A HIPERSEGMENTAÇÃO NOS DADOS DE AQUISIÇÃO DA ESCRITA

 

 

Ana Paula Nobre da CUNHA (UFPel)

    Ana Ruth Moresco MIRANDA (UFPel)

 

Introdução

            Durante o processo de aquisição da escrita, a criança passa por etapas de experimentação quanto à segmentação das palavras e, mesmo sabendo que a escrita deve ser segmentada, não sabe onde, exatamente, tal divisão deve ocorrer. Essa dúvida leva-a a inserir espaços indevidos no interior da palavra, produzindo formas ortográficas como ‘a sim’ e ‘ter minar’ ao invés de ‘assim’ e ‘terminar’, por exemplo. Nos textos analisados para este trabalho, escritos por crianças que cursavam a primeira e a segunda série do ensino fundamental, foram encontrados muitos exemplos de hipersegmentação. O objetivo deste estudo é descrever e analisar, à luz da teoria dos constituintes prosódicos (NESPOR & VOGEL, 1986), dados em que se verifica tal fenômeno, evidenciando que a segmentação feita pela criança em processo de desenvolvimento da escrita não é aleatória, mas dirigida pelo conhecimento que ela possui a respeito das unidades prosódicas da língua.

 

1. Sobre a aquisição da escrita

O processo de aquisição da língua escrita é um processo de aquisição de conhecimento. Para Piaget (1972), o conhecimento não nasce com o indivíduo, o que lhe é inato é a capacidade de conhecer, de aprender, de desenvolver qualquer área do conhecimento. O “sujeito cognoscente” da teoria piagetiana se revela no processo de aquisição da língua escrita. Esse sujeito é aquele que não espera que alguém lhe transmita o conhecimento, ele aprende por intermédio de suas ações sobre os objetos do mundo que o cerca. Fazendo isso, constrói suas próprias categorias de pensamento enquanto organiza seu mundo.

Segundo Piaget (1978), a aquisição do conhecimento não acontece de maneira linear, ou seja, um passo depois do outro, ela se efetua de forma global, através de grandes reestruturações. Durante esse processo de reestruturação, muitas vezes, chega-se a um resultado “errôneo”, no entanto, o processo como um todo é sempre “construtivo”.

A idéia de erro construtivo é, de acordo com Ferreiro e Teberosky (1999), de fundamental importância para o processo de aprendizagem. Particularmente no que se refere à aquisição da língua escrita, pode-se observar, através dos tipos de erros cometidos pela criança, os processos pelos quais ela passa ao adquirir o sistema de escrita. Para o professor, é fundamental saber quais são as etapas mais facilmente superáveis e quais são aquelas que  causam maiores dificuldades para a criança, podendo, portanto, transformarem-se em problemas permanentes para seu desempenho na escrita.

Para a teoria piagetiana, o objeto do conhecimento só está compreendido quando o sujeito é capaz de reconstruí-lo, quando tiver entendido quais são suas leis de composição. Assim, a criança só terá efetivamente adquirido a escrita no momento em que for capaz de manuseá-la nas suas mais variadas possibilidades, não a associando mais diretamente à língua falada, mas utilizando-a como um objeto único, independente, que pode ser construído e reconstruído a cada momento, de acordo com suas próprias características e regras de composição. Durante o período de apropriação da escrita, no entanto, sabe-se que criança lança mão do conhecimento internalizado que possui a respeito da estrutura de sua língua, especialmente em fases iniciais do processo de aquisição.

 

2. Sobre a segmentação da escrita

Ferreiro e Pontecorvo (1996) mostram, em seu artigo A Segmentação em Palavras Gráficas, um estudo sobre a segmentação na aquisição da escrita. Uma das constatações a que chegam as pesquisadoras diz respeito à dificuldade encontrada pela criança em conceituar o que é palavra. Esse seria um dos grandes problemas enfrentado pelo aluno durante a aquisição da escrita. No começo desse processo, é muito mais comum a criança entender a palavra como um enunciado do que como uma unidade gramatical ou semântica, por isso, a maior tendência à hipossegmentação.

Para Ferreiro e Pontecorvo (1996), a noção de “palavra” é instável para a criança em fase de alfabetização, podendo significar um fragmento do enunciado, o enunciado completo ou ainda letras isoladas. A segmentação lexical começa a sistematizar-se quando a criança entra para a escola. As autoras verificam que nesse período é mais fácil a criança identificar como palavras os substantivos, os verbos e os adjetivos, sendo as demais classes gramaticais, principalmente os artigos, conjunções, preposições e outros elementos de ligação, consideradas como “não palavras”. Quando a criança não reconhece alguma porção - uma ou duas sílabas - como palavra, a tendência natural é que a associe àquela seqüência reconhecida  como tal. Esse comportamento faz com que uma grande incidência de hipossegmentações seja encontrada nos textos de séries iniciais. Ferreiro e Pontecorvo (1996, p.61), no entanto, constatam que “as mesmas seqüências que produzem a maior parte dos problemas de hipossegmentação são também as que produzem a maior parte dos problemas de hipersegmentação”. Isso aconteceria devido à instabilidade da conceituação por parte da criança acerca do que é uma “palavra” e de quais são os seus limites.

Ferreiro e Pontecorvo (1996, p.64) concluem dizendo que “a escrita das crianças parte de formas unidas (em geral, segundo critérios gráficos e sintáticos) e evolui para uma segmentação cada vez mais completa”.

 

3. Sobre a Fonologia Prosódica

Para a teoria prosódica, a representação mental da fala está dividida em segmentos hierarquicamente organizados. A cadeia da fala é um ato contínuo, porém compreender uma língua pressupõe saber dividir mentalmente essa continuidade em componentes psicologicamente significativos, os constituintes prosódicos.

Os constituintes prosódicos, segundo Nespor e Vogel (1986), são fragmentos mentais integrantes de uma hierarquia, aos quais se aplicam processos fonológicos bem como regras fonológicas específicas. Esses constituintes não apresentam necessariamente isomorfia com constituintes sintáticos, morfológicos ou semânticos.

De acordo com as autoras existem sete constituintes que compõem a hierarquia prosódica, os quais se apresentam na seguinte ordem, do menor ao maior: sílaba (s), pé (S), palavra fonológica (w), grupo clítico (C), frase fonológica (f), frase entonacional (I) e enunciado (U).

Bisol (1996b) mostra que essa hierarquia pode ser expressa através de um diagrama arbóreo, como exemplificado em (1):

 

(1)                                                                  U                     enunciado

                                                           I                      (I)        frase entonacional

                                               f                     (f)                   frase fonológica

                                   C                     (C)                              grupo clítico

                        w                     (w)                                          palavra fonológica

            S                     (S)                                                     

s                     (s)                                                                  sílaba

 

 

                A seguir, apresenta-se uma breve caracterização daqueles constituintes que estão em jogo quando a criança tem a sua frente a tarefa de segmentar seqüências lingüísticas em sua grafia e o faz alocando espaços indevidos a formas que constituem ‘palavras’. Por tratar-se apenas da hipersegmentação, a caracterização se restringirá aos quatro constituintes mais baixos da hierarquia, a saber, sílaba, pé e palavra fonológica.

 

a)  A sílaba (s)

Segundo Nespor e Vogel (1986), a sílaba é o menor constituintes da hierarquia prosódica a que se aplicam regras fonológias. Os constituintes da sílaba são o ataque (A) e a rima (R), que pode subdividir-se em núcleo (N) e coda (C). De acordo com Selkirk (1982) uma estrutura silábica do tipo CVC encontrada em palavras como ‘sol’ e ‘par’, por exemplo, teria a seguinte representação:

 

 

 

s

 

 

 

 

 

A

 

R

 

 

 

 

 

N

 

C

 

 

 

 

C

 

V

 

 

C

 

 

 

 

b)  O pé métrico (S)

Uma seqüência de duas ou mais sílabas ou moras[1] que estabeleçam uma relação de dominância, ou seja, que estejam sob o mesmo nó, constitui um pé métrico. O pé métrico normalmente é estruturado de forma a ter uma seqüência, com uma sílaba relativamente forte e as demais relativamente fracas. A proeminência à esquerda ou à direita, varia de língua para língua. Para Nespor e Vogel (1986), o pé é de fundamental importância para o acento, isto é, para a identificação de sílabas tônicas e átonas no interior de palavras assim como nas seqüências de maiores proporções.

 

c)  A palavra fonológica  (w)

Segundo Nespor e Vogel (1986), a palavra fonológica ou palavra prosódica é a categoria que domina o pé. Ela é o constituinte que representa a interação entre os componentes fonológico e morfológico da gramática. A palavra fonológica tem um domínio igual ou menor à palavra terminal de uma árvore sintática, não extrapolando esse domínio em nenhuma língua.

O que caracteriza fundamentalmente a palavra fonológica é que ela deve ter apenas um acento primário[2], pois, sendo um constituinte n-ário, tem apenas um elemento proeminente. O pé forte de uma palavra fonológica será determinado por um parâmetro que deve ser fixado em cada língua.

 

4. Sobre a metodologia do estudo

Os dados analisados neste estudo pertencem ao Banco de Textos de Aquisição da Escrita (FaE-UFPel) que está vinculado ao projeto de pesquisa intitulado “Aquisição e Desenvolvimento da Escrita: ortografia e acentuação”[3]. O principal objetivo dessa pesquisa é investigar a aquisição e o desenvolvimento da ortografia nos textos de crianças de 1ª a 4ª série do ensino fundamental de duas escolas da cidade de Pelotas (RS), uma pública e outra particular.

 Os sujeitos participantes da pesquisa são crianças com idades entre 6 e 12 anos que cursavam, na época das coletas, uma das quatro primeiras séries do ensino fundamental. Os textos analisados foram obtidos a partir de oficinas de produção textual, organizadas e implementadas pelo grupo de pesquisa durante o período escolar, nas escolas freqüentadas pelas crianças. Cada uma dessas oficinas baseou-se em uma proposta diferente, que visava o texto espontâneo do aluno, pois é esse o que melhor revela as hipóteses que a criança constrói acerca da linguagem escrita.

Especificamente para este estudo, foram analisados aproximadamente 900 textos, obtidos nas dez coletas realizadas. Os dados de hipersegmentação encontrados foram extraídos dos textos e, após, organizados e analisados a partir de três variáveis lingüísticas: tipo de palavra, estrutura silábica e tonicidade.

Considerando que na hipersegmentação a criança divide uma unidade palavra em duas ou mais, estabeleceu-se a variável tipo de palavra[4] para que se pudesse verificar o tipo de palavra resultante da segmentação, se palavras gramaticais e/ou fonológicas.

Entende-se a palavra gramatical como aquela que não possui significado lexical, como os clíticos, por exemplo. Para Bisol (2000, p.19), “na classe dos clíticos, há aqueles que formam pés, como para, por, mas, em. Muitos, porém, não atendem a essa restrição como os pronominais me, te, se, lhe, nos, sem falar em outras palavras funcionais a, e, o ou combinações da, do, no, na.” A noção de palavra fonológica abarca todas as palavras que possuem um acento primário e que, mesmo não tendo significado conhecido na língua, são candidatas potenciais para tal.

Considerando essa variável tem-se, diante dos casos de hipersegmentação, quatro combinações possíveis, a saber: a) palavra gramatical + palavra fonológica; b) palavra fonológica + palavra gramatical; c) palavra gramatical + palavra gramatical; d) palavra fonológica + palavra fonológica.

            Depois de separadas de acordo com as quatro possibilidades recém apresentadas, os grupos de palavras foram analisados segundo as variáveis tipo de sílaba e tonicidade.

            Com a variável tipo de sílaba procurou-se verificar, nos dados analisados, a preservação ou não do constituinte silábico nos processos de segmentação. Segundo Abaurre (1987), a sílaba CV (consoante-vogal), considerada como padrão no português brasileiro, é um dos primeiros constituintes que a criança reconhece tão logo começa a dominar a escrita.

A tonicidade é também um aspecto importante a ser analisado nos processos de segmentação. Matzenauer (1990), Miranda (1996) e Rangel (1998), entre outros, constataram, através de estudos de aquisição da fonologia, que as sílabas átonas são mais propícias a sofrerem processos fonológicos. Também tem-se verificado, através de estudos fonéticos, que a tonicidade ou o acento das palavras pode alterar seus segmentos e, até mesmo, a sua quantidade silábica. De acordo com Massini-Cagliari (1992), observa-se uma tendência na língua portuguesa ao abreviamento das vogais átonas e, em alguns casos, até mesmo o seu apagamento, enquanto que as sílabas tônicas tendem a ser alongadas.

 

5. Sobre os dados de hipersegmentação

            Nessa seção, os dados serão apresentados de acordo com o resultado obtido após a classificação feita de acordo com a variável tipo de palavra. Como pode-se observar a seguir há um forte tendência ao surgimento, pós segmentação, de uma seqüência de palavra gramatical mais palavra fonológica.

 

a) Palavra gramatical + palavra fonológica

Ferreiro e Teberosky (1999) afirmam que quando a criança começa a escrever tem muita dificuldade em reconhecer como palavra, conjuntos de uma ou duas letras, por isso, na maioria das vezes, junta essas “letras” à palavra seguinte fazendo uma hipossegmentação. Tal afirmativa revela o que pode ser um resquício da hipótese da quantidade mínima de caracteres, segundo a qual é necessário que se tenha um mínimo de letras para que algo possa ser lido. Com o desenvolvimento da conceituação a respeito da escrita pela criança, a medida em que essa hipótese começa a ser superada, estruturas que foram indevidamente unidas passam a ser reconhecidas e estruturas que deveriam permanecer unidas, principalmente na sílaba inicial, podem ocasionar uma segmentação inadequada. Esse fenômeno é o mais freqüentemente observado nos dados de hipersegmentação, como se pode observar nos exemplos em (2):

 

(2)

a onde (2x)[5]

a dora

e lefante

in gredientes

a via

a ranha

e norme

na quela

a pura (2x)

a miguinho

e ses

na mora

a puro

a jar (achar)

e lastico

de mais (2x)

a juda

a tirava

em costar

de pois (4x)

a jude

a cordando

em guliu

di pois

a gora

a chou

em bora (5x)

de char

a trasado

a pareseu

em trou

da qui

a zul

a baixo

em teram

da nada

a ventura

a dando

em terar

da quela

a tras (2x)

o lhos

em controu

que brou

a mar

co migo

em gregarão

que remos

a sim (3x)

com migo (3x)

em cheram

sem tro (sentou)

a migo (2x)

com tar

em fim

 

 

           

Como pode-se observar em (2), em alguns casos, o que resta à direita, além de ser uma palavra fonológica é também uma palavra lexical, conforme mostram os dados ‘a onde’, ‘a baixo’, ‘de mais’, ‘ na mora’, ‘da nada’ e ‘a tirava’, por exemplo. Já em outros casos, também apresentados em (2), o que está segmentado à direita é uma palavra fonológica sem significado lexical, assim considerada por existir a preservação de um pé métrico, nesses casos, do tipo troqueu silábico[6], como pode-se observar em grafias tais como ‘a juda’, ‘e norme’, ‘na quela’,  ‘em bora’ e ‘em terar’, por exemplo.

Abaurre (1991), em um estudo sobre a segmentação na escrita inicial, analisa quais seriam os critérios utilizados pelas crianças na hora de segmentar uma palavra. A autora levanta a hipótese de que as crianças possam estar lidando com um conceito de forma canônica da palavra na língua, o que faz com que, nesse caso, apareça uma forte tendência ao uso de palavras dissílabas e paroxítonas.

             

b) Palavra fonológica + palavra gramatical

Esse tipo de resultado decorrente da hipersegmentação é  quase uma exceção, pois, nos dados estudados, há apenas três ocorrências, as quais estão em (3):

 

(3)     gitan do  

correm do

tu do

 

Nos exemplos apresentados observa-se, à direita, a grafia da palavra gramatical ‘do’, uma forma bastante comum na língua, resultado da contração que ocorre entre a preposição ‘de ‘ e o artigo ‘o’. Deve-se considerar também que, nos dois primeiros exemplos, à esquerda da segmentação, restaram formas verbais cuja freqüência no português é alta, ‘gritam’ e ‘correm’; e no caso da segmentação da palavra ‘tudo’, temos à esquerda o pronome pessoal ‘tu’ forma de tratamento característica do dialeto gaúcho. Assim, nesse caso, o que parece estar dirigindo a segmentação é o reconhecimento da forma das palavras.

 

c) Palavra gramatical + palavra gramatical

      A seqüência de duas palavras gramaticais não foi observada nos dados. A grafia de um ‘porquê’ separado não pôde ser considerada como um erro, devido ao fato de existir a possibilidade dessa palavra ser grafada de ambas as formas, junto ou separado, dependendo apenas do contexto em que se encontra.

 

c) Palavra fonológica + palavra fonológica

            Nos dados, as seqüências de duas palavras fonológicas apresentaram três possibilidades, quais sejam: uma palavra fonológica transformando-se em duas que não possuem significado na língua; uma palavra fonológica transformando-se em duas palavras lexicais; e uma palavra fonológica transformando-se em uma lexical e outra sem significado. Os respectivos resultados podem ser observados em (4), (5) e (6):

 

 

 

(4)

(5)

(6)

 

tor meiro (torneio)

ter mina

chapeu sinho

cam guru (7x)

verda deiro

ponta pé

chapéu zinha

can gurus

gos toza

mau tratados

chapeu zinho

can guru (4x)

pegum untou

mau tratarão

ter minar

man deu

resou veram

 

dor mir

tam bem

 

 

pare ceu

nem nhum

 

 

des mais

 

 

 

ar partamento

 

 

 

des cubriu

 

 

Nos exemplos mostrados em (4), observa-se uma tendência à formação de duas palavras dissílabas, reforçando o que foi dito por Abaurre (1991) sobre essa preferência das crianças em fase de aquisição da escrita, ou uma monossílaba com duas moras, sílaba pesada,  mais uma dissílaba. As palavras que se originam da segmentação, nesse caso, não possuem significado lexical, mas preservam o pé métrico, legitimando a formação de duas palavras fonológicas.

            Em (5), além da preservação de pés métricos, a criança pode estar interpretando essas palavras como duas palavras lexicais integrantes do seu vocabulário, pois, do resultado da segmentação tem-se duas palavras lexicais, de conteúdo. Abaurre (1991) mostra alguns exemplos de palavras menos conhecidas da criança que, ao serem escutadas, foram apresentadas na escrita como duas palavras autônomas: ‘catapulta’ que a criança escreve como ‘cata’ e ‘puta’ e a palavra ‘calabouço’ escrita como ‘cala’ e ‘bolso’. Não se pode deixar de mencionar, no entanto, que os exemplos ‘pontapé’ e ‘maltrataram/maltratados’, diferentemente de ‘ter mina’, são compostos do português.

            Nos exemplos mostrados em (6) o reconhecimento de uma palavra lexical à esquerda ou à direita pode ter sido uma das motivações da segmentação. No caso específico da segmentação da palavra ‘chapeuzinho’, que aparece grafada de três maneiras diferentes, pode-se observar uma outra motivação além do reconhecimento da palavra ‘chapéu’. De acordo com Bisol (1994), palavras morfológicas formadas com o sufixo –zinho possuem duas palavras fonológicas devido ao acento primário do sufixo. Ao juntar a palavra ‘chapéu’ com o sufixo ‘-zinho’, tem-se duas sílabas fortes sucessivas. No nível da palavra, de acordo com Bisol (1994), a grade métrica do português é sensível ao choque de acentos. Esse choque pode ter sido uma das motivações para a segmentação da palavra ‘chapeuzinho’.

No caso das palavras ‘canguru’, ‘mandou’, ‘também’ e ‘nenhum’, além do reconhecimento de uma palavra lexical, a hipersegmentação pode ter sido motivada pela coda nasal das sílabas que ficaram isoladas à esquerda.

 

6. Comentários finais

Duas tendências apresentaram-se como predominantes: separação de uma palavra em duas, uma gramatical e outra fonológica, e separação de uma palavra em duas palavras fonológicas.

Os dados que envolvem uma palavra gramatical e uma palavra fonólogica são os mais numerosos. Possuem, segundo Ferreiro e Teberosky (1999), o reconhecimento de uma palavra gramatical como motivação. Nesse caso, a criança reconhece a sílaba inicial como uma palavra gramatical e, conseqüentemente, a isola, ocasionando a formação de duas palavras, uma gramatical e outra fonológica. A palavra fonológica que fica segmentada à direita pode ter significado lexical ou não, o que se mostra mais representativo nessa palavra fonológica é a preservação de um pé métrico, na maioria dos casos um troqueu silábico. A preservação do pé métrico confirma a tendência observada por Abaurre (1991), segundo a qual as crianças, em fase de aquisição da escrita, mostram preferência pela formação de palavras dissílabas ou trissílabas, ambas paroxítonas.

Nas ocorrências de hipersegmentação que resultam em duas palavras fonológicas, que podem ou não ter significado lexical, observou-se que essas separações podem ter as seguintes motivações: preferência pela formação de palavras dissílabas e paroxítonas; reconhecimento de palavras integrantes do vocabulário da criança; tentativa de preservação de um pé métrico que tenha apenas uma sílaba pesada.

As hipersegmentações que formam uma palavra fonológica e uma palavra gramatical, assim como as que geram duas palavras gramaticais, são consideradas uma exceção dentre os dados analisados neste trabalho, devido à pouca ocorrência de dados.

Nos dados de hipersegmentação, em geral, quanto à variável “tipo de sílaba”, pôde-se constatar que, ao inserir um espaço dentro da palavra, a criança tende a preservar as estruturas silábicas da língua, e somente em casos raríssimos isso não se verifica.

A variável “tonicidade” mostrou-se importante nos dados de hipersegmentação. A sílaba tônica parece influenciar a decisão da criança tanto quando há a preservação do pé binário, antes do qual é inserido o espaço, como quando há isolamento de sílabas pesadas.

Os dados analisados revelaram, com relação aos constituintes prosódicos, duas importantes tendências: uma relativa à manutenção da integridade da sílaba, pois a criança preserva o constituinte silábico ao definir os limites da palavra; e outra, à manutenção do pé métrico, uma vez que se observou uma acentuada tendência à preservação do pé binário, em especial, do tipo troqueu silábico.

Conforme mostrado por Cunha (2004), os constituintes de nível mais alto, tais como a frase fonológica, a frase entonacional e o enunciado, parecem dirigir processos de hipossegmentação. A criança, ao perceber a fala como um contínuo, apresenta, no início do processo de aquisição da escrita, uma forte tendência em separar a escrita de acordo com a presença de grupos tonais ou de linhas entonacionais. Esse tipo de ocorrência tende a diminuir tão logo o aluno percebe que a escrita não é exatamente um espelho da fala.

Deve-se observar também que, nos primeiros anos de escolarização, grande parte das dúvidas apresentadas pela criança, quanto à segmentação, parecem se resolver naturalmente. No entanto, quando persistem erros dessa natureza, seja de hiper ou de hipossegmentação, faz-se necessária uma intervenção consciente por parte do professor para que essas dúvidas não se tornem problemas ao longo da vida escolar do aluno. 

 

7. Referências bibliográficas

 

ABAURRE, Maria Bernadete. O que revelam os textos espontâneos sobre a representação que faz a criança do objeto escrito? Anais do GEL, 1987.

 

                    . A relevância dos critérios prosódicos e semânticos na elaboração de hipóteses sobre segmentação na escrita inicial. Boletim da ABRALIN, 1991.

 

BISOL, Leda.. O acento e o pé binário. Letras de hoje. Porto Alegre: PUC-RS, v.29, n.4, p.25-36, 1994.

 

__________. (org.). Introdução a estudos de fonologia do português brasileiro. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1996.

 

                    . O clítico e seu status prosódico. Revista de estudos de linguagem. Belo Horizonte: UFMG, v.9, p.5-30, 2000.

 

CÂMARA  JR., Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970. [1983]

 

CUNHA, Ana Paula Nobre da. A hipo e a hipersegmentação nos dados de aquisição da escrita: um estudo sobre a influência da prosódia. Pelotas, 2004. Dissertação (Mestrado em Educação) – UFPel, 2004.

 

FERREIRO, Emília. PONTECORVO, Clotilde. Os limites entre as palavras. A segmentação em palavras gráficas. In: FERREIRO, Emilia. PONTECORVO, Clotilde. MOREIRA, Nadja Ribeiro. HIDALGO, Isabel García. Chapeuzinho Vermelho aprende a escrever. São Paulo: Ática, p.38-66, 1996. 

 
                    . TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.

 

MASSINI-CAGLIARI, Gladis. Acento e ritmo. São Paulo: Contexto, 1992.

 

MATZENAUER, Carmem Lúcia. A aquisição da fonologia do português: estabelecimento de padrões com base em traços distintivos. 1990. Tese (Doutorado em Letras) – Instituto de Letras e Artes, PUCRS, Porto Alegre, 1990.

 

MIRANDA, Ana Ruth. A aquisição do ‘r’: uma contribuição à discussão sobre seu status fonológico. Porto Alegre, 1996. Dissertação (Mestrado em Letras) – PUCRS, 1996.

 

NESPOR, Marina; VOGEL, Irene. La prosodia. Madrid: Visor Distribuciones, S.A., 1994 [1986].

 

PIAGET, Jean. A epistemologia genética. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 1972.

 

                    . A formação do símbolo na criança. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan S.A., 1978.

 

RANGEL, Gilsenira. Os diferentes caminhos percorridos na aquisição da fonologia do português. Letras de hoje. Porto Alegre, v.33, n.2, 133-140, junho, 1998.

                            

SELKIRK, E. Phonology and syntax: the relation between sound and structure. Cambridge, Massachussetts: MIT Press, 1984.

 

 

 

 

 

 

 

 



[1] Uma mora é equivalente ao elemento que constitui a rima. Considerando, por exemplo, a representação da sílaba CVC apresentada anteriormente, temos duas moras, o núcleo e a coda silábica. 

[2] Se tomarmos como exemplo uma palavra composta do português tal como ‘guarda-roupa’, por exemplo, temos duas palavras fonológicas, uma vez que temos dois acentos primários, e uma só palavra morfológica.

[3] Esta pesquisa recebeu financiamento da FAPERGS (Processo  01/1345.4)

[4] Essa variável foi definida por Cunha (2004) na sua dissertação de mestrado “A hipo e a hipersegmentação nos dados de aquisição da escrita: um estudo sobre a influência da prosódia”.

[5] A informação entre parênteses é relativa à quantidade de vezes que tal grafia foi encontrada na amostra estudada.

[6] O troqueu silábico é um pé composto por duas sílabas, com proeminência à esquerda. A contagem das sílabas não considera sua estrutura interna. Abaixo está a representação deste pé:

(*

· )

s

  s