A ESTRUTURA RETÓRICA DE ARTIGOS DE OPINIÃO AUTORAIS[1]

 

Bianca Taís Zanini, Juliana Thiesen Fuchs

 

Resumo:

 

Este artigo trata dos resultados do projeto O.R.T.O. (Organização Retórica de Textos de Opinião), que aplica um modelo de enfoque cognitivo para descrever processos que permitem tratar das tomadas de decisão implicadas na concepção de texto como configuração de estratégias. Adota-se a proposta de E. Bernárdez, que vincula o modelo RST (Rhetorical Strucuture Theory) à idéia de que a organização textual pode ser entendida como uma série de vias de continuidade, as quais são etiquetadas com as relações núcleo-satélite apresentadas pela RST. Os resultados da análise quantitativa de 150 artigos de opinião autorais indicam que há regularidades nas opções das vias e nas relações núcleo-satélite entre os conteúdos macroproposicionais do corpus, evidenciando a ligação estreita entre o tipo textual em estudo e as opções do produtor.

 

Palavras-chave:

Artigo de opinião autoral, organização textual, opções de continuidade, retórica.

 

 

Abstract:

 

This article deals with results of the project O.R.T.O. which applies a cognitive based model and a process description through which it is possible to deal with the taking of decision implied in the text conception as “strategical outline”. One takes into account E. Bernárdez, who links the model RST to the idea that textual organization can be understood as a series of ways of continuity, labeled with the relations presented by RST (Rhetorical Structure Theory). The results are presented which analysed 150 authoral articles of opinion can be previewed probabilistically and if there are regularities in the relation nucleus-satellite amongst macropropositional contents of text corpora.

 

Key-words:

Authoral articles of opinion, textual organization, options of continuity, rhetoric.

 

Introdução

 

Este trabalho discorre sobre as possíveis regularidades nas escolhas do produtor de artigos de opinião autorais. Pode-se chegar a uma organização retórica definida para o tipo textual em questão? Parte-se do pressuposto de que o objeto do estudo aqui apresentado – o texto - é um objeto complexo em virtude de ser dependente de um sujeito e de condições contextuais. Tendo em vista esses pressupostos, procura-se fazer uma análise probabilística das opções do produtor de artigos de opinião autorais.[2] Para isso, parte-se dos resultados do projeto de pesquisa Organização Retórica de Textos de Opinião (O.R.T.O.), que procurou compreender como os artigos de opinião são retoricamente organizados.

Nesse estudo, considera-se a noção de interação lingüística, conforme Bernárdez (2003, p.11): “a linguagem enquanto fenômeno social, interindividual, manifesta-se no uso, e as estruturas das línguas naturais são conseqüência da interação, das condições de uso e das limitações cognitivas do ser humano.”

Considera-se, também, segundo Bernárdez (1995), que o texto é linguagem em contexto, produto da criatividade e, portanto, objeto complexo. A partir dessa noção, adota-se a concepção de texto como uma configuração de estratégias, um meio lingüístico utilizado pelo produtor para que este leve o leitor a crer em uma posição ou a realizar uma ação. Por estar tratando da descrição dos processos das escolhas estratégicas do produtor textual, este trabalho tem um enfoque cognitivo. O produtor faz escolhas para cumprir determinados fins discursivos, que evidenciam as intenções do produtor. Este, ao construir seu texto, tem de organizá-lo retoricamente, ou seja, deve eleger, entre as numerosas possibilidades de organização que lhe são oferecidas, uma forma de estruturá-lo, de organizá-lo, e a escolha se faz de acordo com o que pensa ser mais adequado para alcançar seu objetivo (fazer o leitor crer no que diz o produtor), levando em conta fatores contextuais[3] relacionados ao conhecimento de mundo, às crenças e ao contexto no qual o leitor está inserido.

Essa configuração de estratégias é representada por vias de continuidade, as quais são etiquetadas pelas relações núcleo/satélite apresentadas pela Rhetorical Structure Theory (RST).

 

1. A teoria da estrutura retórica (Rhetorical Structure Theory)

 

A Rhetorical Structure Theory (RST) é o ponto de partida para o tratamento da organização retórica de textos, pois incorpora fatores como uso e contexto, e parte da concepção de que as estruturações das relações no texto refletem as opções de organização e de apresentação do produtor. Essa concepção pressupõe, segundo Mann e seus colaboradores (1992), que o texto é uma organização estrutural, sendo possível descrever que tipos de partes o compõem e os princípios de organização dessas partes no texto como um todo.

Um elemento essencial para essa organização é a coerência. Para os autores da RST, coerência é a ausência, no texto, de seqüências ilógicas e de lacunas. Ou seja, conforme Mann (2005), “cada parte de um texto coerente tem uma função – uma razão verossímil ou aceitável para a sua existência - que é evidente aos leitores, produzindo a impressão de que não lhe falta nada”.  Mann (2005) enfatiza que a descrição permitida pela RST atribui um papel e uma intenção a cada unidade de informação do texto, conferindo razão de existência a cada elemento, tendo em vista o que o leitor de um texto deve julgar verdadeiro ao estabelecer a relação em questão entre as unidades textuais.

A idéia central da RST é a de que o texto tem uma estrutura retórica[4] associada, representada pelo fenômeno da estrutura textual que envolve pares de fragmentos do texto. Mann et al. (1992, p.42) observam que

há uma relevância mútua entre duas partes do texto e, às vezes, sua posição e forma são identificadas pela recorrência de relações que envolvem as partes. Essas relações, que nem sempre são identificadas por conjunções, envolveriam partes do texto com extensões limitadas por distâncias que podem variar de orações a grupos de parágrafos.[5]

 

Ao analisar o texto sob a perspectiva da RST, o leitor-analista, também denominado observador, pode explicar a unidade, a conexão e a coerência de qualquer texto escrito. É importante lembrar que todas as observações ou conclusões do observador, em uma relação núcleo/satélite, atribuem uma intenção às escolhas feitas pelo produtor. Caberia a seguinte expressão em cada uma das conclusões que o observador apresenta: “É verossímil ou crível desde o ponto de vista do observador que foi verossímil desde o ponto de vista do autor que escreveu o texto que a conclusão é certa.”

Existe a possibilidade de um texto ter mais de uma análise, porque o observador pode encontrar ambigüidade. Esta se deve às várias leituras que se pode fazer do mesmo texto. O observador pode pensar que a intenção do produtor se explica melhor mediante a combinação de diferentes análises, de maneira que uma análise complementa a outra.

Deve-se atentar, nas análises norteadas pela RST, para o fato de que essa teoria considera a construção do texto a partir de objetos entre os quais se estabelecem relações de dois tipos fundamentais: hipotaxe e parataxe (sob a perspectiva semântica[6] e não sintática). Elementos subordinados (satélite S) “estão em função” de subordinantes (núcleos N). Esses elementos formam as unidades núcleo/satélite, pressupondo que um texto é formado por dois níveis básicos de informação: o que contém a informação mais importante proporcionada pelo produtor, e o que encerra a informação secundária, ou seja, a informação que auxilia na compreensão, na aceitação da informação principal. 

 

2. As vias de continuidade: configuração de estratégias

 

O texto, para Bernárdez (1995, p.164), é “uma unidade, que, por sua vez, está formada por unidades menores - como uma ação complexa que está dividida em subações parciais – e em cada nível se utilizarão certas estratégias[7] para conseguir os objetivos parciais correspondentes”. Bernárdez (1995, p. 162) define estratégia, em sentido geral, como

todas as atividades humanas dirigidas à solução de problemas que se efetivam utilizando procedimentos mais ou menos automatizados, que sempre têm a característica de depender do contexto e de poder se apreender. O termo estratégia é tomado da linguagem militar, onde os princípios estratégicos são, precisamente, vias para solucionar problemas (ganhar as batalhas) em dependência do contexto (as circunstâncias da mesma batalha).

 

          A coerência textual equivale ao triunfo na batalha, e a estrutura estática final do texto equivale à paisagem depois da batalha.

Para que se possa descrever o processo que levará à “paisagem depois da batalha”, Bernárdez adota o modelo da Rhetorical Structure Theory, de forma a buscar categorias novas, próprias do nível textual. O lingüista propõe que a organização textual pode ser entendida como uma série de vias ou opções de continuidade escolhidas estrategicamente pelo produtor textual. Segundo o autor, as opções de continuidade são

vias pelas quais pode optar o falante para conseguir a transmissão eficaz de Mp (mensagem do produtor) a R (receptor). São uma forma de conhecimento funcional, isto é, dependem de uma escolha (mais ou menos consciente) de P – e de R quando se trata de estratégias de compreensão (BERNÁRDEZ, 1995, p.164).

 

Essa escolha, complementa o lingüista, realiza-se em função do contexto: busca-se a estratégia mais adequada para conseguir algo no conjunto do processo de transmissão de Mp  (mensagem de P) com Tp (texto de P), levando em conta as circunstâncias textuais.

            Bernárdez (1995, p.85) agrupa as relações núcleo/satélite em três vias de continuidade do texto: Apresentativa, Hipotática e Paratática, as quais correspondem às relações de Apresentação, de Conteúdo e Multinucleares, postuladas pela Rhetorical Structure Theory (Mann; Thompson, 1988).

A via Apresentantiva conduz a uma seqüenciação dirigida a proporcionar ao leitor informação que assegure a compreensão ou a aceitação da enunciação do produtor do texto. Por exemplo, numa relação de Justificativa, um elemento do texto nele aparece porque diz respeito a algo que o leitor considera crível ou aceitável por seu conhecimento lingüístico-cultural e porque o produtor pretende que, apelando para essa evidência, o leitor esteja mais disposto a aceitar a veracidade de sua proposição. As vias Hipotática e Paratática envolvem enlaces semânticos de partes do texto. Se dois elementos estão em uma relação causal (via Hipotática), por exemplo, necessariamente haverá uma implicação de causa e efeito, e isso independe do produtor do texto. Se dois elementos estão em contraste (via Paratática), ambos terão algo em comum e algo diferente, o que também é independente do produtor. O que diferencia as duas vias é a importância dos elementos relacionados. Na Hipotática, identifica-se uma informação nuclear e uma secundária. Na Paratática, que conduz a uma seqüenciação dirigida a proporcionar informações novas sem desenvolver conteúdos anteriores, as informações relacionadas são similares em termos de importância para os fins discursivos do produtor textual.

É o contexto mais o conteúdo das unidades informacionais do texto que determinam qual das três vias é a mais provavelmente efetivada.

O Quadro 1.1 abaixo apresenta as relações núcleo/satélite, etiquetadas com suas respectivas vias de continuidade.

 

Quadro 1. As vias de continuidade etiquetadas com as respectivas relações núcleo/satélite.

 

 

Via Apresentativa

Via Hipotática

Via Paratática

ØAntítese

ØAlternativa

ØReformulação Multinuclear

ØCapacitação

ØCausalidade

Ø Contraste

ØConcessão

ØCircunstância

ØUnião

ØEvidência

ØCondição

ØSeqüência

ØFundo

ØCondição Inversa

 

ØJustificativa

ØElaboração

 

ØMotivação

ØAvaliação

 

ØPreparação

ØMétodo

 

ØReformulação

ØNão- condicional

 

Ø Resumo

ØPropósito

 

 

ØSolução

 

3. Análise das escolhas do produtor de artigos de opinião

 

Neste subcapítulo, será apresentada a análise de um artigo de opinião autoral, de acordo com a proposta de Bernárdez (1995) vinculada à Rhetorical Structure Theory. Para tanto, adota-se como unidade de análise um segmento de texto reduzível a uma macroproposição, conforme Giering (2005)[8].

No projeto O.R.T.O., vincula-se a previsão probabilística das vias de continuidade presentes nos textos à organização macroestrutural de determinado tipo textual - conforme van Dijk (1996). Para Mann e Thompson (2001) e para Bernárdez (1995), a unidade mínima a ser considerada será determinada pelo objetivo da análise: podem ser orações, parágrafos ou até mesmo capítulos de um livro; o que importa, segundo Mann e Thompson (2001, p. 10), é que seja possível atribuir a cada unidade “um papel no texto, principalmente pela reunião das partes do texto, conforme as relações, e pelo reagrupamento dessas partes em segmentos”. No O.R.T.O., institui-se como unidade mínima uma ou mais seqüências consecutivas (compostas de uma frase, de um parágrafo ou de um conjunto de parágrafos) que expressam uma macroproposição.

E. Bernárdez (1990) enfatiza a importância da noção de macroestrutura no estudo da organização retórica de textos. Ao investigar essa organização em um tipo textual, está-se analisando aquilo que faz o autor para obter uma macroestrutura. Afirma Bernárdez (1990, p. 110):

O escritor deseja “fazer algo”. Esse “algo” costuma estar relacionado com o leitor ou ouvinte: conseguir que esse “creia” em algo, “faça” algo etc. Para conseguir tal objetivo, o escritor opta por um meio lingüístico, o texto. Deverá eleger entre numerosas possibilidades que se lhe oferecem, uma das formas de “macroestruturar” seu texto, de organizá-lo e de compô-lo, e a eleição dar-se-á de acordo com o que pensa que é mais adequado para alcançar seu objetivo (por exemplo, que o leitor creia no que disse o autor).

A relação entre macroestruturas e estratégias ou processos de produção do texto é assim explicada por Bernárdez:

 

A relação com as macroestruturas creio que está clara na análise do texto. As primeiras divisões do texto não afetam as orações, mas sempre contemplam todo um conjunto delas, isto é, representam uma sub-unidade textual intermediária entre o texto e a oração. Serão as primeiras macroestruturas. Se descermos no nível de análise para comprovar a estrutura dos componentes e subcomponentes, vamos encontrando macroestruturas de nível inferior, até que, em determinado ponto, chegamos ao nível mais baixo, representado pelas proposições semânticas. (Bernárdez, 1989, p. 114)

 

Outra consideração importante para a análise do texto é a noção de fim ilocutório ou de macroato de discurso. O projeto O.R.T.O. (Giering, 2005) assume a posição de van Dijk (1995, p. 340): “uma das bases para diferenciar tipos de discurso, tais como narrações ou notícias, é a possibilidade de atribuir um macroato de fala, simples ou complexo, à produção de tal discurso”. Assim, nesta investigação, trabalha-se com a concepção de macroato de discurso como fator organizador da retórica de textos, juntamente com a idéia de restrições de contexto institucional e de tipo textual. Presume-se que o produtor de um artigo de opinião, cujo fim é o de fazer com que o leitor creia na verdade de sua tese, tenha uma organização retórica diferente da de uma notícia, cujo fim discursivo é o fazer-saber.

A seguir, será explicitada a análise de um artigo de opinião de acordo com o quadro teórico apresentado. O artigo intitula-se O’Neill, fique em casa - 2, foi produzido por Clovis Rossi  e publicado na Folha de São Paulo, em 30 de julho de 2002.

 

O’Neill, fique em casa – 2

Clóvis Rossi

 


Aposto que muito brasileiro vai ficar indignado com o fato de o secretário norte-americano do tesouro, Paul O’Neill, ter dito que Brasil e Argentina precisam “pôr em prática políticas que assegurem que o dinheiro que recebem seja bem aproveitado e não apenas saia do país direto para uma conta na Suíça”.

Há, sim, razões para indignação, mas certamente não é um eventual orgulho nacional ferido pela suspeita de corrupção insinuada.

Vejo dois motivos, bem diferentes desse, para rebater O’Neill:

1 – Se há risco – e há – de o dinheiro posto no Brasil fugir para a Suíça, esse risco sempre existiu e é inerente aos empréstimos do FMI (Fundo Monetário Internacional).

Como já provaram inúmeros economistas, os empréstimos do Fundo serviram, no mais das vezes, para permitir que os investidores salvassem a grana colocada em países ditos emergentes, e não para salvar os países em dificuldades.

2 – O’Neill não está propriamente em posição de dar aulas sobre corrupção – sendo membro de um governo que tem pelo menos três de suas figuras mais importantes sob suspeita de praticar maracutaias com ações.

Em sendo, ademais, de um país que está em pleno surto de “ganância infecciosa”, para usar a expressão do presidente do Fed, Alan Greenspan, não tem autoridade moral para dar lições de bom comportamento a quem quer que seja.

Os dois pontos citados já seriam motivos suficientes para tomar como pouco sérias as afirmações do secretário do Tesouro.

Há mais, no entanto: O’Neill vem, supostamente, para demonstrar apoio aos governos do sul sufocados pela crise. Com frases como a sua, seria mais adequado mandar um Mike Tyson no melhor de sua forma.


 

Fonte: Folha de São Paulo, 30/07/2002, p. A2.

O fim discursivo do artigo é criticar as declarações do secretário norte-americano do Tesouro em relação ao Brasil e à Argentina.

Clóvis Rossi, no primeiro e no segundo parágrafos do texto, já apresenta sua posição sobre a seguinte declaração feita por Paul O’ Neill (secretário norte-americano do tesouro): “Brasil e Argentina precisam ‘pôr em prática políticas que assegurem que o dinheiro que recebem seja bem aproveitado e não apenas saia do país direto para uma conta na Suíça’ ”.  Ao dizer que “muito brasileiro vai ficar indignado, e que “Há, sim, razões para indignação, mas certamente não é um eventual orgulho nacional ferido pela suspeita de corrupção insinuada.”, o produtor expõe seu descontentamento frente às palavras de O’ Neill, o qual vai ao encontro de seu fim discursivo que é criticar as declarações do secretário norte-americano do tesouro. Portanto, em função de o produtor apresentar - no primeiro e no segundo parágrafos - informações decisivas para que o leitor entenda o texto, considera-se que essas são nucleares em relação às informações presentes do terceiro ao sétimo parágrafos, as quais são informações satélites. Cabe lembrar que os satélites ajudam na compreensão e aceitação da informação principal (nuclear).

Observa-se que, no satélite, o produtor enumera argumentos os quais objetivam aumentar a crença do leitor no fato de O’ Neill não ter credibilidade para apresentar aquele tipo de declaração. Entre os argumentos, está o relacionado aos empréstimos feitos pelo FMI (Fundo Monetário Nacional) ao Brasil e à Argentina: os empréstimos do Fundo serviram, no mais das vezes, para permitir que os investidores salvassem a grana colocada em países ditos emergentes, e não para salvar os países em dificuldades” (linhas 11 a 13).

 Pode-se sustentar, portanto, que, no início do texto, Clóvis Rossi optou por estabelecer uma relação de Evidência – via Apresentativa –, cujo núcleo situa-se no primeiro e no segundo parágrafos e o satélite entre o terceiro e o sétimo parágrafos. No núcleo, o produtor apresentou informações possíveis de serem contestadas pelo leitor; vem daí a necessidade de apresentar, no satélite, argumentos que possibilitem levá-lo a uma conclusão favorável sobre a tese. Observa-se que Clóvis Rossi utilizou informações baseadas em fatos concretos para argumentar contra as declarações de O’Neill, quando afirma que o secretário é “membro de um governo que tem pelo menos três de suas figuras mais importantes sob suspeita de praticar maracutaias com ações.”(linhas 15 e 16).

Os argumentos evidenciados por Clóvis Rossi entre o quarto e o sétimo parágrafos do artigo assumem características nucleares no que concerne à relação de Avaliação (via Hipotática), a próxima relação estabelecida no texto. As informações do oitavo e do nono parágrafo auxiliam na compreensão ou aceitação do que é dito entre o quarto e o sétimo parágrafos, ou seja, são informações satélites. É importante esclarecer que o produtor pretende, com o satélite da Avaliação, que o leitor reconheça a atribuição de um valor ao que é dito no núcleo. E é justamente o que Clóvis Rossi faz quando diz, no sétimo e no oitavo parágrafo, que:

Os dois pontos citados já seriam motivos suficientes para tomar como pouco sérias as afirmações do secretário do Tesouro.

Há mais, no entanto: O’Neill vem, supostamente, para demonstrar apoio aos governos do sul sufocados pela crise. Com frases como a sua, seria mais adequado mandar um Mike Tyson no melhor de sua forma. (Rossi, 2002, p. A2)

 

O produtor utiliza-se da ironia quando diz que é melhor que venha Mike Tyson ao Brasil ao invés de O´Neil, pois acredita que as afirmações feitas por este (“Brasil e Argentina precisam pôr em prática políticas que assegurem que o dinheiro que recebem seja bem aproveitado e não apenas saia do país direto para uma conta na Suíça”) são muito ofensivas.

O valor atribuído ao núcleo é negativo, conforme observado no sétimo e no oitavo parágrafos. O produtor corrobora sua posição apresentada no núcleo, no qual apontou motivos para que a afirmação de O´Neil perdesse a credibilidade: “O’Neill não está propriamente em posição de dar aulas sobre corrupção – sendo membro de um governo que tem pelo menos três de suas figuras mais importantes sob suspeita de praticar maracutaias com ações.” (linhas 14 a 16). Ao finalizar o artigo, é possível que o produtor tenha sentido necessidade de reforçar seus argumentos (do quarto ao sétimo parágrafo) apresentados na relação de Evidência. Por isso, a escolha pela relação de Avaliação da via Hipotática.

A seqüência de relações presente no artigo O’Neil, fique em casa - 2 é muito freqüente em artigos de opinião. É o que se pode perceber nos dados do projeto O.R.T.O., que mostram que, de 150 artigos de opinião analisados, 11,3%, estão organizados a partir da seqüência Evidência-Avaliação. A recorrência da seqüência de relações Evidência-Avaliação nos artigos analisados no projeto O.R.T.O. indica as estratégias pelas quais o produtor em geral opta ao compor um artigo de opinião. Ele inicia o texto com uma relação de Evidência quando deseja expor sua opinião sem preparar o leitor para ela, e, ao expor essa opinião, avalia que deve trazer argumentos (fatos contundentes que se impõem por si), os quais têm a função de levar o leitor a considerar crível o que é sustentado no núcleo. O produtor opta, em seguida, pela relação de Avaliação para avaliar ou interpretar o que foi apresentado na relação de Evidência, ou quando quer trazer uma avaliação do conjunto do que já foi dito no artigo, geralmente fechando-o. A opção por essas relações está diretamente ligada ao gênero artigo de opinião: os artigos de opinião têm como fim o fazer-crer, e, assim, o produtor procura envolver o leitor, com o objetivo de obter sua adesão ao ponto de vista defendido no artigo.

Além de determinadas seqüências de relações, é muito freqüente também que os artigos de opinião apresentem determinados número de relações. Em geral, os artigos de opinião apresentam no máximo duas relações, assim como o texto apresentado aqui. Dos artigos analisados no projeto O.R.T.O., 42% apresentam uma seqüência de duas relações e 38,6% apresentam uma seqüência de três relações. Esses dados contribuem para a constatação de que há uma organização prototípica estável para o artigo de opinião, verificada por essas regularidades de relações.

A organização do artigo O’Neil, fique em casa - 2 permite perceber outra característica recorrente em artigos de opinião: a preferência do produtor por iniciar seu texto com a via Apresentativa e finalizá-lo com a via Hipotática. Dos artigos analisados no projeto O.R.T.O., 84% iniciam com alguma relação da via Apresentativa e 71,3% finalizam com alguma relação da via Hipotática. As relações mais freqüentes no início dos artigos são Preparação (34,6%)[9], Evidência (20,6%), Fundo (14,6%) e Justificativa (13,3%); as relações mais freqüentes no final dos artigos são Avaliação (55,3%) e Solução (14%). Ou seja, o produtor em geral opta por iniciar o texto envolvendo o leitor, e finalizá-lo enlaçando conteúdos do próprio texto.

 

4. Considerações finais

 

Neste artigo, foi discutida a organização do tipo textual artigo de opinião autoral. Procurou-se perceber se há regularidades nas escolhas do produtor e se haveria uma organização retórica definida para o artigo de opinião. Para tanto, apresentaram-se o quadro teórico e a metodologia utilizados no projeto de pesquisa Organização Retórica de Textos de Opinião, e mostrou-se um exemplo de análise de artigo de opinião. Além disso, procurou-se relacionar a análise do texto com os principais resultados do projeto O.R.T.O.

O texto apresentado aqui e os dados do projeto O.R.T.O. mostram que há, sim, regularidades nas opções de organização retórica de artigos de opinião. Essas regularidades podem ser demonstradas por algumas constatações a respeito do corpus do projeto O.R.T.O.: a incidência de determinadas relações; a não ocorrência de determinadas relações; a incidência de determinadas relações em seqüência; a incidência de relações de determinada via para iniciar ou para finalizar os textos; a organização dos textos a partir de uma seqüência de no máximo duas ou três relações. Ou seja, verifica-se que o artigo de opinião tem uma organização prototípica estável.

Essa prototipicidade da organização do artigo de opinião depende de uma variável externa, que seria o fazer-crer, com as características próprias do artigo de opinião. Esse tipo textual é próprio do contexto jornalístico, o que implica determinadas condições de produção: além de o produtor ter de se preocupar em construir um texto coerente, precisa atentar também ao contrato institucional estabelecido com o jornal que o publicará, e, ainda, com o leitor-modelo que irá atingir. O produtor de artigos de opinião estabelece um contrato de fala específico para o jornal, em que tem o status do suporte midiático. Esse contrato midiático exige que o autor se proponha a escrever textos opinativos, considerando as características do jornal onde se inserirá: fatores como a circulação do jornal, o acordo institucional, bem como o tipo de público que atingirá são importantes. Pressupõe-se que esse público imaginado pelo produtor seja um leitor predisposto à leitura de um artigo de opinião autoral, dotado de opinião – que pode não coincidir com a opinião do articulista; daí a necessidade do fazer-crer –, com conhecimento prévio do tema a ser abordado e capaz de avaliar a validade das estratégias empregadas.

Todas essas características próprias do artigo de opinião, além do fim discursivo pretendido com o texto, influenciam as opções do produtor, constituindo a organização prototípica do artigo de opinião. Porém, o produtor, a partir do seu cálculo sobre as condições contextuais, pode usar estratégias variadas para o fazer-crer. Por isso, não é possível prever como cada artigo se organizará, ainda que essa organização seja prototípica. Assim, o artigo de opinião não tem uma organização linear, já que não segue um determinismo de vias e de relações. É possível apenas prever probabilisticamente a organização de um artigo de opinião; é o que mostra a análise das recorrências de vias e relações nos textos do corpus do projeto O.R.T.O.

Outra evidência da não-linearidade do artigo de opinião é a sua sensibilidade às condições iniciais de produção. O cálculo do produtor sobre os fatores externos, contextuais, gera a opção inicial de organização do texto. Observou-se, nos dados do projeto O.R.T.O. e no texto apresentado aqui, que essa opção inicial geralmente é uma relação da via Apresentativa, como Preparação, Evidência ou Justificativa. Essa opção inicial influencia as outras opções de organização do texto. Porém, a continuidade do texto não segue um determinismo de relações; há, sim, uma probabilidade de como o artigo continuará. Nos dados do projeto O.R.T.O. e no texto apresentado aqui, verificou-se que, quando o produtor inicia o texto com uma relação da via Apresentativa, em geral, ele continua com uma relação da via Hipotática, como Avaliação e Solução. É o caso da seqüência Evidência-Avaliação comentada aqui.

Essas considerações a respeito do artigo de opinião vão ao encontro da concepção de Bernárdez (1995), que considera a linguagem um objeto complexo, dinâmico e aberto, do qual o texto é a unidade de comunicação. O texto é complexo porque não é formado a partir de regras, como a oração, e sim de estratégias. Ele é dinâmico e não-linear por ser sensível às condições iniciais de produção e por apresentar uma organização probabilística. E, como configuração de estratégias, o artigo de opinião é sensível ao contexto, o que o caracteriza como sistema aberto. Assim, as considerações apresentadas aqui possibilitam uma discussão não apenas sobre o artigo de opinião, mas também sobre o texto em geral, a partir de uma concepção sistêmica.

 

Referências bibliográficas

 

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MANN, William C.; THOMPSON, Sandra A. Rhetorical Structure Theory : toward a functional theory of text organization. Text, 8 (3). 1988, p. 243-281.

 

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ROSSI, Clóvis. O’ Neill, fique em casa - 2. Folha de São Paulo, São Paulo, 30/07/2002. Opinião, p. A2.

 

THOMPSON, Sandra A Introducción a la Teoría de la Estructura Retórica (Rhetorical Structure Theory: RST). 2005. Atualizado em janeiro de 2005. Disponível em: http://www.sfu.ca/rst. Acesso em: 14 mar. 2005.

 



[1] Este trabalho deriva das investigações realizadas no projeto de pesquisa Organização Retórica de Textos de Opinião – O.R.T.O., que se encontra em fase de finalização, e tem como objetivo verificar como os artigos de opinião são retoricamente organizados. O projeto O.R.T.O. está vinculado ao programa de Pós-Graduação em Lingüística Aplicada da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS.

[2] Um texto analisado sob essa perspectiva probabilística será explicitado no decorrer deste artigo.

[3] Bernárdez (1995, p.165) salienta que, no processo de construção do texto, o produtor não deve tentar estabelecer regras de construção como se existisse uma gramática textual semelhante à das orações. Isso se justifica pelo fato de as regras serem basicamente automáticas e esse automatismo torna-se inviável no texto, pois a formação desse é complexa ao estar intimamente unida ao contexto, isto é, trata-se de um sistema aberto.

[4] Mann et al. (1992) consideram que retórica é o conjunto de opções de organização e de apresentação do produtor textual.

[5] Todas as citações em língua estrangeira deste trabalho foram traduzidas por nós.

[6] A perspectiva é semântica porque as orações se relacionam umas com as outras, considerando seu conteúdo.

[7] Bernárdez (1995, p.164) lembra que a diferença entre a regra e a estratégia está em seu caráter mais ou menos automatizado: as estratégias são, em princípio, livres, ainda que em diferentes graus.

[8] Maria Eduarda Giering é coordenadora do projeto Organização Retórica de Textos de Opinião (O.R.T.O.).

[9] Percentual sobre um total de 150 textos, e não sobre o total de relações (373) encontradas no corpus do projeto O.R.T.O.