três estágios desenvolvimentais, apresentados em (9).
(9)
1º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda, tanto medial como final, por um zero fonético;
2º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda final pelo glide dorsal [w];
3º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda medial pelo glide dorsal [w].
4.2 A aquisição da líquida lateral em coda
silábica nos dados do PE
No conjunto de dados produzidos por crianças portuguesas, até a idade de 2:5, verificamos que a lateral em coda apresentou três manifestações fonéticas, que estão apresentadas em (10): um zero fonético, o glide dorsal [w], ou a líquida velarizada [Â].
Como a forma fonética alvo para a lateral em coda, na comunidade dessas crianças, é a lateral velarizada [Â], pelos dados mostrados em (10) podemos ver que, até a idade pesquisada, essa forma alvo não teve uma única produção, o que comprova sua aquisição mais tardia. Para verificarmos de forma mais completa o processo de aquisição da lateral em coda durante a aquisição do PE, avançamos o levantamento de dados em crianças portuguesas até a idade de 3:3, quando, então, já há a manifestação da lateral velarizada em posição de coda. Os dados aparecem em (10).
(10)
[Æ] ~ [w] ~ [Â]
(a) (b)
coda medial coda final
fralda [‘kata] (1:5,11) caracol [k] (1:3,8)
fralda [‘fad] (1:11,10) jornal [u’naw] (1:9,29)
calção [ka’Sâwâ] (2:4,3) pincel [‘sEw] ~ [pi’SEÂ] (2:7,0)
falta [‘fat] (2:8,27) sol [SÂ] ~ [sÂ] (2:8,19)
fralda [fö’rawd] (2:6,26) mal [maÂ] (3:3,10)
fralda [‘fawdj] (3:0,1)
saltar [saÂ’tar] (3:3,10)
Fato importante a registrar na observação dos dados da aquisição do PE – que não ocorreu nos dados do PB – é que o espaço que seria destinado à lateral em coda final, somente quando houve um processo de ressilabação causado pela epêntese de uma vogal no final da palavra, foi ocupado pela lateral anterior [l], que passou, então, para a posição de onset de sílaba. Essa operação mostrou-se freqüente nos dados e está exemplificada em (11a), sendo que inclusive há também a epêntese de vogal com a forma fonética com o glide [w], como mostram os exemplos em (11b), em fase mais inicial do processo de aquisição.
(11)
(a) (b)
azul [’zolö] (2:3,26) azul [’suwö] (1:9,29)
azul [’Zulö] (2:2,3) azul [Suwö] (1:11,20)
mal [‘mal] (1:5,17)
papel [p’pEli] (2:2,17)
Natal [t’tali] (2:2,17)
azul [’zuli] (2:7,0)
Retomando-se os dados mostrados em (10), podemos interpretar que o comportamento da lateral em coda, no processo de aquisição da fonologia da língua por crianças portuguesas, mostra cinco estágios desenvolvimentais, apresentados em (12).
(12)
1º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda, tanto medial como final, por um zero fonético;
2º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda final pelo glide dorsal [w];
3º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda medial pelo glide dorsal [w];
4º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda final pela lateral velarizada [Â];
5º Estágio – ocupação do espaço da lateral em coda medial pela lateral velarizada [Â].
4.3 Comparação dos resultados da aquisição da
líquida lateral em coda silábica nos dados do PB e do PE
Os resultados aqui apresentados, especialmente o estabelecimento de estágios para a aquisição da lateral em posição de coda, mostrados em (9) e em (12), dão suporte a uma resposta afirmativa à primeira questão de pesquisa proposta neste trabalho – podemos afirmar que, sim, há diferença de emergência da líquida lateral em coda de sílaba, no processo de aquisição da fonologia por crianças brasileiras e portuguesas. E essa diferença pode ser motivada por uma diferença de representação fonológica que crianças brasileiras e portuguesas têm desse segmento lateral: as crianças brasileiras podem ter, no início do desenvolvimento fonológico, a representação de uma vogal /u/ no espaço da lateral, enquanto as crianças portuguesas podem ter, desde a sua integração ao sistema, a representação fonológica de uma líquida lateral. Tal diferença de representação estaria relacionada às diferentes formas fonéticas que esse segmento apresenta: enquanto, em coda, a lateral tem o glide [w] como manifestação fonética predominante no PB, no PE, a manifestação fonética predominante é a lateral velarizada [Â].
Se essa representação como vogal /u/ na forma fonológica realmente ocorrer no processo de aquisição do PB, em etapa subseqüente as crianças fazem uma alteração nessa representação, passando-a para a líquida lateral. O fato de as crianças brasileiras terem a lateral, em posição de coda, em palavras como bolsa (/bolsa/), por exemplo, em sua representação fonológica, em etapa mais avançada do desenvolvimento, pode ser comprovado por resultados alcançados por Bonilha (2000), os quais evidenciam que as crianças têm a estabilização mais tardia, em seus sistemas fonológicos, dos ditongos decorrentes de semivocalização da líquida em coda (Ex.: /fralda/ [‘frawda]) do que os ditongos decorrentes de uma seqüência de vogais na representação fonológica (Ex.: /leite/ [‘lejtSi).
Quando as crianças brasileiras passam a ter a realização do glide [w] em coda como representante da líquida lateral, é porque já aplicaram duas regras fonológicas a essa líquida em coda: primeiro, a transformam em uma consoante complexa, com uma articulação primária consonantal, e uma articulação secundária vocálica, e, depois, desligam a articulação primária consonantal, ficando apenas com a articulação vocálica. É esse o encaminhamento ao fenômeno da vocalização da lateral em coda, tanto proposto por Quednau (1993), como por Espiga (1997, 2001). As representações correspondentes a essas regras aparecem em (13).
(13)
(a) /l/ à (b) [Â]
à [w]
x
x x
r r r
CO CO CO
PC PC PC
[cor] [cor] VOCÁLICO [cor] VOCÁLICO
[dorsal] Ab [dorsal] Ab
[-ab 3] [-ab 2]
[-ab1] [-ab 1]
[-ab 2] [-ab 3]
Assim, a forma fonética [w] para a representação fonológica de /l/ em coda silábica exige uma operação de certo grau de complexidade, que as crianças brasileiras parecem adquirir um pouco mais tardiamente.
Diferentemente, as crianças portuguesas, desde o início da integração da lateral em coda ao seu sistema, teriam a sua representação fonológica como líquida lateral, realizada foneticamente como lateral velarizada, conforme aparecem em (13b). Como a forma fonética da lateral velarizada é mais complexa, por ser uma consoante com duas articulações orais simultâneas – uma primária consonantal e uma secundária vocálica –, essa surge mais tardiamente na fonologia das crianças portuguesas[2].
Por essa dificuldade fonética da lateral velarizada, quando as crianças portuguesas empregam o glide [w] em seu lugar, estão desligando a articulação consonantal primária. Por outro lado, quando empregam a lateral anterior [l] juntamente com epêntese de uma vogal final – conforme mostram os exemplos em (11a) –, as crianças portuguesas estão desligando o nó secundário vocálico da consoante lateral velarizada. Assim, a lateral em coda, no processo de aquisição do PE, é de emergência mais tardia do que no processo de aquisição do PB por duas razões fundamentais: primeiro, por questão de representação fonológica e, também, em razão da dificuldade de produção fonética da consoante complexa que é a lateral velarizada [Â].
5
Considerações finais
Os resultados apontam para duas importantes diferenças, no processo de aquisição da lateral em coda silábica, por crianças brasileiras e portuguesas, as quais aparecem resumidas nos itens seguintes:
(a) há diferentes estágios de aquisição, sendo que crianças brasileiras mostram três estágios de aquisição da lateral em posição de coda (ver (9)), enquanto crianças portuguesas apresentam cinco estágios de desenvolvimento (ver (12));
(b) a diferença de estágios de desenvolvimento da lateral em coda, por crianças brasileiras e portuguesas, pode ser decorrente de representações fonológicas diferenciadas que essas crianças tenham desse segmento em coda – em etapa inicial de aquisição, crianças brasileiras podem ter a representação da vogal /u/ no espaço fonológico de /l/ (ex.: /baude/ em lugar de /balde/), o que explicaria a emergência precoce do glide dorsal [w] nessa posição silábica; essa representação poderia ser decorrente de a maior parte dos outputs dos adultos, aos quais as crianças estão expostas, conter esse glide em lugar da lateral em coda, na comunidade brasileira aqui estudada (ex.: [‘bawdZi]). Em momento subseqüente da aquisição, as crianças alteram essa representação, a qual passa a ter, então, uma lateral na forma fonológica (ex.: /balde/). Diferentemente, pelo fato de as crianças portuguesas estarem expostas a outputs dos adultos de sua comunidade com a uma lateral velarizada em coda (ex.: [‘baÂdZi]), a representação que essas crianças formam é de uma consoante lateral, desde que essa coda emerge em seus sistemas fonológicos (ex.: /balde/). Essa diferença de representação explicaria por que crianças brasileiras adquirem, em etapa anterior a crianças portuguesas, a coda com a líquida lateral.
As semelhanças, no processo de aquisição do PB e do PE, quanto à aquisição da lateral em coda silábica podem também ser resumidas em dois pontos:
(a) as manifestações fonéticas, em lugar da coda lateral, são iguais nos primeiros estágios de aquisição para crianças brasileiras e portuguesas: primeiro há um zero fonético e, depois, há o uso do glide dorsal [w] em seu lugar;
(b) o espaço da coda final é preenchido em etapa mais precoce do que o espaço da coda medial, tanto por crianças brasileiras como portuguesas.
Esses dois pontos semelhantes, na verdade, são decorrentes do fato de que, no processo de aquisição da lateral em coda, os três primeiros estágios de desenvolvimento são iguais para crianças brasileiras e portuguesas.
O presente estudo mostra, portanto, que há semelhanças e diferenças entre o processo de aquisição do PB e do PE e que essas diferenças podem ter relação não somente com a realização de formas fonéticas, mas também com representações fonológicas da lateral em coda de sílaba.
6
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[1]
Na verdade, Freitas (2001, p.221) diz que, no 1º Estágio de aquisição, “as laterais são processadas
como exibindo um Ponto de C [coronal] e um nó Vocálico subespecificado, apenas
com a informação no domínio do nó Altura/Abertura” – tal representação
corresponderia a um segmento simples e não a um segmento complexo.
[2] Portanto, segundo a interpretação aqui proposta, a origem do glide dorsal [w] nos outputs de crianças brasileiras e portuguesas, apenas na fase inicial de seu emprego em lugar da lateral em coda, é diferente – nas crianças brasileiras, corresponderia à vogal /u/ na representação fonológica e, nas crianças portuguesas, corresponderia à consoante /l/ na representação fonológica.