Prosear no caminho ao delírio da leitura

 

Profª Anne Marie Moor[1]

Universidade Federal de Pelotas – UFPel

 

“Prosear é um jeito de falar. Fala sem objetivo definido,

como o vôo dos urubus - indo ao sabor do vento. Palavras fluindo.”

 

Essa idéia de Rubem Alves (http://www.rubemalves.com.br/proseando.htm ) motivou o uso do proseio em sala de aula com uma turma de língua inglesa como LE em um terceiro semestre do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas - UFPel, curso de formação de professores, com o intuito de desabrochar  e desenvolver a oralidade e a paixão pela leitura, essenciais em um professor de línguas.

 

Qual é a relação entre oralidade e leitura? Teve-se a idéia de explorar o proseio na sala de aula para o desenvolvimento da oralidade de maneira natural, a partir da hipótese de que um aluno motivado e à vontade tem um melhor desempenho na língua e desenvolve proficiência com maior sucesso. Aliado a isso, trabalha-se com a crença de que o texto e, portanto, a leitura é a única saída para desenvolver as outras três habilidades – speaking, listening, writing – e para que isso seja possível é indispensável que o professor tenha paixão por leitura e saiba manter e/ou desenvolver essa mesma paixão em seus alunos.

 

De acordo com Lightbown & Spada (1993:40), embora a motivação seja um fenômeno complexo é essencial para a aquisição de uma interlíngua mais proficiente. Ao pensar sobre motivação nos últimos anos e a refletir sobre a falta dela nos alunos em geral e nos alunos de Letras em especial, surgiu a idéia de que prosear poderia ser um instrumento interessante para desenvolver a oralidade, ligado ao texto e à identidade do aluno.

 

Ler é construir significado, é interação entre escritor, texto e leitor. Ler é explorar o mundo externo, assim como o mundo interior de cada um. Ler é uma viagem e, como bem diz Ricardo Azevedo em seu poema Aula de Leitura “a leitura é muito mais do que decifrar palavras...”. Ao voltar à sala de aula em 2004 depois de um período na gestão acadêmica da universidade, deparei-me com alunos desmotivados e sem o mínimo entusiasmo pela leitura. Foi um choque muito desagradável, afinal, eram alunos de cursos[2] de formação de professores de língua. Refleti, pesquisei, observei, conversei e li muito e cheguei à conclusão de que estava faltando a construção da identidade de cada um como ser ímpar, além do desenvolvimento da identidade do ser professor, carreira para a qual haviam ingressado na universidade. Jorge Luís Borges diz isso muito bem:

 

“Um homem se propõe à tarefa de esboçar o mundo. Ao longo dos anos povoa um espaço com imagens de províncias, de remos, de montanhas, de balas, de naves, de ilhas, de peixes, de habitações, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto traça a imagem do seu rosto.”

 

Não querendo me comparar a Borges, minha própria identidade foi construída através da leitura – de muito ler, de muito viajar no mundo da leitura desde minha infância – e de ler o mundo, as diversas culturas e línguas pelas quais perambulei e, certamente, minha identidade está alicerçada na paixão e no delírio da leitura. Outro instrumento que me fascina é a tecnologia, que entrou em minha vida nos anos 90 e que me mostrou que a internet é um mundo de leitura, além de um espaço interessante para o desenvolvimento de fóruns virtuais, de discussão e de muita reflexão.

 

A Universidade Federal de Pelotas introduziu um ambiente virtual de aprendizagem — o TelEduc — para sua comunidade acadêmica no início do século XXI.  Esse instrumento veio a responder às minhas crenças em relação à aprendizagem de LE e passei a usá-lo como apoio às aulas presenciais, como instrumento de reflexão e desenvolvimento da análise crítica em meus alunos e como apoio às minhas pesquisas.

 

Em 2005, em uma turma de Língua Inglesa do terceiro semestre dos Cursos de Letras – Inglês e Português/Inglês – propus um delírio livre sobre o fenômeno da leitura em um fórum virtual de discussão, com o intuito de aumentar a competência na língua estrangeira e de motivá-los para a leitura. Postei uma provocação no fórum de discussões do TelEduc e convidei os alunos a se juntarem a mim em um delírio sobre leitura.

 

A primeira contribuição para a aprendizagem deles e minha foi a procura de como se convida alguém, em inglês, a “delirar sobre leitura”. Isto foi muito interessante. A conversa começou entre mim, colegas e amigos falantes de inglês ao mandar perguntar como se dizia “delirar sobre leitura” em inglês, pois eu não sabia. A primeira reação de todos foi a de me perguntar o que eu queria dizer com isso. Isso demonstrou como cada um de nós constrói significados a partir de seu percurso de vida e que esses significados não são sempre compreendidos pelos outros, mesmo que falem a mesma língua. Algumas das sugestões que mais se assemelharam à idéia que eu tenho sobre “delirar sobre leitura” foram:

- Come together in a delirious open range reading discussion (Ferrúa, 2005).
- I think that fixed phrases may not translate

the subjective element in "delírio" -I dunno, maybe:
Come dream with us about reading.
Dream us through the next reading century.
Nuts about reading? Come to our next session.
Reading frenzy? Come and share it(yours) with us(ours).
We can read you to a standstill. Try us.
Fed up with people who are fed up with reading? Come join us.
Is reading the only way out? We think so.
What’s so good about reading? Come and find out.
If reading feels so good it hurts, then join us for a session of pain.(Osborne, 2005)

-                                 Acho que entendi o "teu" delírio como um lance mais pro delirante,

pra maluquice, pra delícia da digressão, da desmesura, do desmedido,
do "bão" que é papo furado numa beirada de lareira,

ao redor dumas taças de vinho. Asas ao espírito e à imaginação.(Pereira, 2005)

 

Entretanto, ao se assemelhar ao que eu queria dizer, ainda não achava uma maneira de dizer, em inglês, “venha delirar comigo sobre leitura”, e, portanto, mantive e mantenho essa frase em português. Ao refletir sobre a tradução da frase com os alunos, aprendemos que o significado realmente não está nas palavras apenas. O certo é que convidei os alunos a delirar comigo e entre eles no fórum de discussões do TelEduc, a partir de um trecho do texto do Rubem Alves “Proseando...” e da pergunta “Do we teach people to read?” O resultado dessa discussão foi ‘delirante’. A motivação que até então andava adormecida, desabrochou e a cada participação, mais alunos se juntaram ao proseio. É mister informar aqui, que essa discussão foi em inglês, o que trouxe aos alunos uma prática efetiva de expressão na LE que estão aprendendo, promovendo mais um espaço de aprendizagem. Mas a aprendizagem maior foi das idéias. E a partir delas surgiu o nosso proseio em sala de aula.

 

Partindo das idéias dos alunos, sugeri que usássemos um dia na semana para investir na “maluquice, na delícia da digressão, da desmesura, do desmedido”(Pereira, 2005) na prática da contação de histórias (storytelling). O hábito de contar histórias contribui para o desenvolvimento da criatividade, da inventividade, do discernimento, do raciocínio esquemático e da capacidade de encontrar soluções em situações tensas. Todo o mundo pode contar uma história! E quanto mais histórias contarmos, melhores contadores nos tornaremos. Contar e ouvir histórias é mágico, é pessoal e dá-nos oportunidade de construirmo-nos enquanto seres pensantes.

 

Passamos, então, a sentar no chão em círculo uma vez por semana e contar e ouvir histórias em inglês sobre nossa infância, adolescência; ouvimos lendas, fábulas, textos lidos... todos vindo da memória e contribuindo na construção de pessoas e professores de LE.  Como diria Vygotsky, “as idéias passam por muitas transformações à medida que se transformam em linguagem. Elas não apenas encontram expressão na fala, mas nela tornam-se reais e adquirem forma” (apud Schulz, 2002). O contador da semana era sempre voluntário, às vezes aluno, às vezes professor, às vezes mais do que um.

 

Dessa maneira, começou-se a reconstruir a motivação dos alunos. Gardner & Lambert (1972) introduziram as noções de motivação instrumental e integrativa, sendo que a segunda mostra a vontade do aprendiz de integrar-se à comunidade da língua alvo. Nesse caso, a motivação resultante da atividade de contar histórias era mais a necessidade de integrar-se à comunidade de futuros professores, a realidade vivida na universidade. Outros estudos têm pesquisado outros enfoques da motivação, como Crookes & Schmidt (1991), e Gardner & Tremblay (1994), que sugeriram outros tipos de motivação, ou seja, ter uma razão para a aprendizagem, vontade de atingir uma meta, atitude positiva em relação ao ambiente de aprendizagem e comportamento de esforçar-se na direção do aprender.

 

Na atividade proposta de contar histórias, atendeu-se às quatro orientações citadas acima. Vejamos, os alunos em questão, embora já tivessem uma razão implícita para aprender inglês, uma vez que haviam escolhido o curso, desenvolveram ainda mais razões ao quererem contar histórias ao grupo e serem entendidos. Pelas mesmas razões, todos eles tinham uma meta a ser atingida. Mas, a construção de uma atitude positiva em relação à sala de aula começou a surgir com o ambiente descontraído que se criou e a conseqüente diminuição do risco ao se exporem diante de seus pares. O esforço veio naturalmente pela vontade de participar e compartilhar histórias de suas vidas. E com isso, foi implantado o prosear na sala de aula – uma ação natural, motivadora e produtiva – que se espera leve ao delírio da leitura.

 

Na esteira da motivação veio a prática na construção da competência comunicativa (Hymes, 1976) com o desenvolvimento de competências gramaticais, estratégicas, sociolingüísticas e discursivas na LE.

 

Competência gramatical no aprender da forma e da estrutura através da interação, da colaboração e da negociação na contação de histórias. Competência estratégica na capacidade de usar técnicas ou estratégias como gestos, ou procurar outra maneira de expressar um conceito na busca da superação das limitações no conhecimento da língua. Competência sociolingüística na prática de expressar-se em diferentes situações de vida, considerando que a situação apresentada em cada história era única. E, por último, a competência discursiva que foi espelhada na prática da produção de textos orais coerentes na LE na contação de cada história.

 

De acordo com Ellis (2005) trabalha-se com dez princípios para ter sucesso na aprendizagem de LE em contexto de sala de aula. Para ele, é importante que se desenvolva um repertório rico de expressões fixas, além de uma competência baseada em regras, desde que se dê ênfase predominantemente ao significado. Com isso, não se está ignorando que também é necessário ter um foco na forma, mas sempre dando ênfase no conhecimento implícito. Ao proporcionar um input extensivo é importante não ignorar o que o aluno traz consigo, sempre lembrando de proporcionar oportunidades de output. Tudo isso deve ser conduzido em uma abordagem interativa em que os alunos possam interagir uns com os outros na LE, para poderem desenvolver a proficiência na língua. É importante não descuidar das diferenças individuais, além de atentar para que a avaliação seja de produção livre e controlada.

 

Como diz Paiva (2004) os modelos não contemplam todos os processos envolvidos na aquisição de uma língua e, muito menos, os de uma língua estrangeira (LE).  Ellis (2005) reforça essa idéia ao dizer que “não há praticamente nenhuma área de aquisição de L2 que não esteja aberta a controversas[3]. As pesquisas procuram verdades gerais, no entanto, a ação docente dentro da sala de aula é indeterminada, incerta e dependente de muitas variáveis não previsíveis. O contexto de sala de aula no Brasil de LE é algo que tem sido pouco pesquisado.

 

A preocupação neste trabalho era o de motivar os alunos e despertar o gosto pela leitura que parecia estar adormecido. De acordo com Ellis (2005) o que pode ser importante não é a orientação individual de cada aluno, mas até que ponto esses alunos estão preparados para perseguir uma meta de aprendizagem, isto é, a intensidade da motivação e a perseverança dos alunos frente aos obstáculos naturais de um processo de aprendizagem complexo.

 

Parece que a motivação, embora importante e necessária para o começo de um processo, também se desenvolve a partir do sucesso na aprendizagem. É um processo circular. Tem-se a motivação que é trazida pelo aluno, tem-se aquela que é provocada pelas atividades propostas e tem-se a re-alimentação da motivação, baseada no sucesso do processo de aprendizagem.

 

A contação de histórias, usada como motivação e como instrumento de aprendizagem com esta turma demonstrou ter despertado muitos dos alunos para a beleza do texto, além de ter sido um instrumento motivador para a interação entre os pares. Tem-se dito que é mais fácil o professor provocar uma motivação intrínsica, promovendo atividades que envolvam o aluno com prazer. A pergunta é como fazemos isso? Este artigo apresenta uma proposta que deu certo. Outras formas poderão ser criadas por cada um, dependendo dos alunos, do nível de ensino, do contexto. O certo é que nós, professores, precisamos conhecer nossos alunos para poder propor atividades de aprendizagem que desenvolvam o gosto pela leitura em primeiro lugar e que provoquem a prática da interação e principalmente a reflexão.

 

 


 

Bibliografia consultada

Crookes, G., & Schmidt, R. W. (1991). Motivation: Reopening the research agenda. Language Learning, 41, 469-512. [EJ 435 997]

Ellis, R.  Instructed Second Language Acquisition – A Literature Review, Auckland UniServices Ltd., 2005.

Gardner, R. C., & Lambert, W. E. (1972). Attitudes and Motivation in Second-Language Learning. Rowley, Mass.: Newbury House Publishers.

Gardner, R. C., & Tremblay, P.F. (1994). On motivation, research agendas, and theoretical frameworks. Modern Language Journal, 78, 359-368. [EJ 497 731]

Schütz, Ricardo. "Vygotsky & Language Acquisition." English Made in Brazil <http://www.sk.com.br/sk-vygot.html>. Online. 3 de março de 2002.

Lightbown, P.M. & Spada, N.  How Languages are Learned, Oxford: Oxford University Press, 1993:40.



[1] Mestre em Letras com linhas de pesquisa em aprendizagem de LE em contextos de sala de aula, além de aprendizagem de LE à distância, mediado pelo tecnologia.

[2] A UFPel tem seis licenciaturas em Letras.

[3] Tradução nossa.