AQUISIÇÃO DO PORTUGUÊS BRASILEIRO COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA: UM ESTUDO DE CASO

 

Cíntia da Costa ALCÂNTARA (UFPel)

cintiaca@terra.com.br

 

Segundo Spencer (1991), gênero gramatical e classes lexicais em francês não são, na maioria dos casos, correlacionados entre si. O gênero nos nomes franceses restringe-se a determinar a forma do artigo definido no singular, le/la ‘o/a’ (cf. le muscle [l« myskl] ‘o músculo’, mas la table [la tabl] ‘a mesa’). Isso significa que o sistema de gênero em francês permite que se diferenciem grupos de palavras arbitrariamente construídos, sem que, por via de regra, sejam estabelecidas correlações entre gênero e classes formais nesses agrupamentos. Levando em consideração tais informações, o presente trabalho propõe-se a discutir, à luz da Teoria da Morfologia Distribuída (doravante DM, do inglês Distributed Morphology; Halle e Marantz, 1993, 1994 e outros trabalhos relacionados) possíveis fatores de ordem lingüística responsáveis pelo surgimento de /o/ ou /a/ átonos finais em palavras do Português Brasileiro (PB) que emergiriam com /e/ átono final, produzidas por um falante nativo do francês adquirindo PB como LE (cf. *glota por ‘glote’, la glotte (feminino); *contrasto por ‘contraste’, le contraste (masculino); *arabo por ‘árabe’, l’arabe (masc.)). Os dados exemplificados fazem parte de um corpus de fala espontânea estudado pela pesquisadora. Vale ressaltar ainda que as referidas vogais átonas finais, segundo a abordagem teórica aqui assumida, são a manifestação fonológica de morfemas de classe formal (vogais temáticas), os quais têm caráter puramente morfológico, destituídos de valor sintático.

Estima-se que os resultados do trabalho ora proposto permitam elucidar questões relativas aos mecanismos lingüísticos atuantes na aquisição do PB como LE, seguindo uma hipótese já elaborada pela pesquisadora (Alcântara, 2005), em se tratando do processo de aquisição do PB como LM, sob o enfoque teórico da DM.

 

 

 

 

 

Nas línguas românicas, para só nos atermos a elas, os nomes[1] contêm uma propriedade lingüística idiossincrática – a informação de gênero gramatical.

Relativamente ao francês, Spencer (1991, p. 10) assevera que a informação de gênero serve simplesmente para estabelecer distinções entre agrupamentos de palavras definidos de forma arbitrária, sem que haja outros reflexos morfológicos. Para ilustrar tal informação, aponta-se para o fato de que os vocábulos nominais do francês, diferentemente do que se passa em outras línguas românicas, apresentam, por via de regra, características formais facilmente identificáveis, ou seja, eles não carregam vogais temáticas, como ocorre, por exemplo, com os vocábulos não-verbais do português. Observe-se, em (1), exemplos de vocábulos nominais do francês, nos quais não há concordância de gênero gramatical e classe formal, nos termos da DM. No sistema do francês, à luz dos pressupostos teóricos desse modelo, são os determinantes do nome – por meio da operação de cópia de traço de gênero – que permitirão identificá-lo como feminino ou masculino. O presente trabalho, contudo, não se atém à forma dos determinantes, senão ao que se passa com os vocábulos considerados isoladamente.

(1) Vocábulos correspondentes em francês e português

/aRab/ -> [a'Rab]

l’arabe (masc.);

à  ‘árabe’ (masc.) -> ['aRabi]

/glt/ -> [glt]

la glotte (fem.);

à  ‘glote’ (fem.) ->['gltSi]

/ko)tRast/ -> [ko)'tRast]

le contraste (masc.);

à  ‘contraste’(masc.)   ->   [kõn'tRastSi]

/ko)tRol/ -> [ko')tRol]

le contrôle (masc.);

à  ‘controle’ (masc.)   ->   [kõn'tRoli]

/pRblEm/ -> [pR'blEm]

le problème (masc.);

à  ‘problema’ (masc.) ->  [pRo'blemŒ]

/lE)gçist/ -> [lE)'gçist]

le linguiste (masc.);

à  ‘lingüista’ (masc.)   ->  [li)N'gwistŒ]

    Como se pode observar em (1), os radicais nominais do francês apresentados terminam por segmentos consonantais, clusters ou não, permitidos nessa língua, sem que emerja, contudo, uma vogal à margem direita da palavra, diferentemente do que se passa em português, que exige – salvo no caso de radicais terminados em /r l S N/  – uma vogal em final de palavra, que é identificada como a manifestação fonológica de morfemas de classe formal – as tradicionais vogais temáticas.

Salienta-se novamente que, a despeito de os vocábulos nominais franceses carregarem gênero masculino ou feminino – idiossincrático, no caso dos nomes, e adquirido por concordância, no caso dos adjetivos – ainda assim tal informação não parece ser passível de ser correlacionada a classes formais (i.e., classes temáticas), como acontece em português. Nesta língua, grande parte dos vocábulos não-verbais carrega uma das três vogais átonas /o/, /a/ ou /e/2. No presente trabalho, sob a perspectiva teórica da DM, com inspiração em Harris (1999), assume-se que o Português Brasileiro possui cinco classes formais, sendo feita a identificação de cada uma delas através da terminação que carregam, ou seja, do morfema de classe formal que se encontra à borda direita da palavra e que pode se manifestar fonologicamente como /o/, /a/ ou /e/. No quadro a seguir, ilustram-se as classes I, II e III (cf. Alcântara, 2003), importantes para o presente trabalho. 

Quadro Parcial das Classes Formais do Português                    

Classe Formal

 

     

           

a. I 

   /o/

 

 

 m

 

 

  f

astro, belo, calmo, dado, figo, imenso, jato,  lobo, maestro, noivo, oco, peito, quadro, rato, sino, urso,  vândalo, zelo, ...

 

libido, tribo, virago, ...

b.II  

   /a/  

  f

 

 

  m

alameda, bela, cava, dama, fada, girafa, ilha, juta, lâmpada, neta,  ostra, pedra, quimera, rúcula, cesta, testa, uva, vaca, zebra, ...

 

aroma, cometa, drama, edema, fantasma, gorila, idioma,  lema,  mapa, nauta, ômega, plasma, prana, sistema, tema, ..

c  III          

  Ø ~ e    

 

 

    

 

 

    

    

  m

 

 

 

   

   f

 

 

 

m/f

abacate, acorde, açougue, alarde, alaúde, bagre, balaústre, bandeide, basquete, blefe, bos/k/e, cipreste, clube, debo/S/e, dote, eslaide, flerte,  lan/S/e, nocaute, padre, tigre, verde, ...

algoz, anis, bolor, capuz, convés, feliz, mártir, revés, teor, tenaz,...

 

arte, ave, boate, buti/k/e, chance, chave, cidade, haste, lápide, madre, mascote, metade,  neve, noite, parede, rede, saúde, sebe, sorte, trave, ...

cor, cruz, dor, espiral, flor, foz, paz, tez, ...

 

alegre, chefe, célebre, cliente, consorte, cra/k/e,  mestre, pedestre, triste, ...

 

Como se pode observar, todas as três classes são portadoras de vocábulos masculinos e femininos; portanto, não podem ser identificadas como classes de gênero, mas, antes, como classes de forma, cuja característica única compartilhada por todos os seus integrantes é a terminação que carregam. A classe I comporta todas as palavras terminadas na vogal /o/. Esse agrupamento é o menos marcado da língua, em termos de traços morfológicos – é a classe default para o gênero masculino – e o mais produtivo ao lado da classe II,  default para o gênero feminino. Esta classe, cujo grau de marcação é superior ao da classe I, abriga todos os vocábulos acabados na vogal /a/. A classe III reúne não somente palavras que recebem a vogal epentética /e/, mas também aquelas que terminam em consoantes licenciadas para a posição de coda.

Deve-se ressaltar ainda que, à luz da DM, gênero e classe formal são informações idiossincráticas dos radicais não-verbais. A especificação de gênero precede a atribuição de classe formal, cuja apresentação se dá como um traço diacrítico abstrato, o qual é mapeado sobre o morfema de classe formal, que deve se apresentar à borda direita da palavra – condição vigente não só para o português como para muitas línguas românicas – a fim de que as palavras sejam morfologicamente bem-formadas. A posição do morfema de classe formal será preenchida, sob o modelo aqui assumido, ainda no módulo da Morfologia, por uma vogal subjacente /o/ ou /a/ – manifestações fonológicas do morfema de classe formal das classes I e II, respectivamente.

O foco deste trabalho, que se detém nas classes formais I, II e III, analisa os dados de aquisição do PB como LE, apresentados em (2), os quais integram um corpus de fala espontânea – um falante de francês (K.) adquirindo português como LE. Acredita-se que tais elementos permitam elucidar questões relativas à aquisição da linguagem e trazer evidências para a proposta teórica da DM, particularmente com respeito ao fornecimento de traços fonológicos a traços morfológicos abstratos, em especial os morfemas de classe formal e o de gênero. Em (2a-b), são apresentados alguns dados do informante K.

 

(2) Dados3  de K.

     a) Exemplos de troca da vogal /e/ por /o/ ([u]) ou /a/ ([a])

          contrast/e/ - contrast[u]

          árab/e/ - arab[u]

          glot/e/ - glot[Œ]

          control/e/4 - control[u]

     b) Exemplos de troca da vogal /a/ por /o/ ([u])

          problem/a/ - problem[u]   

          lingüist/a/ - lingüist[u]


           

Com respeito às formas de superfície apresentadas em (2a-b), cujos resultados seriam  outros se produzidas por falantes nativos do português, como pôde ser visto em (1), discorrer-se-á, separadamente, após uma sucinta apresentação do quadro teórico sob o qual o presente trabalho se desenvolve.

Apresenta-se, em (3), a organização da gramática segundo a DM.

 

(3)   Modelo de Organização Gramatical na DM5           

                                                                    Sintaxe

 

 


                                                                          

 

 

 

                                      ¯

                       Regras fonológicas

                                      ¯

                                                PF                                                                              LF

  A DM assume ser a gramática constituída de três módulos autônomos, a Sintaxe, a Morfologia e a Fonologia, o segundo dos quais faz a interface entre a Sintaxe e a Fonologia. A autonomia dos referidos módulos refere-se ao fato de que cada um deles tem seus próprios princípios e propriedades. Nesses três componentes da gramática, a estrutura das sentenças e palavras é representada por diagramas arbóreos. Os nós terminais das árvores (os morfemas) são constituídos de complexos de traços, tanto fonológicos como não-fonológicos. O módulo da Sintaxe ocupa-se exclusivamente dos traços não-fonológicos dos morfemas; é um componente gerador de estruturas pela combinação, sob nós terminais, de feixes de traços sintáticos e semânticos selecionados pelas línguas particulares, a partir de um inventário disponibilizado pela Gramática Universal (UG, do inglês Universal Grammar). O componente da Morfologia, que se atém não somente aos feixes de traços não-fonológicos mas também aos fonológicos, compreende três etapas: (i) operações morfológicas, (ii) inserção vocabular e (iii) regras de reajustamento. O módulo da Fonologia6 lida, particularmente, com os traços fonológicos dos morfemas; não obstante, os traços não-fonológicos também aí têm um papel.

Dentre as seis operações morfológicas7 bem-motivadas que podem modificar as estruturas fornecidas pela Sintaxe, explicando, assim, segundo Calabrese (1998, p. 76), os  desencontros entre a organização das peças morfológicas e as estruturas fornecidas pela Sintaxe, apresentam-se, a seguir, apenas as que são relevantes para este estudo, a saber: (i-a) adição de morfemas  e  (i-b) empobrecimento. Após discutiremos a etapa de Inserção vocabular, também importante para o presente estudo.

Através da operação morfológica mencionada em (i-a), pode se dar a inserção de morfemas na estrutura morfológica da gramática, a fim de satisfazer condições de boa-formação universais e/ou de língua particular, como é o caso da condição que exige a adjunção de uma posição temática aos radicais não-verbais do português, em (4) mostrada, a fim de que esses assumam o  status  de palavra morfologicamente bem-formada. Tal posição será posteriormente preenchida com itens vocabulares (traços fonológicos) que podem se constituir de uma das vogais /o/, /a/ ou /e/.

 

(4)   Adição de Nó Terminal de Sufixo Temático a  X0             

Uma categoria morfossintática, ou seja, X0 exige um   sufixo temático  Á                 

   

        sintaxe                 morfologia                                                                                                              

            X             ®             X                

                                                      

                                                  X          Á                               

Essa condição exige que um morfema de classe formal ou sufixo temático ‘Á’ seja adjungido a ‘X0s’, raízes (radicais) portadoras(es) de categoria morfossintática, N, A, Adv, para que só então recebam o status de palavras morfologicamente bem-formadas. Essa adjunção ocorre no componente morfológico, uma vez que tais sufixos não têm função sintática, conforme já mencionado.

A operação morfológica apresentada em (i-b) é importante em virtude de ser uma operação sobre feixes de traços gramaticais, cuja função é bloquear a inserção de itens vocabulares mais específicos, sendo esses substituídos por itens menos específicos, conforme os resultados apresentados em Alcântara (2005), relativamente aos dados de crianças falantes nativas do Português Brasileiro, em fase de aquisição da linguagem, como se poderá conferir posteriormente neste estudo. Em (5), é apresentado o mecanismo de (i-b).

(5)  Empobrecimento

[III, f] / mestr-, monZ-, infant-  e outros radicais

  ¯     

  Ø

 

Neste conjunto especial de itens, cujas formas femininas contêm, nas respectivas entradas vocabulares, a coocorrência de traços [III, f], ocorre a simplificação intitulada empobrecimento. A referida simplificação encarrega-se de apagar o traço de classe [III], quando este coocorre com o traço [f(eminino)].  Como resultado, às formas femininas é atribuído o traço [II], através da regra de redundância independentemente motivada que coloca os femininos, por default, na classe II, conforme ilustrado em (6).

 

(6)       Regra de Redundância para Classe                             

fem -> II

 

Segundo essa regra, a classe II é predizível para os radicais do gênero feminino no caso não-marcado. Contudo, é imprevisível para os radicais nominais do gênero masculino. Eis o caso marcado (cf. problema).

Quanto à Inserção Vocabular, esta é responsável pelo fornecimento de traços fonológicos (itens vocabulares) aos nós terminais. Em outras palavras, independentemente do tipo de morfema, essa operação envolve a associação de peças fonológicas (itens vocabulares) a morfemas abstratos. Cumpre salientar que a ordem linear dos nós terminais não pode ser plenamente estabelecida antes da inserção de suas matrizes fonológicas. Outrossim, refere-se que os traços morfológicos disponibilizados por esta operação assinalam propriedades idiossincráticas de itens vocabulares específicos.

A partir da apresentação de importantes mecanismos da DM relevantes para este trabalho, passa-se a tratar das questões lingüísticas a serem respondidas com respeito aos dados de K., ilustrados em (2). Ei-las:

1) Estaria atuante, durante o processo de aquisição do PB como LE, a operação de empobrecimento (i-b), tal como ocorre com falantes nativos do português em fase de aquisição da língua materna (cf. Alcântara, 2005)?       Ou

 

2) Seria o caso de ocorrer a manifestação fonológica sistemática de /o/ ou /a/ para a posição temática (morfema de classe formal), na Inserção vocabular independentemente da classe formal – , em virtude de esses radicais serem interpretados por K. como não sendo portadores de traços de classe formal idiossincráticos, diferentemente do que ocorre para os falantes nativos do português?

Na tentativa de responder à primeira questão, apresenta-se, em (8), alguns radicais nominais do português que carregam, idiossincraticamente, a informação de classe formal (classe III).

 

(8)  Entradas Vocabulares de Nomes da Classe III

                       [/koNtRaSt/,   N,   III,     -     ...]      contraste

                       [/glt/,           N,   III,     f      ...]      glote

                       [/aRab/,          N,   III,      -     ...]      árabe                       

Em (8), observam-se três distintas informações: categoria morfossintática (N), classe formal (III) e gênero (feminino). Uma vez que o gênero dos nomes, em português, assim como em muitas línguas, é, em geral, arbitrário, essa informação tem de ser especificada na entrada vocabular, como um traço idiossincrático, no presente caso o traço [f], de feminino. E, pelo fato de assumir-se que o gênero marcado é o feminino no português, assim como o é em francês (cf. Lamarche, 1995), somente tal traço deverá ocorrer nas entradas vocabulares na língua portuguesa. O gênero masculino é, por sua vez, considerado não-marcado/default, ou seja, a  ausência do feminino  (cf. Jackobson, 1963, ap. Lamarche, 1995, p. 152)8. Portanto, o traço que identifica nomes masculinos está ausente das entradas vocabulares no português, assim como no francês. Por outro lado, todos os nomes apresentados em (8) têm de carregar a informação de classe formal, III, o que denota a sua imprevisibilidade nesta classe. Se assim não fora, radicais como esses seriam equivocadamente atribuídos às classes I (/o/) e II (/a/) do português – em que a classe I é considerada  default  para o gênero masculino e a classe II a classe  default  para o gênero feminino, respectivamente. Tal atribuição resultaria em formas agramaticais (e.g., *contrasto  por  contraste, *glota  por glote e *arabo  por  árabe), as quais são detectadas nos dados de K., em (2a) apresentados, com respeito à classe II. Esses outputs, contudo, divergem daqueles de crianças brasileiras adquirindo PB como LM, como pode ser visto em (9)9.

 

(9)   Dados de aquisição do PB como LM10

Matheus (2:9) - dente ['de)ntSi], balde ['bawdZi], quente ['ke)ntu]

Priscila (2:2) - tomate [to'matSi], ['de)ntu]

Michele (2:6) - forte ['ftŒ], dente ['de)ntSi], parede [pa'edZi]

Vitória (2:9) - dente ['de)ntSi], chiclete   [Si'kEtSi], grande ['g«)ndZja]

 

 

 

 

Depreende-se dos resultados em (9) que o uso variável de /e/ e /o/, ou /a/, por falantes nativos do PB em fase de aquisição da linguagem, aponta para o seguinte fato: a operação morfológica de Empobrecimento (i-b), cuja função é bloquear a inserção de itens vocabulares mais específicos, que serão substituídos por itens menos específicos, parece já estar atuando nessa etapa do processo de aquisição da linguagem, assim como está presente na gramática dos adultos. Um argumento para tal reflexão é encontrado em Halle (1997, p. 427), os itens vocabulares constituem uma parte essencial do conhecimento do falante sobre sua língua (...), e as entradas vocabulares representam os itens que os falantes têm de memorizar (Halle, 1997, p. 430). Em sendo assim, parece natural que a gramática da língua, durante o processo de aquisição da linguagem por falantes nativos, como é o caso em (9), também disponibilize mecanismos que permitam o acesso às configurações de traços, simplificando-as, mesmo que tais feixes de traços, no sistema-alvo, não sofram simplificação ou não sejam alvo de simplificações. Tal operação está, entretanto, absolutamente ausente dos dados de K., em (2a-b). Desta feita, a resposta à primeira pergunta formulada apontaria para a seguinte conclusão:

No caso do falante nativo do francês adquirindo PB como LE, a operação de empobrecimento (i-b) ainda não estaria atuando – pelo menos nesta etapa inicial de aquisição do PB. Em outras palavras, K. estaria ainda, ao que parece, em uma etapa precedente de aquisição de língua, ou seja, em que há uma correlação direta entre gênero e classe formal.

Em (10), apresentam-se duas derivações de palavras que compõem a classe II, uma feminina – grupo predominante nesta classe – e outra masculina – cujos membros são em número bem menor, a despeito de sua extensa representação nesta classe –, a fim de que se possa avaliar outra “resposta”, a que alude à segunda pergunta.

(10)    Ilustrações de Membros da Classe II

a.     entradas vocabulares dos radicais

        /pRoblem/, II

        /mal/, f

b.     derivações

        problema                 mala

       [/pRoblem/]Á          [/mal/]Á                                    1                  MORFOLOGIA

                         [  ]                   [  ]             

                                          f                                            a

             II                                                                        b   

                                                                                                  


                                               II                                      2

                                                                                       

                         a                    a                                       3         Inserção vocabular

                     pRoblem+a            mal+a        

Em (10a) ilustra-se o fato de ambos os radicais, problem- e mal-, carregarem informações idiossincráticas: problem-, a de classe e mal-, a de gênero, decorrendo daí a noção de maior marcação da classe II, em relação à classe I.  Em (10b), são mostradas as derivações de  problema  e  mala.

Na linha 1a, conforme mostram as derivações acima, somente o radical de mala, como esperado, carrega em sua entrada vocabular o traço de gênero especificado (f), pois problema, em sendo masculino, ou seja, a ausência do feminino (cf. Harris, 1996), não apresenta marcação. Na linha 1b, por outro lado, somente o radical masculino tem de carregar a informação idiossincrática de classe formal (II), se assim não fora ocorreria sua equivocada afiliação à classe I, o caso não-marcado para nomes masculinos, derivando daí a forma agramatical  *problem-o  por  problem-a, exatamente o que ocorre nos dados de K., em (2b) ilustrados. Quanto ao radical de  mala, este não exige nenhuma outra informação na entrada vocabular, senão  ‘f’, pois se encontra na classe não-marcada para os femininos. É na linha 2 da derivação que a regra de redundância morfológica (6) atribui o traço de classe formal [II] ao radical feminino  mal-. Na linha 3, enfim, a operação de  Inserção vocabular atribui conteúdo fonológico ao morfema de classe formal dos membros da classe II, resultando as formas gramaticalmente esperadas: problem+a  e  mal+a. Enfim, todos os radicais que carregam o traço de classe formal [II], seja idiossincraticamente no caso dos radicais masculinos, seja por regra de redundância morfológica no caso dos radicais femininos, apresentam a vogal /a/, enquanto manifestação fonológica do sufixo temático da classe II.

Após a análise das derivações em (10), passa-se a uma possível resposta para a segunda questão levantada, relativamente aos dados de K. apresentados em (2a-b), qual seja:

A manifestação fonológica sistemática de /o/ ou /a/ para o morfema de classe formal, que se encontra à borda direita do vocábulo, seria um indício de que esses radicais estariam sendo interpretados por K. como não-portadores de traços de classe formal idiossincráticos, decorrendo daí a emergência de vocábulos em que há uma correlação direta entre gênero e classe formal no corpus analisado – a mesma conclusão a que se chegou para a primeira questão levantada.

Tais resultados corroborariam, pois, a noção de que as classes I e II são as menos marcadas da língua, em virtude de serem aquelas para as quais são direcionados vocábulos entendidos como portadores de um número menor de informações idiossincráticas, em se comparando aos membros de outras classes formais. Não obstante, no presente caso, isso não coincide com o conhecimento lingüístico dos falantes nativos do PB com respeito aos vocábulos presentes no corpus de K., uma vez que, para eles, os vocábulos em questão são marcados idiossincraticamente em suas entradas vocabulares. Da mesma forma, os resultados apresentados neste trabalho permitem ratificar a idéia de Alcântara (2003), com respeito à marcação maior da classe III relativamente às classes I e II, dado não haver sido encontrado, no corpus coletado, vocábulos terminados em /e/, somente em /o/ ou /a/ átonos finais. 

Em suma, nos dados analisados, os radicais não contêm, nas entradas vocabulares, informações de traços diacríticos abstratos de cunho idiossincrático, sendo, antes, considerados como formas menos marcadas, que tendem a fazer parte das classes mais produtivas do português, ou seja, as classes I e II. Eis, aliás, a tendência que vigora no processo de aquisição da linguagem, e que é atestado neste trabalho: partir do que é menos marcado, e, portanto, mais freqüente para, só então, chegar ao que é mais marcado. É o que os dados em (2a-b) parecem evidenciar, trazendo, assim, suporte empírico para o modelo de organização da gramática assumido pela DM, particularmente com respeito ao módulo da Morfologia, alvo do presente estudo.

 

Bibliografia

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LAMARCHE, J. Gender agreement and suppletion in French. In: Zagona, K. (ed.), Grammatical Theory and Romance Languages. Amsterdam: John Benjamins, 1996, p. 145-157.

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SPENCER, A. Morphological theory. Oxford: Blackwell Publishers, 1991.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Com relação aos adjetivos, contudo, seguindo-se a proposta de Halle (1994), formulada à luz da Teoria da Morfologia Distribuída para as classes de declinação do russo, e extensiva às línguas do mundo, os adjetivos são universalmente subespecificados para gênero e obtêm tal traço dos nomes que modificam.  

 

2 No presente trabalho, assume-se que as três vogais átonas finais  -o, -a, -e  são representadas subjacentemente sob a forma de /o a e/ átonos finais, e cujas realizações fonéticas são [a], [e] ~ [i], [o] ~ [u], em virtude de essas vogais poderem sofrer regra de elevação (cf. Vieira, 2002).

 

3 Não serão abordadas outras questões, de ordem fonológica, por exemplo, que estejam fora do escopo deste estudo, a posição final de palavra.

4 Em sendo o referido exemplo integrante da classe IV, a qual, segundo Alcântara (2003), apresenta inesperadamente a vogal subjacente /e/, como manifestação fonológica do morfema de classe formal da classe IV, ele não será aqui referido.

5 No presente estudo, não se tratará dos módulos da Sintaxe e da Forma Lógica (LF, do inglês Logical Form). Há muitos trabalhos na literatura que aprofundam o estudo da Sintaxe (e.g.  Harris, 1994; 1997; Calabrese,  1997a,b; 1998).       aHHarris

6 As operações fonológicas, neste componente, podem ser sensíveis a informações morfológicas, como é o caso do processo de epêntese, que não será aqui abordado.   

7 As demais operações são: mudança de traços, adjunção, fusão e fissão.

8  Esse postulado foi também assumido por  Câmara Jr. (1966), para o português, e Harris (1996), para o espanhol.

9 Esses dados foram discutidos em Alcântara (2005).

10 Parte dos dados ilustrados integram o Banco de dados da aquisição da fonologia do português (ou das consoantes líquidas do português) – que inclui dados de 110 crianças divididas em cinco faixas etárias, 1:3 a 3:7 –, cuja coordenação está a cargo da Profa. Dr. Carmen Lúcia Barreto Matzenauer, da UCPel, e da Profa. Dr. Regina Ritter Lamprecht, da PUCRS e parte deles constitui o corpus da tese de doutorado da Profa Dr. Carmen Lúcia Barreto Matzenauer, a quem agradeço a gentileza em permitir utilizar informações integrantes de seu banco de dados individual.