De “Patricinhas” a “Panteras”

 

Alessandra Saenger

 

 

Supondo que todos conheçam tanto o seriado “As Patricinhas de Beverly Hills” quanto o filme “As Panteras”, uma pergunta fica no ar: como unir características tão diferentes em uma personagem? Como uma menina consegue ser ao mesmo tempo “patricinha” e “pantera”? Apesar de que muitos possam afirmar que não vêem dificuldades em fazê-lo, não me parece uma tarefa muito fácil considerando-se as características de ambas: enquanto que no topo de sua lista de prioridades as patricinhas têm as compras, o shopping, as roupas combinando, os sapatos de salto, as festas, etc; as “panteras” preenchem seu tempo “salvando o mundo”, lutando com vilões em meio a pântanos e selvas ou atravessando rios e lamaçais em busca de justiça. No entanto, em um desenho animado exibido diariamente pela Rede Globo, três adolescentes provam que isso é possível. Intitulada “Três Espiãs Demais”, a animação consegue reunir as características de “patricinhas” e “panteras” não somente em uma, mas em três garotas.

A história tem início quando três jovens vão estudar em uma escola de Beverly Hills e decidem morar juntas no que elas consideram “a casa dos sonhos”. Em sua nova escola, as adolescentes descobrem, sem querer, o esconderijo secreto da WOOHP (Organização Mundial de Proteção Humana). Diante da descoberta, Jerry, o chefe da organização, não vê alternativa senão convidá-las a trabalhar junto a ele e, neste ponto, merece destaque o fato de que as meninas não foram escolhidas por serem ágeis, espertas ou inteligentes, mas porque era a única opção viável de que Jerry poderia lançar mão. Isso não quer dizer que em suas missões as espiãs não sejam capazes de obter êxito, ao contrário, as garotas sempre se saem bem de todas as tarefas das quais são incumbidas, ainda que estas não sejam imprescindíveis para a “salvação da humanidade” como, por exemplo, quando as meninas devem deter uma desenhista de moda que transforma pessoas em monstros peludos, a fim de usar suas peles como casacos sem costura já que os casacos já possuem o tamanho exato dos clientes, ou quando se deparam com um cineasta incompreendido que passa a seqüestrar atores, esportistas e apresentadores famosos, levando-os para uma ilha deserta na qual são obrigados a lutar por sua sobrevivência.

Assim como nos filmes de James Bond, as espiãs têm a sua disposição diversos acessórios: dentre eles estão batons que viram lasers, bolsas em formato de coração que se transformam em potentes propulsores que as fazem voar, óculos escuros que lhes permitem invadir qualquer sistema computadorizado ou cintos transformantes capazes de trocar as roupas de sua usuária apenas apertando um botão, porém, com uma ressalva: os equipamentos jamais podem destoar de seu estilo ou estar fora de moda – seria imperdoável e poderia pôr em risco a missão. E, quando o assunto é estar na moda, pode-se afirmar que as meninas são extremamente rigorosas já que o que elas realmente querem é “descolar” um emprego na Chik Boutique, uma grife famosa que pode promovê-las a top models.

Além das espiãs diferirem na aparência, talvez em uma tentativa de agradar a todas as mulheres (ou melhor, meninas) que assistem ao desenho, as garotas também têm personalidades diferentes: Clover, por exemplo, é vaidosa e namoradeira, vive dando em cima dos garotos mesmo em meio às missões; já Alex é atrapalhada, porém, divertida, é esportista, péssima motorista e meio ingênua; e, quanto a Sam, é a sabe-tudo do trio, é inteligente e ótima aluna na escola, sua esperteza salvou as amigas diversas vezes. Então, qual o problema em três adolescentes patricinhas se transformarem em espiãs do dia para noite?

A princípio não há problema, não fossem duas “coisinhas”: em primeiro lugar, “salvar o mundo” não está entre as suas prioridades; ao invés disso Clover, Alex e Sam preferem uma “visitinha” ao shopping já que é lá que se sentem realizadas, seguras e felizes; e, em segundo lugar, ao mesmo tempo em que o desenho animado eleva a posição que as mulheres ocupam em nossa sociedade – à medida que, em lugar de homens opta por mulheres (ou meninas) para protagonizar a animação – as retira deste patamar quando as submete hierarquicamente às ordens de um chefe (homem) que menospreza sua inteligência sempre que lhes explica “detalhadamente” como funcionam e em que situação devem ser usados os acessórios que recebem. Situações como estas, quando retratadas em meios de comunicação de massa de grande abrangência, fazem com que meninas reais absorvam determinados “conceitos” distorcidos sobre o papel que devem ocupar em nossa sociedade. Segundo Tomaz Tadeu da Silva (2000, p.17), “a representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem possíveis respostas às questões: Quem sou eu? O que eu poderia ser? Quem eu quero ser?”, perguntas importantes quando se trata de adolescência e de todas as inseguranças vividas nesta época. Por isso, detalhes que acreditamos que passem despercebidos aos olhares inocentes dessas jovens, ficam gravados no subconsciente como referências distorcidas sobre o que podem e devem ser ou fazer.

Com base na música de abertura podemos verificar de que forma as espiãs apresentam seu desenho. A canção diz o seguinte:

Estamos prontas pra qualquer missão enfrentar! E vamos encarar! Mas toda vez que entramos no shopping queremos comprar!!!! Elegantes, charmosas, nas missões conquistamos a trama. Bem espertas, corajosas, de três espiãs conquistamos a fama. E é pra já, vamos lá girem nosso programa!!!!

 

            A partir dela é possível deduzir que, apesar de as garotas serem “espertas” e “corajosas” para “encarar” qualquer missão, não conseguem manter o controle quando entram no shopping e querem “compraaaaaaaar” como bem diz a música, ou seja, existe aí uma ambigüidade criada pelo uso do mas, pois, se num primeiro momento a música apresenta as garotas como fortes, logo após as atribui a fraqueza de não conseguir manter o controle quando saem às compras. Além disso, as meninas vêem “seu” desenho animado como um programa de televisão através do qual conquistaram a fama, sem deixar de ser “elegantes” e “charmosas” e, quanto a este trecho da música, pode-se dizer que a mesma estabelece um paralelismo entre “espertas/corajosas” e “elegantes/charmosas” na tentativa de associar tais características, unindo, assim, “patricinhas” e “panteras” em uma só personagem.

Porém, é preciso estar atento para o fato de que as crianças e adolescentes que assistem ao desenho reproduzem o que estão acostumadas a ver não somente na televisão (claro que a influência que a mídia exerce é inquestionável), mas também se baseiam nos exemplos que têm ao seu redor e na tentativa de corresponder às expectativas que lhes são atribuídas pela sociedade em que vivem, sejam elas boas ou ruins. Muitas jovens já chegam à adolescência “vestindo” a imagem de patricinha, usando a escola como passarela e o shopping como sala de aula, lugar onde acreditam que vão aprender tudo que será importante para o seu futuro.

            Contudo, não está sendo feita aqui uma afirmação do tipo: “uma vez patricinha, sempre patricinha”; longe disso, o que se pretende com este trabalho é chamar a atenção tanto para o modo como as adolescentes são representadas, quanto para a forma como é abordada esta “transformação”, na qual três adolescentes, enquanto espiãs, se dizem “prontas pra qualquer missão enfrentar”, porém, quando entram em um shopping são incapazes de manter o controle. Sendo assim, é preciso que estejamos atentos ao fato de que apesar de terem se passado anos e anos de luta pelos direitos das mulheres a fim de mudar a visão de fúteis que foram obrigadas a carregar através dos tempos, em pleno século XXI ainda persistem programas em que as mulheres são apresentadas como consumistas e submissas, produzindo e reproduzindo visões distorcidas sobre o papel que as mulheres ocupam e ocuparão em nossa sociedade.

 

DONDIS, Donis A. Sintaxe da Linguagem Visual.São Paulo: Martins Fontes,1997.

GROSZ, E. Corpos Reconfigurados. Cadernos Pagu (Corporificando Gênero).Campinas, n. 14, p.45 a 86, 2000.

SILVA, Tomaz Tadeu (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000a.

www..wikipedia.org/wiki/Totally_SpiesTotallySpie, acessado em 18/10/05, as 13:40 hs.