Espanhol Língua de Hermanos:
Aspectos Afetivos e Ideológicos
CAVALHEIRO, Ana
Resumo
O trabalho identifica as representações da língua espanhola que vigoram no contexto universitário, enquanto registros imaginários dos processos identitários de professores com o idioma. Por meio de relatos orais acerca de seus envolvimentos com o espanhol – memoriais –, professores atribuem significados e materializam sentidos sobre a língua que ensinam. Verifica-se que o professor de espanhol constrói sua identidade enquanto tal, não só moldado ou influenciado pelas circunstancias sócio-históricas, como também por aspectos de seu inconsciente e de sua afetividade. Professores falantes nativos de espanhol exaltam o laço afetivo com a língua materna, enquanto os falantes de português, não menos que estes, explicitam o amor à língua materna na substituição por uma língua de genealogia comum – o espanhol. Com o advento do Mercosul, a língua espanhola ganha um novo status no Cone sul e promove novas representações para o idioma, silenciando alguns sentidos. Os sentidos que se mantém emergem na seqüencialidade da fala em forma de pré-construídos; são saberes cristalizados que formam parte da memória histórica sobre a língua espanhola, determinantes sobre as representações dos professores enquanto sujeitos sócio-históricos. No entanto, em determinados momentos, o sujeito apresenta-se como ser desejante e rompe o ritual do assujeitamento ideológico contrapondo-se ao que se institucionalizou como realidade.
Palavras-chave: Discurso; Imaginário; Espanhol
INTRODUÇÃO
Problematizo aqui o processo de ensino e aprendizagem
de uma língua estrangeira – a Língua Espanhola – pelo prisma da identidade. A
relação com uma língua estrangeira inevitavelmente ultrapassa o puramente
cognitivo, constituindo-se em “uma das experiências mais visivelmente
mobilizadoras das questões identitárias do sujeito” (SERRANI-INFANTE, 1998, p.
256). O contato com o novo idioma produz-nos estranhamentos: a nossa língua que
até então parece natural como nossa própria voz, tão familiar como nossa
própria casa, perde terreno para o estrangeiro que habita em nós, o estrangeiro
que encontramos em nossas próprias palavras – o outro em nós e nós no outro. A
identidade aparentemente tão unificada pela pátria mãe, pela língua da
infância, apresenta-se invadida, divida, repartida entre o eu sujeito de língua
materna e o eu falante já estrangeiro. Ao colocar-se como outro, emerge de nós
e em nós a diferença – o ser outro, o ver com o olho do outro, a outra forma de
dizer o mundo e a si no mundo. Paralelamente, pelo fato da linguagem ser base
da estruturação psíquica do sujeito, ao entrar na língua estrangeira (LE),
evidencia-se o laço afetivo que se tem com a língua materna (LM) e o desejo de
completude que buscamos na língua do outro acaba por colocar-nos “entre o
desejo de um outro lugar e o risco do exílio”[1].
Refiro-me aqui, ao sentimento de contradição e ambigüidade que muitas vezes
experimentamos de, a uma só vez, querer “estar” na língua estrangeira e temer
perder a âncora com a língua materna e, ao “soltar amarras”, sentir-se como
exilado. Christine Revuz (1998), coloca que o êxito na aprendizagem de um
língua estrangeira dependerá, em grande parte, do laço afetivo que o aprendiz
se proponha a estabelecer com esta – deixará se levar pelo desejo como caminho
de liberdade ou não se entregará à ameaça de um “lugar” desconhecido. Como
professores ou estudantes de espanhol, dúvidas são naturais e extremamente
positivas na medida em que
despertem o interesse pela pesquisa que venha a colaborar com os estudos sobre
o ensino e a aprendizagem de línguas. As dúvidas que geraram a presente
reflexão inserem-se numa perspectiva que tenta desvendar e discutir os
processos identitários que envolvem, no caso, os professores de espanhol com a
língua. Através de gravação em áudio, professores universitários relatam, em
forma de memoriais, sobre seu envolvimento e suas experiências com o idioma,
sua constituição como professores e a importância atribuída ao ensino do
espanhol.
Entendo que na aula de espanhol como
língua estrangeira o professor não se restringe
a facilitar a aprendizagem do idioma ou a apresentar uma nova cultura. O
professor formador de professores, além de participar de forma significativa na
formação profissional de seus alunos, influencia diretamente no desenvolvimento
de suas identidades e nas representações que estes fazem da língua que estão
aprendendo. Além de re-nomear o mundo e representá-lo sob um novo prisma, com
outros signos, através de outra sintaxe, com elementos fonético-fonológicos
distintos e semanticamente sob uma perspectiva diferente, o ato de construir
significados constitui exatamente o que se tem que aprender a fazer nesse
contexto. A sala de aula de língua estrangeira constitui-se, portanto, num espaço
de aprendizagem de atribuição de significados e de construção pessoal, no qual
o aluno, enquanto sujeito discursivo, também constrói sua identidade social.
Com vistas a oportunizar um melhor entendimento do status do espanhol em nosso meio, verifico as representações da língua espanhola que estão na “ordem do dia”, ou seja, que sentidos são atribuídos ao espanhol como LE, hoje, manifesto no discurso dos professores. Para isso, partindo da materialidade lingüística, busco resgatar da memória do professor de espanhol, os saberes aos quais se filia, em suas diferentes ordens (política, social, cultural, etc.), para compreender como é constituído social e historicamente enquanto sujeito-professor de LE. Relacionando as representações de professores que têm o espanhol como LM com as representações de professores que têm o português como LM, encontrei identificações de ordens ideológica e afetiva.
O aporte teórico/metodológico que sustenta o trabalho constitui-se de duas bases fundamentais que se aproximam pela concepção em comum de que o sujeito é sempre determinado pelo contexto sócio-histórico e por aspectos de seu inconsciente: a Análise de Discurso (AD), tradicionalmente considerada de linha francesa, e a Teoria da Enunciação, na perspectiva de Jacqueline Authier-Revuz. Prioritariamente, valorizo a AD pela possibilidade e o suporte que a teoria oferece para que se veja a linguagem para além de si, ou seja, ela considera o exterior (o inconsciente e o histórico) que lhe é constituinte, e que apresenta “pistas” para uma maior aproximação do sujeito e do sentido. Além disso, utilizo subsídios da Psicanálise (freud-lacaniana), da Filosofia (Castoriadis), dos estudos culturais sobre a pós-modernidade (Tomás T. da Silva) e da Lingüística Crítica (Rajagopalan).
O SUJEITO E A LINGUAGEM
Já sujeito mesmo antes de nascer, o indivíduo é falado pela fala dos que o esperam. Conforme Revuz, além do fato de que a audição é o sentido mais desenvolvido do feto e que, a partir do nascimento, a criança tem a capacidade de reconhecer as vozes, as músicas e os fonemas da língua na qual está inserida,
Cada um que se ocupa da criança
fala dela, coloca em palavras o que percebe dela, de seu “jeito de ser”, de
suas semelhanças, de suas necessidades. E essas falas são em todo momento
interpretações daquilo que é ou sente a criança, predicação sobre o que ela é,
o que se espera dela, e nomeação das sensações, dos afetos, dos objetos do
mundo (1998, p. 218-219).
Obviamente, toda essa fala que lhe é atribuída antes
de poder falar, não é, em hipótese alguma, neutra. Revuz afirma que além de
designar um conceito (no sentido saussureano do termo) as palavras
inevitavelmente comportam o valor que o ambiente atribui a esse conceito. E
salienta: “Esse sistema de valores impregna completamente o sistema
lingüístico” (1998, p. 219). Desta forma, todo sujeito é sempre, já, desde
antes do nascimento, um sujeito de linguagem, a qual o antecede, pré-existe a
ele e o constituirá em sujeito.
A criança, a princípio, tem-se como uma continuação
da própria mãe e, em vista dessa natural impossibilidade de perceber-se como
indivíduo, vê-se como algo desestruturado. Considerando a si como objeto único
de desejo da mãe – o falo – , pelo recalque originário[2] a criança substitui o objeto perdido em uma troca de
significantes na qual o pai tem o papel de substituto do significante recalcado
que corresponde ao significado do desejo da mãe para o sujeito. Dor (1989)
assinala que, segundo Lacan, é no advento da linguagem como acesso ao simbólico
que se configura o controle simbólico do objeto perdido, em uma relação
metafórica de substituição de significantes. Essa relação metafórica de
substituição de significantes, explica-se pelo fato de que a criança
necessariamente deve abandonar “ser” o falo da mãe para deslocar-se para “ter”
um substituto simbólico para representar a coisa perdida. Segundo Lacan, é
necessário “que a criança seja conduzida a colocar-se como ‘sujeito’, e não
mais apenas como ‘objeto’ de desejo do outro”. E acrescenta, “o advento desse
‘sujeito’ atualiza-se numa operação inaugural de linguagem, na qual a criança
se esforça por designar simbolicamente sua renúncia ao objeto perdido” (LACAN
apud DOR, 1989, p. 90).
Por volta de seis meses de idade, até dois anos e meio aproximadamente, a criança passará, irremediavelmente, pelo Estádio do Espelho, uma experiência inerente à configuração da identidade do sujeito enquanto tal. Nessa fase, a criança começa a perceber a si própria e tomar consciência de seu próprio corpo quando vê, no olhar da mãe, sua imagem refletida. Essa relação é, conforme Dor, “exterior e simetricamente invertida” (1989, p. 80), na medida em que, a partir da virtualidade de uma imagem ótica, vê a si refletida no espelho do olhar do outro. De fato, vê-se sendo vista pelo olhar do outro.
O mundo imaginariamente
dividido do qual fazemos parte é, em uma mesma esfera, vivido pelos homens de
maneira imaginária, na medida em que seus atos não são frutos de decisões
estritamente racionais. Toda a sociedade, seja em sua divisão grupal,
comunitária, cidade ou nação, conta com suas crenças, seus mitos, seus rituais,
suas fantasias, os quais influenciam e moldam posturas e atitudes, construindo
assim as identidades sociais. O individual e o coletivo interpenetram-se.
Age-se de acordo com padrões muitas vezes impostos como se fizessem parte da
natureza. Nessa perspectiva, pode-se considerar o
imaginário como uma rede de sentidos que circulam pela sociedade como uma
verdade mais ou menos imposta. Entretanto, em meio às adesões que favorecem há
resistências que podem inviabilizar imposições. Dentro de uma visão filosófica,
Castoriadis, em parte opondo-se ao pensamento lacaniano, apresenta a tese que
defende o imaginário não como a imagem especular de alguma coisa, e sim
como “criação incessante e essencialmente indeterminada (social-histórica e psíquica) de
figuras/formas/imagens a partir das quais somente é possível falar-se de
‘alguma coisa’. Aquilo que denominamos ‘realidade’ e ‘racionalidade’ são seus
produtos” (1982, p. 13). Para o autor, o imaginário é sempre duplamente formado
pelo sócio-histórico e pelo psíquico, apresentando-se sempre na subjacência do
real e do simbólico. Assim, as representações da realidade construir-se-iam
tendo por base o imaginário. Além disso, “as profundas e obscuras relações
entre o imaginário e o simbólico” se explicam pelo fato de que se “deve
utilizar o simbólico, não somente para ‘exprimir-se’, o que é óbvio, mas para
‘existir’, para passar do virtual a qualquer coisa a mais”. E prossegue: “o
delírio mais elaborado bem como a fantasia mais secreta e mais vaga são feitos
de ‘imagens’, mas estas ‘imagens’ lá estão como representando outra coisa;
possuem, então, uma função simbólica” (CASTORIADIS, p. 154). Conclui que
inversamente também o simbolismo pressupõe a capacidade imaginária de ver em
uma coisa o que ela não é, vê-la diferentemente, portanto.
Quanto à especificidade do conceito de imaginário na
perspectiva da Análise de Discurso, Orlandi, partindo do princípio
althusseriano de que a relação do sujeito com o mundo é constituída pela
ideologia, considera que “a ideologia é vista como o imaginário que medeia a
relação do sujeito com suas condições de existência” (1994, p.56). Tal qual a
ideologia (e o inconsciente) afeta a constituição dos sujeitos e dos sentidos,
o imaginário é constitutivo e condição básica da relação entre mundo e
linguagem. Sendo ambos coisas de ordens diferentes, incompatíveis em suas
próprias naturezas, somente se aproximam pela ideologia e pelo efeito do
imaginário. O imaginário cria o contexto ilusório para que aparentemente exista
uma relação termo-a-termo entre a linguagem e o mundo. Pela AD, o sentido das
palavras não é transparente, porém o imaginário produz o efeito de que se
poderia atravessar as palavras e encontrar seu “conteúdo”.
As representações aqui concebidas relacionam-se aos sentidos que são construídos no interdiscurso, o qual Pêcheux (1995) propõe como “todo complexo com dominante” das formações discursivas (FD), intrincadas nas formações ideológicas (FI). É o espaço de todos os dizeres já ditos, em um outro tempo, em um outro lugar. O interdiscurso vem à tona no discurso e faz emergir na cadeia da fala – intradiscurso – as representações imaginárias que os indivíduos constroem da língua que estão ensinando ou aprendendo. Pêcheux considera as representações como constituintes das formações ideológicas. “Não são nem ‘individuais’ nem ‘universais’, mas se relacionam mais ou menos diretamente a posições de classes[3] em conflito umas com as outras” (1997a, p. 166). Portanto, as atitudes ou as representações que os professores têm com relação à língua que ensinam, obviamente se sustentam em formações ideológicas.
Defino o conceito de representação aproximando a concepção de representação da AD à concepção psicanalítica segundo a qual as representações compreendem “registros imaginários dos processos identitários dos sujeitos com as coisas do mundo” (GRIGOLETO, 2001), e resumo assim: as representações são registros imaginários dos processos de identificação do professor de espanhol com o idioma, determinados por aspectos ideológicos e inconscientes.
Antes mesmo de nascer, uma ideologia já nos envolve: temos um lugar reservado e pré-determinado ideologicamente, temos um nome previamente conferido e “somos falados” por palavras que comportam determinados valores. A ideologia, na perspectiva de Althusser (1996), afasta-se da definição original de uma Teoria das idéias. Cinqüenta anos após Marx ter sustentado que a ideologia é um sistema de idéias e representações que domina a mente de um homem ou de um grupo social, Althusser a situa numa esfera maior: é estrutura essencial constitutiva do sujeito. Segundo o autor, anteriormente às ideologias particulares há uma Ideologia (maior) vista como uma superestrutura de caráter semelhante à estrutura dos sonhos. Para ele, a ideologia não tem história, imutável e onipresente, é eterna tal qual o inconsciente é eterno dentro da perspectiva freudiana. Althusser propôs uma teoria da ideologia “em geral”, assim como Freud expôs uma teoria do inconsciente “em geral”. Ainda que se mudem as ideologias particulares e os sentidos das palavras que elas conduzem, ainda que se mudem os conteúdos latentes ou manifestos dos sonhos, ambos manterão suas estruturas fundamentais.
Dessa forma, a interpelação ideológica – bem como a
do inconsciente – é determinante sobre os sujeitos, definindo-se como o
processo através do qual a ideologia “‘recruta’ sujeitos entre os indivíduos
(ela os recruta a todos) ou que ‘transforma’ os indivíduos em sujeitos
(transforma-os a todos)” (ALTHUSSER, 1996, p. 133). Subjazem à central duas
teses conjuntas: não existe prática, a não ser através de uma ideologia, e
dentro dela; não existe ideologia, exceto pelo sujeito e para sujeitos.
Althusser prescreveu um sujeito de ideologia mas não o relacionou ao sentido.
Pêcheux (1995) desloca a tese da interpelação introduzindo a noção de discurso,
com vistas ao estabelecimento da relação necessária entre ambos – sujeito e
sentido – para entender e explicar a não-transparência do sentido. Para
Pêcheux, os sentidos das palavras dependem sempre das formações discursivas nas
quais se encontram, intrincadas por sua vez às formações ideológicas. Logo, o
caráter material do sentido depende do sentido das formações ideológicas.
A identidade normal é
“natural”, desejável, única. A força da identidade normal é tal que ela nem
sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a
identidade (SILVA, 2000, p. 83).
Em meio a contínuas transformações do mundo social,
nossa experiência emocional ainda nos faz sentir unos, embora sejamos
indivíduos fragmentados, presos na contradição de seguir sendo o que somos,
mas, ao mesmo tempo e naturalmente, deixando de sê-lo. Dessa forma,
estabelece-se uma nítida relação entre a identidade do indivíduo moderno e a
representação que faz de si e do mundo em que está inserido. Um mundo
geográfica, política, cultural, e por que não dizer imaginariamente dividido,
faz-nos representar a nós mesmos por uma identidade maior que é nossa
nacionalidade unida à língua materna.
Quem somos? Somos brasileiros. Somos, em uma das
primeiras instâncias e acima de tudo, nossa nacionalidade que se entrega pela
própria língua: “Língua tua manifestum te facit” (a tua língua te
denuncia). Obviamente essa não é uma questão biológica, e sim de uma identidade
maior representada metaforicamente e sustentada por questões afetivas. Ainda
que não estejam em nossos genes, o laço afetivo com a língua e a nação pode ser
forte a ponto de nos fazer emocionar, por exemplo, diante de situações em que
“irmãos de pátria” são significativamente vitoriosos por algum motivo, como os
atletas de nosso país. Mesmo que a divisão territorial seja politicamente imposta,
os indivíduos a ela pertencentes guardam características culturais em comum e
estabelecem vínculos desenvolvendo sentimentos de igualdade e lealdade.
Concebidas por considerável período de tempo como objetos naturais, as
nações já são vistas como “comunidades imaginadas” (ANDERSON, 1983),
construídas evidentemente pela via do imaginário. Afonso dos Santos apresenta
duas dimensões a se considerar em relação à nação: ou como construção
imaginária ou como base de uma episteme para pensar a própria história.
Partindo da idéia de nação como uma construção histórica carregada de
significações, o autor salienta: “não há dúvida de que a nação preenche uma
função identificatória coletiva que em outras épocas se localizava nos deuses
da cidade ou na extensão espacial e temporal da pessoa do rei” (2002, p. 14).
Ao
dissertar sobre a identidade do povo brasileiro, Ferreira diz que os contornos
de nossa identidade são definidos pela fala e pelo olhar de uma ética
estrangeira, diremos então, que são definidos pela diferença. Segundo a autora,
“assimilamos os sentidos assim produzidos pelas ‘muitas vozes que nos definem’
e os incorporamos ao funcionamento imaginário da sociedade” (1993, p. 69). Para
definir como se constroem e se sustentam os clichês sobre a brasilidade, Ferreira
propõe que “a relação que o sujeito estabelece com a língua se dá dentro de um
momento histórico e este é constitutivo e marca, por sua vez, de forma
indelével, a história desse mesmo sujeito” (p. 76). Esse contexto muitas vezes
pode estar explícito, outras vezes não, como é o caso do “jeitinho brasileiro”,
que, ainda cristalizado, encontra-se perdido na memória das definições do que é
ser brasileiro nas suas formas de clichês. Conclui-se que materialidade
lingüística e materialidade histórica andam juntas, distanciando-se de uma
perspectiva puramente empírica da língua.
Relaciono
as reflexões da autora às representações do espanhol, as quais também se constroem sob determinados contextos
históricos que cristalizaram saberes, que , por sua vez, retornam ao discurso
sob a forma de pré-construídos. Também no espanhol, algumas representações
podem estar relacionadas a circunstâncias históricas específicas, outras não. O
surgimento do Mercosul, como exemplo, produz saberes sobre o espanhol bem
delimitados historicamente e que provavelmente já estejam na subjacência de
determinadas representações sobre a língua.
Se o espanhol, mediante ao surgimento do
Mercosul, passou a ter novas representações, é porque alguns sentidos foram
silenciados e outros incorporados.
Consideradas por Tomaz Tadeu da Silva (2000) como social e culturalmente produzidas, identidade e diferença são atos simbólicos da criação lingüística e portanto instáveis e indeterminadas. A diferença, pois, é que define a nacionalidade brasileira: somos brasileiros por sermos diferente de todas as outras nacionalidades. Ao mesmo tempo em que uma nacionalidade, uma característica, uma palavra ou uma marca gráfica determina-se pela diferença, essa diferença leva a marca de uma ausência, de uma presença sempre adiada. O dicionário, por exemplo, não informa os conceitos senão pelo próprio adiamento, ou seja, uma palavra sempre remete a outras.
Exemplifico aqui tal idéia, que em verdade trata-se
do famoso conceito de différance de Derrida (1973): país é pátria, é terra, é
nação, é região que é...; ficar é estacionar, restar, sobrar, adquirir, e já se
estabelece a diferença no próprio adiamento do conceito porque, de fato, a
presença é sempre adiada, o signo não captura o objeto. Logo, os signos, os
conceitos estabelecem-se pela diferença e pelo adiamento de uma presença
inapreensível pela letra.
Ao tratar sobre o sujeito na língua estrangeira,
Revuz diz que o estar-já-aí da primeira língua “é tão onipresente na vida do
sujeito, que tem a sensação de jamais tê-la aprendido, e o encontro com uma
outra língua aparece efetivamente como uma experiência totalmente nova” (1998,
p. 215). Isso me faz pensar que normalmente não tomamos consciência do vínculo
afetivo que temos com a própria língua, a não ser quando nos deparamos com
outra, de corpo e alma. De corpo porque é necessário mudar o corpo, articular
de outra forma que aquela a que estamos acostumados e que parece, talvez
inconscientemente, ser a única; e ao mesmo tempo mexer com nossos sentidos, com
nosso saber. É necessário re-pensar e re-nomear as coisas do mundo entendendo a
diferença dos sentidos de palavras e expressões que não existem em nossa
língua. Portanto, é ver o mundo sobre uma perspectiva diferente. É deslocar-se
daquela identidade aparentemente una, normal, a identidade que sugeriu Tadeu
Tomaz da Silva (2000). Tão bem Christine Revuz define o ingresso em uma LE, ao
dizer que “o sujeito deve pôr a serviço da expressão de seu eu um vaivém que
requer muita flexibilidade psíquica entre um trabalho de corpo sobre os ritmos,
os sons, as curvas entoacionais e um trabalho de análise e de memorização das
estruturas lingüísticas” (1998, p. 217). Enfim, pôr-se na língua estrangeira é
transcender, é mexer com uma identidade aparentemente estável, é despertar o
confronto com a diferença que já faz parte de nós mesmos. Julia Kristeva diz
que “estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa
identidade [...] o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha
diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos
vínculos e às comunidades” (1994, p. 9).
A Articulação entre a Análise de Discurso e a Enunciação
Dentre os conceitos da AD que utilizamos em nossa pesquisa, evidenciam-se o de posição-sujeito, interdiscurso e pré-construído Pêcheux (1995). O sujeito desconhece que é determinado em seu discurso pelo inconsciente e pela ideologia. Tal determinação faz com que todo sujeito tome posição: o sujeito identifica-se, contra-identifica-se ou ainda desidentifica-se com as formações discursivas dominantes. O interdiscurso é o espaço de todos os dizeres já ditos – “‘algo fala’ sempre ‘antes, em outro lugar e independentemente’”. O pré-construído integra o interdiscurso, é o “sempre-já-aí” da interpelação ideológica, ou seja, “aquilo que todo mundo sabe (...) sob a forma das evidencias do contexto situacional”.Tomamos a questão do Mercosul como um exemplo de reformulação da memória interdiscursiva que integra a história de uma língua, de uma nação, ou melhor, de todas as línguas e nações que estejam envolvidas e que sejam atingidas pelo Mercosul como um acontecimento, o qual silenciou sentidos e produziu novos saberes sobre o espanhol, moldando novas representações do idioma.
Mediante a tal acontecimento, entendemos que o
espanhol, nos Cursos de Letras, passou a ser considerado mais como um
instrumento pragmático de comunicação que se manifesta na supervalorização da
língua como suporte para relacionar-se em situações reais cotidianas. Supondo
que o aluno vá viajar a um país de fala hispânica, desenvolve-se uma
metodologia baseada em atividades comunicativas.
Outro saber veiculado é o que coloca o espanhol como língua que concorre com o inglês em termos de ser “a mais falada”, de ser “franca”. Resignificamos tal conceito na perspectiva da AD pelo fato de entender a qualidade de franca não só como uma propriedade capaz de estabelecer mais vínculos, ao contrário, se uma língua leva o rótulo de língua franca não quer dizer que esteja a serviço da globalização, antes, pode estar a serviço da ampliação de seus próprios domínios e interesses.É sabido que na última fase da AD (AD3), Pêcheux influenciou-se, entre outros fatores, por seu encontro com a lingüista do campo da Enunciação, Jacqueline Authier-Revuz, quando definitivamente abriu o espaço necessário para o início de seus estudos sobre a heterogeneidade do discurso e do sujeito. A princípio, um ponto em comum a ser destacado é o fato de que, sem abrir mão da estrutura, os lingüistas buscam compreender o sujeito justamente na relação da estrutura com o acontecimento – relação esta que está explicitada na última obra de Pêcheux (1997b) quando, a partir do enunciado “On a gagné” [4] (“ganhamos”) considerado em sua materialidade discursiva, o autor entende como profundamente opaca sua estrutura léxico-sintática. Depreende-se que, em um único enunciado – “ganhamos” –, figura uma heterogeneidade de enunciados outros, subjacentes, em relações parafrásticas, alusivas, implicações, etc., que estão implícitos na própria estrutura, ou seja, a própria estrutura permite os efeitos e os deslocamentos de sentido que, por sua vez, remetem à exterioridade que está constituindo o sentido da estrutura. Quer dizer que por si só, a estrutura não estabeleceria nenhum efeito de sentido.
Tradicionalmente, as Teorias da Enunciação referem-se
aos estudos dos fatores e dos atos que provocam a produção de um enunciado. De
modo geral, as teorias da enunciação consideram: “o interlocutor (para quem o
discurso é produzido e como sua presença materializa-se na enunciação); a
situação em que a enunciação é produzida (marcas espaço-temporais da produção
do discurso); o referente do discurso (sobre o quê o discurso trata)”. A
proposta de Jacqueline Authier-Revuz (1998) para trabalhar com a enunciação,
visando à compreensão do sujeito dentro do domínio lingüístico, reúne três
campos de conhecimento: a Lingüística, a Psicanálise e a Análise de Discurso.
Coloca-se em oposição às abordagens que negam ou diluem o objeto língua como
“ordem própria” em proveito de um objeto outro que concerne a outros campos.
Refere-se aqui, por exemplo, às considerações da língua como sendo de ordem
totalmente social ou como objeto total das abordagens comunicacionais.
Considerando o discurso, o sujeito e o simbólico, Authier-Revuz prima pela ampliação dos estudos da enunciação na busca pela compreensão do sentido. Tendo por referência a teoria do interdiscurso de Pêcheux, a qual considera que o sentido escapa à intencionalidade do sujeito, o dialogismo bakhtiniano, segundo o qual toda palavra leva marcas do discurso outro e apoiando-se numa abordagem de sujeito dividido e de sua relação com a linguagem permitida pela releitura lacaniana de Freud, Authier (1998) opõe-se às formas gerais das abordagens pragmático-comunicacionais, as quais consideram o sujeito fonte intencional de seu dizer. Para ela, a Psicanálise vem colaborar para entender os mecanismos e descrever o sujeito de linguagem. A verdade é que Authier compactua com a AD no que tange à destituição do sujeito do domínio de seu dizer e, considerando o sujeito como “sujeito-efeito”, acredita “que o dizer não poderia ser transparente ao enunciador, ao qual ele escapa, irrepresentável, em sua dupla determinação pelo inconsciente e pelo interdiscurso” (1998, p. 17).
O espanhol é a língua da identidade:
SDR1: [...] então eu acho hoje
importante Montevideo / eee Montevideo! / perdón / espanhol aqui
no Brasil[...]
O lapso que verificamos, recebido com surpresa pelo próprio enunciador,
enquadramos no inventário das não-coincidências entre as palavras e as coisas,
especificamente de um dizer “preenchido” por seu equívoco. Segundo
Authier-Revuz (1998), há formas que se caracterizam pelo não-previsto que
desponta na cadeia enunciativa, opondo-se às formas caracterizadas pelo domínio
intencional. Ausentando-se de qualquer responsabilidade ou intenção, pelo fato
da surpresa do imprevisto que brota em seu dizer, a reformulação do professor
se inscreve no não-controle. Acreditamos poder ouvir, “em meio às palavras de
sua intenção, as palavras de seu desejo”, ou seja, disse alguma coisa a mais
que não era demandada. Entendemos que o lapso tenha, portanto, um fundamento
identificável o qual se nos apresenta como prova do vínculo estruturante e
sólido que o professor tem com sua língua unida a sua nacionalidade, enquanto
identidade maior e representante da língua espanhola. Em vista disso, pelo
lapso, considera importante “aprender Montevideo”. Diremos que é o jogo do
significante, pois, o significado, ainda que não seja o mesmo, instaura-se na
“lógica” de um processo metonímico entre Montevideo e língua
espanhola.
O
espanhol é a língua estrangeira do brasileiro
SDR 2: Eu fico com pena que o brasileiro não se dê conta que a língua
dele é muito rica / mas muito pouco falada no mundo / e ele tem uma grande
chance aqui no sul de viajar oito horas e estar num país que se fala espanhol.
Alguns atributos estão representando a língua portuguesa: A língua
“dele”; a língua “muito rica”; a língua “muito pouco falada no mundo”. Ao
enunciar “a língua dele” (do brasileiro), mais uma vez o enunciador se
afasta da posição-sujeito de brasileiro, falante nativo de português, e toma a
posição-sujeito de argentino falante de espanhol como LM.O atributo de “língua
rica” parece sustentar-se no pré-construído (GIRALDELO, 2002) que
molda, no imaginário dos brasileiros, uma das representações que constroem da
língua portuguesa. No entanto, apesar da “riqueza”, é “muito pouco falada no
mundo”, ou seja, não é uma língua com características hegemônicas ou que se
possa designar por franca. O “muito rica” e o “muito pouco falada”,
ambos intensificados pelo advérbio muito, cada um ao seu tempo,
enfatizam e opõem efeitos de sentido “positivo” – ser muito rica – e
“negativo” – ser muito pouco falada. Pela representação positiva o
enunciador tenta compensar o que se perde totalmente na questão negativa, a
qual poderá ser compensada pelo acesso à língua espanhola. O que medeia essa
tentativa de equilíbrio é, novamente, o conector mas que faz a balança
tender para ser muito pouco falada no mundo, concepção essa que
encontraria no espanhol a solução para um “equilíbrio com o mundo”, conforme
está enunciado em: ele tem uma grande chance aqui no sul de viajar oito
horas e estar num país que se fala espanhol.
SDR
3: Então eu acho que o Brasil se se desse conta que ele precisa de uma
língua estrangeira pra se comunicar com o mundo e que o espanhol pra ele é
muito mais prático e ele vai ser bem servido [...] com essa língua ele
seria / ele se encaixaria mais rápido no mercado mundial.
Utilizando-se
de um processo metonímico, o enunciador substitui a parte – os brasileiros –
pelo todo – o Brasil, e enuncia que o espanhol não é a mais franca entre as
línguas hegemônicas mas é seu desejo que o espanhol seja a língua franca entre
o Brasil e o mundo, a língua estrangeira ideal para os brasileiros. Isto está
marcado pelo uso dos verbos no indicativo expressando a certeza da necessidade
para o Brasil: ele precisa de uma língua estrangeira para se
comunicar com o mundo e a realidade que o espanhol representa em seu
imaginário: o espanhol para ele é muito mais prático e ele vai ser
bem servido. No entanto, o enunciado atualiza-se pela incerteza do
elemento condicional: se se desse conta e resignifica- se também
pela incerteza do futuro do pretérito: com essa língua ele seria /
ele se encaixaria mais rápido no mercado mundial.
Neste
momento, é notável que para o professor enunciador o espanhol representa a
língua estrangeira para as relações mundiais de fácil acesso para o Brasil, não
só por questões geográficas como também pela questão lingüística baseada na
genealogia comum entre ambas. Baseando-se em um pré-construído, ou seja,
um dizer que remete simultaneamente “àquilo que todo mundo sabe”, [...] “e
àquilo que todo mundo, em uma situação dada, pode ser e entender, sob a forma
das evidências do ‘contexto situacional’” (Pêcheux, 1995, p.171) de que o
espanhol é uma língua fácil para o brasileiro aprender, o enunciador diz que o
espanhol pra ele é muito mais prático e ele vai ser bem servido.
Com relação ao saber pré-construído, cabe lembrar que, segundo tese de Celada (2002), este já se caracteriza pela contradição. Ocorre que, durante muitos anos, os falantes de português não pensaram a necessidade de estudar espanhol. Porém, com a expansão e a valorização do espanhol e entre outros fatores, a criação do Mercosul, a questão é revista e os sentidos sobre “a facilidade do espanhol” entram em contradição. No meio acadêmico já se ouvem discursividades que apontam para o espanhol como uma língua que parecia “fácil” e, no entanto, é “difícil”. O processo de ensino-aprendizagem já lida com esta contradição, “já porque a reelabora, já porque a ressignifica, já porque a desloca” (CELADA, 2002, p. 65). Vê-se a atribuição de significados, bem como os sentidos, serem historicamente reconstruídos. No entanto, por mais que surjam argumentos contrários, como fatores afetivos, motivações, interesses, etc., é inegável que, de fato, o espanhol é uma língua mais fácil para o falante de português pelo menos no que tange à compreensão.
SDR 4: [...] eu vi a
necessidade [...] o entusiasmo das pessoas de querer aprender o espanhol
como para poder relacionar-se quando se va a Uruguai e tudo isso.
SDR 5: [...] então eu
acho hoje importante [...] espanhol aqui no Brasil / justamente por
questões de relações / para poder entender melhor os turistas quando vem aqui /
né / tener uma língua mais de aproximação.
Uruguai é o país natal do professor, para onde direciona mais especificamente a utilidade da aprendizagem do espanhol. Ao optar pela palavra “Uruguai”, o professor concilia e deixa implícita uma dupla significação: país fronteiriço que tem o espanhol como língua oficial e seu país natal. Então, o espanhol serve a quem vai (ao Uruguai) e a quem vem (do Uruguai), ou seja, aqui no Brasil e lá no Uruguai as relações estabeleceriam-se através do espanhol. Atribui, portanto, à língua espanhola a qualidade de estabelecer o contato entre brasileiros e falantes de espanhol geograficamente próximos. A expressão “mais de aproximação” corresponde a uma adjetivação que restringe e, ao restringir, designa qualificando, ou seja, o espanhol é a língua que aproxima. Logo, é a representação de uma língua franca que se evidencia. Cabe lembrar que a qualidade de franca, conforme resignifiquei dentro da perspectiva da Análise de Discurso, está longe de ser apenas um instrumento a serviço de facilitar a comunicação entre duas ou mais nações, caracterizando-se por aspectos hegemônicos, na medida em que não deixa de ser movida ou imposta por questões políticas/ideológicas.
Verifico, novamente, o efeito de um pré-construído que irrompe e se mostra na cadeia significante. Ocorre que, por questões de caráter lingüístico, segundo Celada (2002), o espanhol sempre foi considerado uma língua “familiar”, mais fácil para o falante de português entendê-la, que ao contrário, até mesmo no que tange ao interesse da crítica literária. De fato, falamos espanhol entre nós mesmos e esforçamo-nos para entendê-lo. Ao resignificar o conceito de língua franca proponho-me a questionar se, de fato, esta “pré-disposição” dos brasileiros para com o espanhol não estaria determinada primordialmente por questões de caráter político/ideológico. Se, na perspectiva da AD, o pré-construído constitui-se em um elemento do interdiscurso, intrincado no complexo das formações ideológicas, entendo que os sentidos do discurso do professor materializam-se pelo efeito de um “sempre-já-aí” ideologicamente determinado (PÊCHEUX, 1995, p. 164). Junto ao sujeito “autônomo”, “dono e controlador de seu dizer”, iludido pelo efeito dos esquecimentos, irrompe um sujeito “sempre-já-produzido”, como prova de que os sentidos constituem-se sempre ligados às formações ideológicas.
O
Discurso dos Professores Falantes Nativos de Português
O espanhol é a língua
substituta da língua materna
SDR 6: [...] então todas
essas coisas iam somando [...] todo meu gosto pela língua
portuguesa eu transferi para a língua espanhola / e todo meu desejo de
saber coisas na língua portuguesa eu transferi para a língua espanhola e toda
minha simpatia por textos escritos e discursos falados eu joguei tudo isso para
o espanhol / e todas as lembranças positivas que eu tinha de pessoas
falantes de espanhol eu joguei tudo isso / quero dizer / então eu
criei uma ... uma ... criei não! Eu juntei toda sustentação positiva pra
realmente perceber o quanto / pelo menos / o espanhol passou a
ser o concentrador desses aspectos positivos.
Evidencia-se uma relação de transferência e contraste entre LM e LE, na qual sua relação com a LM é marcada pelas expressões “meu gosto”; “meu desejo”; “minha simpatia”, e sua relação com a LE marcada pela expressão “lembranças positivas” enquanto parte do outro que já o integra. Notemos que aqui o enunciador põe a LM no extremo inicial do continuum em direção à LE e intensifica o valor atribuído à primeira pelo uso dos adjetivos todo (meu gosto); todo (meu desejo); toda (minha simpatia).
A busca pela palavra que represente a transferência da afetividade da LM para a LE explicita-se nas reformulações metaenunciativas: eu joguei tudo isso / quer dizer / então eu criei uma ... uma ... criei não! / eu juntei toda sustentação positiva pra realmente perceber o quanto / pelo menos / o espanhol passou a ser o concentrador desses aspectos positivos.
O uso metafórico de “eu joguei” para significar tal transferência leva o enunciador a negociar com seu dizer e reformular o dito, isto é, fez- se necessário desfazer a metáfora substituindo-a por outra palavra. O efeito de sentido que percebemos em “jogar” é de intensidade na ação final, ou seja, após reiterar “eu transferi [...], eu transferi [...], eu transferi [...]”, conclui o enunciado com a força de quem “joga” e não simplesmente “transfere”. Acredito que a palavra “jogar” tem um significado potencial mais vigoroso do que a palavra “transferir”, e esse é o valor que o enunciador atribui ao fato de transferir sua estruturação de sujeito de linguagem e de desejo com sua LM para uma língua que não é a sua.
Na reformulação, o
enunciador desliza entre as formas “joguei; criei; juntei”
para nomear o real que lhe escapa, o real inapreensível pela letra. Conforme
Authier-Revuz, essa busca inscreve-se como não-coincidência entre as palavras e
as coisas, em que a partir de um sistema baseado em distinções (finito),
inscreve-se o jogo inevitável da nomeação (infinita). Dentre as figuras que
marcam essa falta no dizer, a lingüista propõe a figura da adequação
pretendida, representando uma nomeação “entre duas palavras” (1998, p. 194). No
caso analisado, direi que se constitui numa nomeação entre palavras, o qual
reflete a não-fixidez e a falha do signo na captura do objeto. Nesse espaço de
não-coincidência, no qual é necessário proteger as palavras para assegurar sua
unidade é que o enunciador representa seu dizer. Da mesma forma, o sujeito é
dividido consigo mesmo, e nessa luta entre o “um” coincidente, sujeito e dizer,
contra o “não-um”, não-coincidência do dizer e do sujeito que se produz o
sentido. Quero destacar aqui a cumplicidade que envolve o sujeito enunciador
com sua LM. Todas as marcas que se mostram na linearidade da cadeia
significante apontam para esse sujeito constituído e estruturado pelo amor à
língua materna que, no entanto, vê-se substituída pela LE.
O espanhol é a língua imposta pelo Mercosul
SDR 7: [...] na
época que eu escolhi o curso de espanhol foi uma questão meramente de
mercado;
SDR 8: [...] garantiu o espanhol durante bastante
tempo / tem garantido o espanhol [...] meramente por questões de
mercado;
SDR 9: [...] a
importância do ensino do espanhol nas escolas ainda se deve a uma
questão em grande parte de mercado;
SDR 10: [...] hoje /
hoje nas escolas como é visto é meramente a questão do momento por
Mercosul.
Pelas SDR entendemos que o sujeito-professor justifica a expansão e o valor atribuído ao espanhol pelo advento do Mercosul, negando qualquer importância lingüística ao ensino da língua. O que se evidencia é a reiteração de um dizer sobre a importância do espanhol, social e historicamente instituída por questões políticas relativas ao Mercosul. A confirmação enfática do dizer relacionamos às glosas inventariadas por Authier-Revuz (1998) como evidencia de um dizer em acordo com uma intenção e adesão explícita a seu próprio dizer. O sujeito-professor insiste sobre a palavra importante na tentativa de capturar o objeto pela letra, como se dissesse: “X, eu digo mesmo X”, “a importância do espanhol é meramente por questões de mercado, sim!” Os marcadores temporais (na época; durante bastante tempo; ainda; hoje; hoje) evidenciam o processo de evolução e de configuração de uma nova representação para o espanhol. Percebemos aqui, o discurso do professor enunciador sujeito historicamente determinado à medida que sua prática se alia ao processo histórico do surgimento do Mercosul.
SDR 11: [...] Agora /
eu acredito que a importância do espanhol hoje / hoje nas escolas
como é visto é meramente a questão do momento por Mercosul / afinal de
contas dizer que o Brasil é o único país que fala português na América desde
1500 / é isso? / então não é a explicação para isso / mas hoje tem um
diferencial que é o mercado comum donde se impõe um intercambio.
Baseando-nos na noção de pré-construído enquanto o “sempre já aí” da interpelação ideológica, o que representa a universalidade (Pêcheux, 1995, p. 164), ou seja, o implícito que preexiste ao sujeito da enunciação, entendo que em: “afinal de contas dizer que o Brasil é o único país que fala português na América desde 1500” irrompe na cadeia discursiva como efeito de um pré-construído que já transita entre o apagado e o que se mantém, ou seja, resiste entre o mesmo e o diferente. Ao enunciar “afinal de contas dizer [...]” o enunciador atesta um dizer que “se diz”, e em um mesmo movimento, resgata e nega este pré-construído.
O enunciador não se filia à região do interdiscurso que vê, na expansão do espanhol, a razão de que o Brasil seja o único país que fala português na América, sentido esse que habita no interdiscurso e está em situação de conflito/contradição sobre a expansão do espanhol no Brasil. Logo, evidencia-se a contra-indentificação do sujeito a este saber. Estabeleço uma relação de paráfrase com as palavras de Mário de Andrade, que, já em 1926 afirmava: “no rincão de Sulamérica o Brasil é um estrangeiro enorme” (apud CELADA, 2002, p. 53), para justificar que esse saber, de fato, é um sentido instaurado como um pré-construído, porém que está sendo silenciado por força do Mercosul enquanto acontecimento social e historicamente instituído. Não quero dizer com isso que só o acontecimento do Mercosul favoreça ao apagamento desse sentido, mas constitui as condições de produção do discurso do professor. Relembro que, segundo Pêcheux, “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas” (1997, p.77), é o exterior que constitui o discurso, tanto em um âmbito mais restrito, como em nível social-histórico-ideológico. O Mercosul faz parte, portanto, da historicidade que molda os discursos sobre o espanhol, provocadora de mudanças ou reproduções de sentidos sobre a língua. no interdiscurso e está em situação de conflito/contradição sobre a expansão do espanhol no Brasil. Logo, evidencia-se a contra-indentificação do sujeito a este saber. Estabeleço uma relação de paráfrase com as palavras de Mário de Andrade, que, já em 1926 afirmava: “no rincão de Sulamérica o Brasil é um estrangeiro enorme” (apud CELADA, 2002, p. 53), para justificar que esse saber, de fato, é um sentido instaurado como um pré-construído, porém que está sendo silenciado por força do Mercosul enquanto acontecimento social e historicamente instituído. Não quero dizer com isso que só o acontecimento do Mercosul favoreça ao apagamento desse sentido, mas constitui as condições de produção do discurso do professor. Relembro que, segundo Pêcheux, “um discurso é sempre pronunciado a partir de condições de produção dadas” (1997, p.77), é o exterior que constitui o discurso, tanto em um âmbito mais restrito, como em nível social-histórico-ideológico. O Mercosul faz parte, portanto, da historicidade que molda os discursos sobre o espanhol, provocadora de mudanças ou reproduções de sentidos sobre a língua.
Considerações Finais
Identificadas e nomeadas as representações da língua espanhola, evidenciam-se significativas similaridades com também diferenças consideráveis:
Os professores enunciadores falantes nativos de espanhol valorizam e atribuem à língua espanhola, enquanto LE, a “qualidade de ser a língua materna”, isto é, a língua da identidade. De forma paralela, os professores que não têm o espanhol como língua materna, tecem representações para o espanhol como a língua substituta da LM, a qual promove o retorno à LM, transferindo todo desejo da LM para a LE. O espanhol como língua estrangeira do brasileiro é uma representação do professor falante nativo de espanhol também sustentada pela semelhança entre as duas línguas. Assim, a língua estrangeira ideal para o brasileiro, enquanto uma possível língua mundialmente franca, seria o espanhol.
Relaciono e encontro pontos em comum entre as representações dos professores falantes nativos de espanhol, de língua franca do Cone Sul com a representação de língua imposta pelo Mercosul, feita pelo professor brasileiro. O rótulo ou a qualidade de franca, de alguma forma, condiz com imposição política/ideológica e, portanto, encerra em si características hegemônicas. Quero dizer que a aproximação ou a qualidade de franca e a hegemonia que a promove, foram impostas, entre outras possíveis razões, principalmente, pelo advento do Mercosul.
Posso separar as representações dos professores de espanhol acerca do idioma, em duas instâncias: uma política ou ideológica e outra apolítica ou afetiva. Se a língua espanhola representa, acima de tudo, a língua materna para os falantes nativos de espanhol e, se para os falantes de português representa a língua substituta ou a língua “parecida” que promove o retorno à sua língua materna, então é coerente que se designe o espanhol por língua apolítica, ou seja, nesses termos encontrar-se-ia menos marcada pelo político e mais ligada à função afetiva e à estruturação psíquica do sujeito com sua LM. Por outro lado, as demais representações de língua franca do Cone Sul, de língua imposta pelo Mercosul e de língua hegemônica do Cone Sul, condizem com uma língua que problematiza questões políticas, ou seja, move e é movida por interesses políticos e ideológicos.
As representações que os professores têm do espanhol são múltiplas, relacionam-se entre si e por vezes se contradizem, apontando assim, para a constituição da formação discursiva sobre o espanhol enquanto um espaço de contradição, heterogêneo e sem fronteiras delimitadas. O que se evidencia é um sujeito que significa a língua que ensina na relação com a língua do outro, ou seja, um sujeito que para significar sua identidade, seja qual for, na LM ou na LE, o faz a partir da diferença vacilando entre as posições de sujeito de LM e de sujeito na LE, sendo sempre sujeito de linguagem que não tem uma única coincidência consigo mesmo. Após toda a trajetória percorrida, da aproximação de subsídios teóricos distintos, das reflexões, das análises, dos questionamentos e das descobertas, concluo que a relação do sujeito professor de espanhol com o idioma está diretamente relacionada às circunstâncias sócio/históricas – incluindo aí instâncias políticas e ideológicas – e à sua subjetividade e afetividade. O professor constrói sua identidade enquanto tal, moldado e influenciado pelo que lhe é posto de antemão e por aspectos de seu inconsciente. No entanto, mesmo com o que lhe é imposto, tem chance de subverter.
Referências
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[1] Christine Revuz. A língua estrangeira entre o desejo de um outro lugar e o risco de exílio. In: Signorini Inês. (org.). Lingua(gem) e Identidade. Campinas, SP: Mercado de Letras, 1998.
[2] Tal processo, fundamentalmente estruturante, consiste na metaforização que resulta da implantação natural da lei que impede o incesto. O significante fálico (do desejo da mãe) é substituído pelo Nome-do-Pai. Ver: Lacan, J. Las Formaciones del Inconsciente (1976). Título original: Les Formations de l’inconscient. Seminarios sobre textos freudianos de dezembro de 1957, março de 1958 e de abril-junho de 1958.
[3] Em relação à expressão posições de classe, esclarecemos que os primeiros estudos de Pêcheux direcionavam-se para questões de ordem política, mais especificamente à luta de classes como pano de fundo de toda a história. Pêcheux viu no discurso um instrumento político capaz de intervir em questões desta mesma ordem. Posteriormente, a AD passou a considerar que as formações ideológicas não somente se referem a posições de classe, mas também de outras ordens.
[4] Em 10 de maio de 1981 é eleito o candidato de esquerda à presidência da França – François Mitterand. A massa comemora na Praça da Bastilha “tomando emprestado” o grito dos torcedores de uma partida de futebol: “on a gagné”.