Ana Paula Nobre da CUNHA (UFPel)
Ana Ruth Moresco MIRANDA (UFPel)
Durante o processo de aquisição da escrita, a criança
passa por etapas de experimentação quanto à segmentação das palavras e, mesmo
sabendo que a escrita deve ser segmentada, não sabe onde, exatamente, tal
divisão deve ocorrer. Essa dúvida leva-a a inserir espaços indevidos no
interior da palavra, produzindo formas ortográficas como ‘a sim’ e ‘ter minar’ ao
invés de ‘assim’ e ‘terminar’, por exemplo. Nos textos
analisados para este trabalho, escritos por crianças que cursavam a primeira e
a segunda série do ensino fundamental, foram encontrados muitos exemplos de
hipersegmentação. O objetivo deste estudo é descrever e analisar, à luz da
teoria dos constituintes prosódicos (NESPOR & VOGEL, 1986), dados em que se
verifica tal fenômeno, evidenciando que a segmentação feita pela criança em
processo de desenvolvimento da escrita não é aleatória, mas dirigida pelo
conhecimento que ela possui a respeito das unidades prosódicas da língua.
O processo de aquisição da língua escrita
é um processo de aquisição de conhecimento. Para Piaget (1972), o conhecimento
não nasce com o indivíduo, o que lhe é inato é a capacidade de conhecer, de
aprender, de desenvolver qualquer área do conhecimento. O “sujeito cognoscente”
da teoria piagetiana se revela no processo de aquisição da língua escrita. Esse
sujeito é aquele que não espera que alguém lhe transmita o conhecimento, ele
aprende por intermédio de suas ações sobre os objetos do mundo que o cerca.
Fazendo isso, constrói suas próprias categorias de pensamento enquanto organiza
seu mundo.
Segundo Piaget (1978), a aquisição do
conhecimento não acontece de maneira linear, ou seja, um passo depois do outro,
ela se efetua de forma global, através de grandes reestruturações. Durante esse
processo de reestruturação, muitas vezes, chega-se a um resultado “errôneo”, no
entanto, o processo como um todo é sempre “construtivo”.
A idéia de erro construtivo é, de acordo
com Ferreiro e Teberosky (1999), de fundamental importância para o processo de
aprendizagem. Particularmente no que se refere à aquisição da língua escrita,
pode-se observar, através dos tipos de erros cometidos pela criança, os
processos pelos quais ela passa ao adquirir o sistema de escrita. Para o
professor, é fundamental saber quais são as etapas mais facilmente superáveis e
quais são aquelas que causam maiores
dificuldades para a criança, podendo, portanto, transformarem-se em problemas
permanentes para seu desempenho na escrita.
Para a teoria piagetiana, o objeto do
conhecimento só está compreendido quando o sujeito é capaz de reconstruí-lo,
quando tiver entendido quais são suas leis de composição. Assim, a criança só
terá efetivamente adquirido a escrita no momento em que for capaz de manuseá-la
nas suas mais variadas possibilidades, não a associando mais diretamente à
língua falada, mas utilizando-a como um objeto único, independente, que pode
ser construído e reconstruído a cada momento, de acordo com suas próprias
características e regras de composição. Durante o período de apropriação da
escrita, no entanto, sabe-se que criança lança mão do conhecimento
internalizado que possui a respeito da estrutura de sua língua, especialmente
em fases iniciais do processo de aquisição.
2. Sobre a segmentação da
escrita
Ferreiro e Pontecorvo (1996) mostram, em
seu artigo A Segmentação em Palavras
Gráficas, um estudo sobre a segmentação na aquisição da escrita. Uma das
constatações a que chegam as pesquisadoras diz respeito à dificuldade
encontrada pela criança em conceituar o que é palavra. Esse seria um dos grandes problemas enfrentado pelo aluno
durante a aquisição da escrita. No começo desse processo, é muito mais comum a
criança entender a palavra como um enunciado do que como uma unidade gramatical
ou semântica, por isso, a maior tendência à hipossegmentação.
Para Ferreiro e Pontecorvo (1996), a
noção de “palavra” é instável para a criança em fase de alfabetização, podendo
significar um fragmento do enunciado, o enunciado completo ou ainda letras
isoladas. A segmentação lexical começa a sistematizar-se quando a criança entra
para a escola. As autoras verificam que nesse período é mais fácil a criança
identificar como palavras os substantivos, os verbos e os adjetivos, sendo as
demais classes gramaticais, principalmente os artigos, conjunções, preposições
e outros elementos de ligação, consideradas como “não palavras”. Quando a
criança não reconhece alguma porção - uma ou duas sílabas - como palavra, a
tendência natural é que a associe àquela seqüência reconhecida como tal. Esse comportamento faz com que uma
grande incidência de hipossegmentações seja encontrada nos textos de séries
iniciais. Ferreiro e Pontecorvo (1996, p.61), no entanto, constatam que “as
mesmas seqüências que produzem a maior parte dos problemas de hipossegmentação
são também as que produzem a maior parte dos problemas de hipersegmentação”.
Isso aconteceria devido à instabilidade da conceituação por parte da criança
acerca do que é uma “palavra” e de quais são os seus limites.
Ferreiro e
Pontecorvo (1996, p.64) concluem dizendo que “a escrita das crianças parte de
formas unidas (em geral, segundo critérios gráficos e sintáticos) e evolui para
uma segmentação cada vez mais completa”.
Os
constituintes prosódicos, segundo Nespor e Vogel (1986), são fragmentos mentais
integrantes de uma hierarquia, aos quais se aplicam processos fonológicos bem
como regras fonológicas específicas. Esses constituintes não apresentam
necessariamente isomorfia com constituintes sintáticos, morfológicos ou
semânticos.
De acordo com as
autoras existem sete constituintes que compõem a hierarquia prosódica, os quais
se apresentam na seguinte ordem, do menor ao maior: sílaba (s), pé (S), palavra fonológica (w), grupo clítico (C), frase fonológica (f), frase entonacional (I) e enunciado (U).
Bisol
(1996b) mostra que essa hierarquia pode ser expressa através de um diagrama
arbóreo, como exemplificado em (1):
(1) U enunciado
I (I) frase entonacional
f (f) frase fonológica
C (C) grupo clítico
w (w) palavra
fonológica
S (S) pé
s (s) sílaba
A seguir, apresenta-se uma breve caracterização daqueles
constituintes que estão em jogo quando a criança tem a sua frente a tarefa de
segmentar seqüências lingüísticas em sua grafia e o faz alocando espaços
indevidos a formas que constituem ‘palavras’. Por tratar-se apenas da
hipersegmentação, a caracterização se restringirá aos quatro constituintes mais
baixos da hierarquia, a saber, sílaba, pé e palavra fonológica.
a) A sílaba (s)
Segundo
Nespor e Vogel (1986), a sílaba é o menor constituintes da hierarquia prosódica
a que se aplicam regras fonológias. Os constituintes da sílaba são o ataque (A)
e a rima (R), que pode subdividir-se em núcleo (N) e coda (C). De acordo com
Selkirk (1982) uma estrutura silábica do tipo CVC encontrada em palavras como
‘sol’ e ‘par’, por exemplo, teria a seguinte representação:
|
|
|
s |
|
|
|
|
|
A |
|
R |
|
|
|
|
|
N |
|
C |
|
|
|
C |
V |
|
C |
|
b) O pé métrico (S)
Uma seqüência de duas ou mais sílabas ou moras[1]
que estabeleçam uma relação de dominância, ou seja, que estejam sob o mesmo nó,
constitui um pé métrico. O pé métrico normalmente é estruturado de forma a ter
uma seqüência, com uma sílaba relativamente forte e as demais relativamente
fracas. A proeminência à esquerda ou à direita, varia de língua para língua.
Para Nespor e Vogel (1986), o pé é de fundamental importância para o acento,
isto é, para a identificação de sílabas tônicas e átonas no interior de
palavras assim como nas seqüências de maiores proporções.
c) A palavra fonológica (w)
Segundo
Nespor e Vogel (1986), a palavra fonológica ou palavra prosódica é a categoria
que domina o pé. Ela é o constituinte que representa a interação entre os
componentes fonológico e morfológico da gramática. A palavra fonológica tem um
domínio igual ou menor à palavra terminal de uma árvore sintática, não
extrapolando esse domínio em nenhuma língua.
O que
caracteriza fundamentalmente a palavra fonológica é que ela deve ter apenas um
acento primário[2], pois, sendo
um constituinte n-ário, tem apenas um elemento proeminente. O pé forte de uma
palavra fonológica será determinado por um parâmetro que deve ser fixado em
cada língua.
4. Sobre a metodologia do
estudo
Os dados
analisados neste estudo pertencem ao Banco de Textos de Aquisição da Escrita
(FaE-UFPel) que está vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “Aquisição e
Desenvolvimento da Escrita: ortografia e acentuação”[3].
O principal objetivo dessa pesquisa é investigar a aquisição e o
desenvolvimento da ortografia nos textos de crianças de 1ª a 4ª série do ensino
fundamental de duas escolas da cidade de Pelotas (RS), uma pública e outra
particular.
Os sujeitos participantes da pesquisa são
crianças com idades entre 6 e 12 anos que cursavam, na época das coletas, uma
das quatro primeiras séries do ensino fundamental. Os textos analisados foram
obtidos a partir de oficinas de produção textual, organizadas e implementadas
pelo grupo de pesquisa durante o período escolar, nas escolas freqüentadas
pelas crianças. Cada uma dessas oficinas baseou-se em uma proposta diferente,
que visava o texto espontâneo do aluno, pois é esse o que melhor revela as
hipóteses que a criança constrói acerca da linguagem escrita.
Especificamente
para este estudo, foram analisados aproximadamente 900 textos, obtidos nas dez
coletas realizadas. Os dados de hipersegmentação encontrados foram extraídos
dos textos e, após, organizados e analisados a partir de três variáveis
lingüísticas: tipo de palavra, estrutura silábica e tonicidade.
Considerando
que na hipersegmentação a criança divide uma unidade palavra em duas ou mais,
estabeleceu-se a variável tipo de palavra[4]
para que se pudesse verificar o tipo de palavra resultante da segmentação, se
palavras gramaticais e/ou fonológicas.
Entende-se
a palavra gramatical como aquela que
não possui significado lexical, como os clíticos, por exemplo. Para Bisol
(2000, p.19), “na classe dos clíticos, há aqueles que formam pés, como para, por, mas, em. Muitos, porém, não atendem a essa
restrição como os pronominais me, te, se,
lhe, nos, sem falar em outras palavras funcionais a, e, o ou combinações da, do, no, na.”
A noção de palavra fonológica abarca
todas as palavras que possuem um acento primário e que, mesmo não tendo
significado conhecido na língua, são candidatas potenciais para tal.
Considerando
essa variável tem-se, diante dos casos de hipersegmentação, quatro combinações
possíveis, a saber: a) palavra gramatical + palavra fonológica; b) palavra
fonológica + palavra gramatical; c) palavra gramatical + palavra gramatical; d)
palavra fonológica + palavra fonológica.
Depois de separadas de acordo com as
quatro possibilidades recém apresentadas, os grupos de palavras foram
analisados segundo as variáveis tipo de
sílaba e tonicidade.
Com a variável tipo de sílaba procurou-se verificar, nos dados analisados, a
preservação ou não do constituinte silábico nos processos de segmentação.
Segundo Abaurre (1987), a sílaba CV (consoante-vogal), considerada como padrão
no português brasileiro, é um dos primeiros constituintes que a criança
reconhece tão logo começa a dominar a escrita.
A
tonicidade é também um aspecto
importante a ser analisado nos processos de segmentação. Matzenauer (1990),
Miranda (1996) e Rangel (1998), entre outros, constataram, através de estudos
de aquisição da fonologia, que as sílabas átonas são mais propícias a sofrerem
processos fonológicos. Também tem-se verificado, através de estudos fonéticos,
que a tonicidade ou o acento das palavras pode alterar seus segmentos e, até
mesmo, a sua quantidade silábica. De acordo com Massini-Cagliari (1992),
observa-se uma tendência na língua portuguesa ao abreviamento das vogais átonas
e, em alguns casos, até mesmo o seu apagamento, enquanto que as sílabas tônicas
tendem a ser alongadas.
5. Sobre os dados de hipersegmentação
Nessa
seção, os dados serão apresentados de acordo com o resultado obtido após a
classificação feita de acordo com a variável tipo de palavra. Como pode-se observar a seguir há um forte
tendência ao surgimento, pós segmentação, de uma seqüência de palavra gramatical mais palavra fonológica.
Ferreiro e
Teberosky (1999) afirmam que quando a criança começa a escrever tem muita
dificuldade em reconhecer como palavra, conjuntos de uma ou duas letras, por
isso, na maioria das vezes, junta essas “letras” à palavra seguinte fazendo uma
hipossegmentação. Tal afirmativa revela o que pode ser um resquício da hipótese
da quantidade mínima de caracteres, segundo a qual é necessário que se tenha um
mínimo de letras para que algo possa ser lido. Com o desenvolvimento da
conceituação a respeito da escrita pela criança, a medida em que essa hipótese
começa a ser superada, estruturas que foram indevidamente unidas passam a ser
reconhecidas e estruturas que deveriam permanecer unidas, principalmente na
sílaba inicial, podem ocasionar uma segmentação inadequada. Esse fenômeno é o
mais freqüentemente observado nos dados de hipersegmentação, como se pode
observar nos exemplos em (2):
(2)
a onde (2x)[5] |
a dora |
e lefante |
in gredientes |
a via |
a ranha |
e norme |
na quela |
a pura (2x) |
a miguinho |
e ses |
na mora |
a puro |
a jar (achar) |
e lastico |
de mais (2x) |
a juda |
a tirava |
em costar |
de pois (4x) |
a jude |
a cordando |
em guliu |
di pois |
a gora |
a chou |
em bora (5x) |
de char |
a trasado |
a pareseu |
em trou |
da qui |
a zul |
a baixo |
em teram |
da nada |
a ventura |
a dando |
em terar |
da quela |
a tras (2x) |
o lhos |
em controu |
que brou |
a mar |
co migo |
em gregarão |
que remos |
a sim (3x) |
com migo (3x) |
em cheram |
sem tro (sentou) |
a migo (2x) |
com tar |
em fim |
|
Como pode-se
observar em (2), em alguns casos, o que resta à direita, além de ser uma palavra
fonológica é também uma palavra lexical, conforme mostram os dados ‘a onde’, ‘a
baixo’, ‘de mais’, ‘ na mora’, ‘da nada’ e ‘a tirava’, por exemplo. Já em
outros casos, também apresentados em (2), o que está segmentado à direita é uma
palavra fonológica sem significado lexical, assim considerada por existir a
preservação de um pé métrico, nesses casos, do tipo troqueu silábico[6],
como pode-se observar em grafias tais como ‘a juda’, ‘e norme’, ‘na
quela’, ‘em bora’ e ‘em terar’, por
exemplo.
Abaurre
(1991), em um estudo sobre a segmentação na escrita inicial, analisa quais
seriam os critérios utilizados pelas crianças na hora de segmentar uma palavra.
A autora levanta a hipótese de que as crianças possam estar lidando com um
conceito de forma canônica da palavra na língua, o que faz com que, nesse caso,
apareça uma forte tendência ao uso de palavras dissílabas e paroxítonas.
Esse
tipo de resultado decorrente da hipersegmentação é quase uma exceção, pois, nos dados estudados, há apenas três
ocorrências, as quais estão em (3):
(3) gitan
do
correm do
tu do
Nos exemplos apresentados observa-se, à direita, a grafia da
palavra gramatical ‘do’, uma forma bastante comum na língua, resultado da
contração que ocorre entre a preposição ‘de ‘ e o artigo ‘o’. Deve-se
considerar também que, nos dois primeiros exemplos, à esquerda da segmentação,
restaram formas verbais cuja freqüência no português é alta, ‘gritam’ e
‘correm’; e no caso da segmentação da palavra ‘tudo’, temos à esquerda o
pronome pessoal ‘tu’ forma de tratamento característica do dialeto gaúcho.
Assim, nesse caso, o que parece estar dirigindo a segmentação é o
reconhecimento da forma das palavras.
A seqüência de duas palavras gramaticais
não foi observada nos dados. A grafia de um ‘porquê’ separado não pôde ser
considerada como um erro, devido ao fato de existir a possibilidade dessa
palavra ser grafada de ambas as formas, junto ou separado, dependendo apenas do
contexto em que se encontra.
Nos dados, as seqüências de duas
palavras fonológicas apresentaram três possibilidades, quais sejam: uma palavra
fonológica transformando-se em duas que não possuem significado na língua; uma
palavra fonológica transformando-se em duas palavras lexicais; e uma palavra
fonológica transformando-se em uma lexical e outra sem significado. Os
respectivos resultados podem ser observados em (4), (5) e (6):
(4) |
(5) |
(6) |
|
tor meiro (torneio) |
ter mina |
chapeu sinho |
cam guru (7x) |
verda deiro |
ponta pé |
chapéu zinha |
can gurus |
gos toza |
mau tratados |
chapeu zinho |
can guru (4x) |
pegum untou |
mau tratarão |
ter minar |
man deu |
resou veram |
|
dor mir |
tam bem |
|
|
pare ceu |
nem nhum |
|
|
des mais |
|
|
|
ar partamento |
|
|
|
des cubriu |
|
Nos exemplos
mostrados em (4), observa-se uma tendência à formação de duas palavras
dissílabas, reforçando o que foi dito por Abaurre (1991) sobre essa preferência
das crianças em fase de aquisição da escrita, ou uma monossílaba com duas
moras, sílaba pesada, mais uma
dissílaba. As palavras que se originam da segmentação, nesse caso, não possuem
significado lexical, mas preservam o pé métrico, legitimando a formação de duas
palavras fonológicas.
Em (5), além da preservação de pés métricos, a criança
pode estar interpretando essas palavras como duas palavras lexicais integrantes
do seu vocabulário, pois, do resultado da segmentação tem-se duas palavras
lexicais, de conteúdo. Abaurre (1991) mostra alguns exemplos de palavras menos
conhecidas da criança que, ao serem escutadas, foram apresentadas na escrita
como duas palavras autônomas: ‘catapulta’ que a criança escreve como ‘cata’ e
‘puta’ e a palavra ‘calabouço’ escrita como ‘cala’ e ‘bolso’. Não se pode
deixar de mencionar, no entanto, que os exemplos ‘pontapé’ e
‘maltrataram/maltratados’, diferentemente de ‘ter mina’, são compostos do
português.
Nos exemplos mostrados em (6) o reconhecimento de uma
palavra lexical à esquerda ou à direita pode ter sido uma das motivações da
segmentação. No caso específico da segmentação da palavra ‘chapeuzinho’, que
aparece grafada de três maneiras diferentes, pode-se observar uma outra
motivação além do reconhecimento da palavra ‘chapéu’. De acordo com Bisol
(1994), palavras morfológicas formadas com o sufixo –zinho possuem duas palavras fonológicas devido ao acento primário
do sufixo. Ao juntar a palavra ‘chapéu’ com o sufixo ‘-zinho’, tem-se duas
sílabas fortes sucessivas. No nível da palavra, de acordo com Bisol (1994), a
grade métrica do português é sensível ao choque de acentos. Esse choque pode
ter sido uma das motivações para a segmentação da palavra ‘chapeuzinho’.
No caso das
palavras ‘canguru’, ‘mandou’, ‘também’ e ‘nenhum’, além do reconhecimento de
uma palavra lexical, a hipersegmentação pode ter sido motivada pela coda nasal
das sílabas que ficaram isoladas à esquerda.
Duas
tendências apresentaram-se como predominantes: separação de uma palavra em
duas, uma gramatical e outra fonológica, e separação de uma palavra em duas
palavras fonológicas.
Os dados
que envolvem uma palavra gramatical e uma palavra fonólogica são os mais
numerosos. Possuem, segundo Ferreiro e Teberosky (1999), o reconhecimento de
uma palavra gramatical como motivação. Nesse caso, a criança reconhece a sílaba
inicial como uma palavra gramatical e, conseqüentemente, a isola, ocasionando a
formação de duas palavras, uma gramatical e outra fonológica. A palavra
fonológica que fica segmentada à direita pode ter significado lexical ou não, o
que se mostra mais representativo nessa palavra fonológica é a preservação de
um pé métrico, na maioria dos casos um troqueu silábico. A preservação do pé
métrico confirma a tendência observada por Abaurre (1991), segundo a qual as
crianças, em fase de aquisição da escrita, mostram preferência pela formação de
palavras dissílabas ou trissílabas, ambas paroxítonas.
Nas
ocorrências de hipersegmentação que resultam em duas palavras fonológicas, que
podem ou não ter significado lexical, observou-se que essas separações podem
ter as seguintes motivações: preferência pela formação de palavras dissílabas e
paroxítonas; reconhecimento de palavras integrantes do vocabulário da criança;
tentativa de preservação de um pé métrico que tenha apenas uma sílaba pesada.
As
hipersegmentações que formam uma palavra fonológica e uma palavra gramatical,
assim como as que geram duas palavras gramaticais, são consideradas uma exceção
dentre os dados analisados neste trabalho, devido à pouca ocorrência de dados.
Nos
dados de hipersegmentação, em geral, quanto à variável “tipo de sílaba”,
pôde-se constatar que, ao inserir um espaço dentro da palavra, a criança tende
a preservar as estruturas silábicas da língua, e somente em casos raríssimos
isso não se verifica.
A
variável “tonicidade” mostrou-se importante nos dados de hipersegmentação. A
sílaba tônica parece influenciar a decisão da criança tanto quando há a
preservação do pé binário, antes do qual é inserido o espaço, como quando há
isolamento de sílabas pesadas.
Os dados
analisados revelaram, com relação aos constituintes prosódicos, duas
importantes tendências: uma relativa à manutenção da integridade da sílaba,
pois a criança preserva o constituinte silábico ao definir os limites da
palavra; e outra, à manutenção do pé métrico, uma vez que se observou uma
acentuada tendência à preservação do pé binário, em especial, do tipo troqueu
silábico.
Conforme
mostrado por Cunha (2004), os constituintes de nível mais alto, tais como a
frase fonológica, a frase entonacional e o enunciado, parecem dirigir processos
de hipossegmentação. A criança, ao perceber a fala como um contínuo, apresenta,
no início do processo de aquisição da escrita, uma forte tendência em separar a
escrita de acordo com a presença de grupos tonais ou de linhas entonacionais. Esse
tipo de ocorrência tende a diminuir tão logo o aluno percebe que a escrita não
é exatamente um espelho da fala.
Deve-se observar
também que, nos primeiros anos de escolarização, grande parte das dúvidas
apresentadas pela criança, quanto à segmentação, parecem se resolver
naturalmente. No entanto, quando persistem erros dessa natureza, seja de hiper
ou de hipossegmentação, faz-se necessária uma intervenção consciente por parte
do professor para que essas dúvidas não se tornem problemas ao longo da vida escolar
do aluno.
ABAURRE, Maria Bernadete. O que revelam os textos espontâneos sobre a representação que faz a
criança do objeto escrito? Anais do GEL, 1987.
. A relevância dos critérios prosódicos
e semânticos na elaboração de hipóteses sobre segmentação na escrita inicial. Boletim da ABRALIN, 1991.
BISOL, Leda.. O acento e o pé binário. Letras de hoje. Porto Alegre: PUC-RS,
v.29, n.4, p.25-36, 1994.
__________. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 1996.
. O
clítico e seu status prosódico. Revista
de estudos de linguagem. Belo Horizonte: UFMG, v.9, p.5-30, 2000.
CÂMARA JR.,
Joaquim Mattoso. Estrutura da língua
portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970. [1983]
CUNHA, Ana Paula Nobre da. A hipo e a hipersegmentação nos dados de aquisição da escrita: um
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Pelotas, 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFPel, 2004.
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do português: estabelecimento de padrões com base em traços distintivos.
1990. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, PUCRS, Porto
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MIRANDA, Ana Ruth. A aquisição do ‘r’: uma contribuição à discussão sobre seu status
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Dissertação (Mestrado em Letras) – PUCRS, 1996.
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epistemologia genética. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972.
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SELKIRK,
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between sound and structure. Cambridge, Massachussetts: MIT Press, 1984.
[1] Uma mora é equivalente ao elemento que constitui a rima. Considerando, por exemplo, a representação da sílaba CVC apresentada anteriormente, temos duas moras, o núcleo e a coda silábica.
[2] Se tomarmos como exemplo uma palavra composta do português tal como ‘guarda-roupa’, por exemplo, temos duas palavras fonológicas, uma vez que temos dois acentos primários, e uma só palavra morfológica.
[3] Esta pesquisa recebeu financiamento da FAPERGS (Processo 01/1345.4)
[4] Essa variável foi definida por Cunha (2004) na sua dissertação de mestrado “A hipo e a hipersegmentação nos dados de aquisição da escrita: um estudo sobre a influência da prosódia”.
[5] A informação entre parênteses é relativa à quantidade de vezes que tal grafia foi encontrada na amostra estudada.
[6] O troqueu silábico é um
pé composto por duas sílabas, com proeminência à esquerda. A contagem das
sílabas não considera sua estrutura interna. Abaixo está a representação deste
pé:
(* |
· ) |
s |
s |