INTRODUÇÃO

 

Este trabalho é um estudo da concordância verbal realizado no arraial de Conceição de Ibitipoca, uma das povoações mais antigas de Minas Gerais, que nasceu do ciclo do ouro, no final do século XVII. Até 1973, o local era considerado semi-isolado devido a seu difícil acesso. Com a criação do Parque Estadual do Ibitipoca, o crescente fluxo de turistas está alterando a dinâmica socioeconômica do lugar e vem trazendo inúmeras mudanças capazes de influenciar a cultura e a identidade local, interferindo principalmente nas atitudes dos falantes frente a seu desempenho lingüístico. Para tanto, tomaremos os pressupostos da Teoria da Variação Laboviana, também conhecida como Sociolingüística Quantitativa, pois trabalha com dados numéricos que são submetidos a tratamento estatístico. Estudos deste tipo podem abrir discussão para o processo de formação do português popular brasileiro, apontando, sobretudo, para o caráter crioulizante do nosso vernáculo.

Nosso objetivo primeiro, ao trabalharmos com apenas uma parte dos dados que integram a amostra completa da pesquisa, é investigar o comportamento lingüístico de cinco falantes nativos analfabetos ou com baixa escolaridade, em relação à concordância verbal de 3ª pessoa do plural, a fim de obter informação sobre a opção desses falantes pela concordância ou não-concordância. Acreditamos que, em razão do progressivo processo de transformação pelo qual vive essa comunidade, urge conhecer sua identidade lingüística no que ela tem de mais conservadora, motivo pelo qual constituímos, inicialmente, nossa amostra com tais informantes.

O crescente prestígio das pesquisas no campo da lingüística abriu novo terreno para a avaliação da competência do falante, deslocando, desta forma, o ponto de enfoque para os fatos da língua oral. Esperamos que nossa pesquisa possa contribuir para o avanço do conhecimento do português em sua modalidade oral popular.

 

1 A CONCORDÂNCIA VERBAL NO PORTUGUÊS POPULAR DO BRASIL

 

O uso variável da marca de concordância verbal de 3ª pessoa do plural tem sido explorado por vários pesquisadores que se apoiam na teoria laboviana. Tais pesquisadores investigam a variação lingüística, tendo como base o cálculo das probabilidades, o que as tornam, nas palavras de Scherre (1998, p.55) mais adequadas do que as que empregam apenas levantamentos de percentual, já que a probabilidade “qualifica a influência relativa de cada variável, atribuindo pesos probabilísticos devidos aos diversos fatores das diversas variáveis estudadas”.

As pesquisas de pioneiras de Lemle e Naro (1977) revelaram que algumas formas verbais tendem a rejeitar a concordância formal com o sujeito com mais veemência, e mais freqüentemente, do que outras. Na Amostra Mobral[1] Lemle e Naro (1977), em que a fala de analfabetos cariocas foi investigada, as variáveis que se mostraram mais relevantes para o condicionamento da concordância verbal foram as “morfológicas” e “posicional”, a saber: “quanto menos saliente for a diferença entre singular e plural, mais provável será a falta de concordância” e “a categoria desfavorecedora da concordância verbal é aquela em que o sujeito segue ao seu verbo, ou seja, a menos saliente”. Lemle e Naro (1977, p.43-6)

Em relação à fala culta carioca Graciosa (1991, p.79) aponta a concordância verbal como um “fenômeno extremamente controlado, com aplicação quase categórica da regra”. A variação evidenciada em seu corpus diz respeito às tendências já explicitadas na fala de informantes não portadores de nível superior de instrução. A autora estabelece como regra geral para ocorrência da concordância verbal os seguintes fatores lingüísticos: (i) SN sujeito anteposto ao verbo; (ii) SN próximo ao verbo; e (iii) verbo formando seqüência dentro da cadeia discursiva, condicionado ao efeito do processamento paralelístico. Desfavorecem a concordância verbal a ocorrência dos seguinte fatores: (i) sujeito posposto ao verbo;(ii) sujeito, ainda que anteposto, se encontra distante do verbo; e (iii) verbo se acha isolado na cadeia discursiva.

O estudo empreendido por Vieira (1995, p.144) sobre a concordância verbal na fala de comunidades de pescadores no norte do Estado do Rio de Janeiro constata que, “embora o cancelamento seja condicionado, predominantemente, por fatores de natureza lingüística, variáveis extralingüísticas também exercem importante influência na aplicação da regra”. O índice de cancelamento da regra de concordância é menor entre os falantes mais jovens e está ligado a um complexo de fatores ligados às injunções sócio-comportamentais que envolvem os pescadores, dentre as quais destaca-se o fato de serem ou não escolarizados.

Baseando-nos nas pesquisas dos quatro autores citados acima desenvolveremos nosso estudo, que num primeiro momento ainda se encontra com dados de apenas cinco informante, mas suficientes para iniciarmos nossas reflexões e familiarizarmos com o programa GoldVarb. Acreditamos na grande necessidade de investigar comunidades de fala que ainda mantém seu dialeto preservado, que podem apontar para um estágio anterior e que possivelmente ainda guarda grandes simplificações, responsáveis pelas alterações em seus paradigmas.

 

2 METODOLOGIA

 

2.1 Descrição da comunidade de fala analisada

 

O arraial de Conceição de Ibitipoca[2] localiza-se no sudeste de Minas Gerais (Zona da Mata Mineira) e fica a 3 km quilômetros do Parque Estadual do Ibitipoca, uma reserva ecológica de rara beleza. É uma das povoações mais antigas de Minas, que nasceu do ouro, quando no final do século XVII chegaram os bandeirantes e ali se instalaram. Embora não tendo ouro em abundância, destacou-se como um dos principais pontos de apoio às bandeiras que, no início do século XVIII, seguiam em direção a Tiradentes, desbravando suas montanhas em busca de pedras e metais preciosos (DELGADO, 1962).

A região de Conceição de Ibitipoca se constituiu em rota de contrabando do ouro no século XVIII, através de um caminho clandestino formado por diversas veredas que davam em São João del Rei. De lá seguia-se o caminho dos bandeirantes até chegar à região do Rio das Velhas e Ouro Preto de onde ligava-se ao Rio de Janeiro através do Caminho Novo das Minas Gerais. Com o fim da mineração, os que por ali ficaram, dedicaram-se à pecuária e também à lavoura de café e cana-de-açúcar, que deram origem a muitos engenhos. Tais atividades econômicas perduraram, a muito custo, pois o solo arenoso nunca permitira uma agropecuária muito produtiva. Hoje uma nova perspectiva econômica é oferecida para o local, uma vez que o turismo tem aumentado bastante.

Segundo informações obtidas na Associação de Moradores e Amigos de Ibitipoca (AMAI), o arraial tem cerca de 1.200 habitantes distribuídos em aproximadamente 400 casas. Em pesquisa realizada no ano de 1988 este número era bem inferior, 130 casas, sendo 30 de turistas (VIEIRA, 1988). Nota-se que o número de casas de turistas aumentou consideravelmente em 13 anos. Atualmente existem cerca de 40 estabelecimentos comerciais e turísticos (restaurantes, bares, lojas etc.) e 25 alojamentos (divididos em pousadas, campings, pensões e quartos de aluguel). Nos feriados mais movimentados, como na Semana Santa, por exemplo, o arraial chega a receber cerca de 3.000 turistas.

 

2.2  Caracterização do corpus

 

Os dados que constituem o corpus da pesquisa foram selecionados de 5 informantes, entrevistados pela própria pesquisadora, no arraial de Conceição de Ibitipoca – Minas Gerais, no segundo semestre de 1999. Eles fazem parte de uma amostra maior, que visa investigar a variação lingüística como conseqüência do contato dialetal entre os nativos dessa comunidade de fala e os turistas que a cada dia são mais numerosos na região.

Para as rodadas do GoldVarb, utilizamos como valor de aplicação a variante predominante no corpus em análise – a não-concordância.

 

2.3  As variáveis

 

As variáveis aqui controladas dizem respeito a variáveis lingüísticas. Ao apresentá-las faremos a descrição dos grupos de fatores estabelecidos para análise dos dados desta pesquisa e das suas respectivas hipóteses, baseando-nos nos estudos variacionistas sobre concordância verbal já mencionados acima.

 

            2.3.1  A Variável Dependente

 

A variável dependente em estudo constitui um grupo binário: ausência ou presença da marca de plural de 3ª pessoa, responsável pela concordância do verbo com o sujeito. Vejamos dois exemplos, um em que há presença da marca do plural e conseqüente concordância e outro onde há o cancelamento da marca e a não-concordância:

Concordância:    Ês fizeru o acero. (P0zhv2k)

Não-concordância: Se as pensão aí manerasse0... (A4-iu=j)

 

2.3.2  As Variáveis Independentes

      

a) Posição do sujeito em relação ao verbo

                           

Como já mencionado, resultados apresentados em outras pesquisas variacionistas sobre concordância verbal confirmaram a hipótese de que a posposição do sujeito em relação ao verbo favorece o cancelamento da marca de número do SV. Também a sua distância influencia na ausência ou presença da marca de concordância, ou seja, quanto maior a distância entre o núcleo do sujeito e o verbo, maior a probabilidade de cancelamento da regra de concordância verbal. Para verificarmos essas hipóteses em nossa amostra trabalhamos com 6 fatores, conforme o fez Naro em seu trabalho de 1981:

1)   Sujeito imediatamente a esquerda do verbo:

Exemplo: “Os antigo dizia0 que quando...” (Ae+hu=j)

2)   Sujeito á esquerda do verbo, dele separado por 1 a 4 sílabas:

Exemplo: “... se ficá na frente ês até dirruba0 a gente.” (A4+hv=j)

3)   Sujeito à esquerda do verbo, dele separado por 5 ou mais sílabas:

Nosso corpus não apresentou ocorrência de dados com essa característica.

4)   Sujeito à direita do verbo:

Exemplo: “... foi0 os capanga do fazendero...” (Adrh/1x)

5)   Sujeito zero próximo do verbo (sem interrupção pelo entrevistador)

Exemplo: “E ali aquês nigucinate fazia... puxava0 aque’as carga pros armazém dês.” (A0+h/=x)

6)   Sujeito zero distante do verbo (com interrupção do entrevistador e/ou referência na sua fala)

Exemplo: Entrevistadora: “Todos nasceram aqui?

                 Informante: “Nasceru  e já faleceru todos dois.” (Porh/1y)

 

                        b) Animacidade do sujeito

 

Nesse grupo queremos investigar a influência do traço semântico do tipo animado humano/não-humano e inanimado. A hipótese em questão, que tomamos do trabalho de Vieira (1995, p.53), é a de que o traço animado favorece a concordância, dada a possibilidade de o sujeito constituir o agente da oração e se correlacionar com o valor semântico mais predominantemente vinculado pela classe dos verbos: a expressão de uma ação.

1)      animado humano

Exemplo: “... os viajantes dormiam lá.” (Pe+hw=k)

2)      animado não-humano

Exemplo: “... os uribu que achô ela lá...” (Aezcu1j)

3)      inanimado

Exemplo: Entrevistadora: “O senhor concorda que está havendo uma     transformação no arraial de Conceição de Ibitipoca?”

Informante: “Dimais.”

Entrevistadora: E qual é a visão do senhor a respeito?

Informante:  Umas parte melhorô ... (Aeziu1k)

                       outras piorô.” (Aeziv1x)

 

                        c) Saliência fônica

 

  Segundo Scherre (1989, p.301) o princípio da saliência fônica “consiste em estabelecer que as formas mais salientes, e por isso mais perceptíveis, são mais prováveis de serem marcadas do que as menos salientes”. Estamos trabalhando com dois níveis de saliência propostos por Naro (1981): (i) oposição não-acentuada (para os pares em que o segmento fonético responsáveis pela oposição não são acentuados nos dois membros) e (ii) oposição acentuada (pelo menos um dos membros do par é acentuado). Naro (1981) ainda leva em conta a quantidade de material fônico que diferencia a forma singular da forma plural. Dentro dos dois níveis propostos acima distinguem-se três categorias que refletem a diferenciação material fônica da relação singular/plural, somando no total seis níveis. Assim como nos estudos citados, estamos trabalhando com a hipótese de que as posições acentuadas são mais salientes do que as não-acentuadas, e ainda, que quanto maior a quantidade de material fônico maior a possibilidade de aplicação da regra, pois quanto mais saliente forem as oposições mais facilmente elas serão percebidas.

            Nível 1 (oposição não-acentuada):

1)      não envolve mudança na qualidade da vogal na forma plural

Exemplo: “... só dorme0 ali.” (A0-h/=x)

2)      envolve  mudança na qualidade da vogal na forma plural

Exemplo: “Os trabaiadô ricibia0...” (Ae+hu=k)

3)      envolve acréscimos de segmentos

Exemplo: “Os turista trais0 as treisi coisa...” (Aeshu1l)

 

Nível 2 (oposição acentuada):

1)      envolve apenas mudança na qualidade da vogal na forma plural

Exemplo: “... Os turista tá0 só construíno obra.” (Aemh/=k)

2)      envolve acréscimo de segmentos sem mudanças vocálicas na forma plural

Exemplo: “Ês foi0 lá pro barzinho...” ((Aerhv1x)

3)      envolve acréscimos de segmentos e mudança diversa na forma plural

Exemplo: “Os poderosos nos estranharu...” (P4zhw1j)

 

d) Paralelismo – Nível Clausal

 

De acordo com o princípio geral do paralelismo marcas levam a marcas e zeros levam a zeros. Os SVs que ocorrem precedidos de outros SVs são diretamente afetados pela presença ou ausência de marcas nos SVs precedentes, ou seja, a regularidade pode ser efeito da repetição. Nas palavras de Scherre e Naro (1993, p.4), objetivamos verificar se “há correlação entre tipo de marca existente no sujeito, o sintagma controlador da concordância , e o tipo de marca existente no verbo.”

Não aplicamos essa variável aos casos de sujeitos não-expressos e de sujeitos pospostos, dada a impossibilidade de se verificar a influência do paralelismo no nível oracional nesses tipos de construção. Estamos seguindo a sugestão de Vieira ao afirmar que (1995, p. 52) “no caso de sujeitos não expressos, a não-realização formal do SN anula a hipótese de uma marca influenciar a outra e, no caso de sujeitos pospostos, a marca do SN sujeito, vindo após a do verbo, não poderia ter influenciado a concordância”. Essa propõe 7 fatores para o grupo, mas apenas 5 foram aqui considerados, já que 2 deles não encontramos nos dados examinados[3], são eles:

1) vocábulo isolado no plural (v)

Exemplo: “Então ês arisca o turismo...” (Ae+hv=x)

2) realização da marca de plural no último elemento do SN sujeito não inserido em um sintagma preposicional (w)

Exemplo: “Os viajantes dormiam lá...” (Pe+hw=k)

3) ausência de marca de plural no último elemento do SN sujeito não inserido em um sintagma preposicional (u)

            Exemplo: “Os cantadô jueiava no chão...” (Ae+hu=x)

4)                 ausência de marca de plural no último elemento do SN sujeito inserido em um sintagma preposicional (q)

Exemplo: “Os dono dos terreno num aceita tirá...” (A4+hq=j)

5)                 numeral no último elemento do SN sujeito não inserido em um sintagma preposicional (n)

              Exemplo: “Todos oito fala o que eu tô falano.” (Ae+hn=j)

 

e) Paralelismo – Nível discursivo

 

Scherre (1992, p.43) aponta essa variável como relevante para o condicionamento de diversos fenômenos lingüísticos variáveis e afirma que “a hipótese é que estamos diante de uma influência de caráter universal”, uma vez que tal condicionamento é freqüente em diferentes línguas. A autora (op.cit. p 48-9) sintetiza o se pode apontar como subjacente à influencia do paralelismo em quatro itens:

 

(i)        a facilidade de processamento  (lei do menor esforço);

(ii)       o funcionamento da memória imediata (tendência de repetição mecânica de formas semelhantes, concordância formal superficial e auto-monitoração);

(iii)     o processamento não-mecânico de formas gramaticais semelhantes associado a uma das possíveis formas da mente operar, criando a harmonia discursiva e a coesão textual;

(iv)     a manifestação ou escolha de funções pragmático-discursivas (coerência  textual, mecanismos coesivos, ênfase, estabelecimento de foreground e manutenção de “atividade”) e fatores estilísticos.

 

 

Scherre e Naro (1993, p.8) propõem que, no caso específico da concordância verbal, o controle da influência da marca ou da não-marca de um SV sobre o próximo SV seja feito dentro de uma série, para a qual estabelecem os seguintes critérios: “(1) a construção analisada deveria ter o sujeito com a mesma referência que o sujeito da construção anterior e (2) não deveria estar separada da construção anterior por mais de 12 cláusulas e nem pelo discurso do interlocutor”.

Consideramos como “SVs não-marcados” aqueles em que ocorrem com verbos ter e vir e derivados, no presente do indicativo, pela impossibilidade de distinguir, na fala, as formas de plural e singular.     

Fatores:

1) SV isolado – ausência de paralelismo ( j)

Exemplo: Entrevistadora: “E a moça era de Santa Rita?”

                Informante: “ Não. Ninguém ficô sabeno de onde qu’ela era. Então era... era uns fugido... o rapais robô ela ... já o pai é que mandô os capanga i atrais...” (Ad+hv=j)

2)      Primeiro SV de uma série (k)

Exemplo: Entrevistadora: “O pessoal tem respeito?”

Informante: “Ah não... aqui arguns fica rino, né? quê acumpanhá aquele ritmo de povo da cidade, tem um povo da cidade que é devoto... uns que num é , cê sabe né? então ês pegá fazê/ zombá, né?” (Ae+hv=k)

3)      SV precedido de outro marcado no discurso do entrevistador (l)

Exemplo: Entrevistadora: “Você acha que os turistas trazem problemas?”

Informante: “Não... tem uns que traiz e otos não... aí é quais que meia a meia, né?” (Aeshv1l)

4)      SV precedido de outro marcado no discurso do informante (y)

Exemplo: “... ês vieru de Portugal, vieru as famia, a maior parte uns vortaru...” (Pdzh/1y)

5)      SV precedido de outro não-marcado (x)

Exemplos: “Ah não... aqui arguns fica rino, né? quê acumpanhá aquele ritmo de povo da cidade, tem um povo da cidade que é devoto...” (Ae+hv=x)

            “Os que cantava bem até já morreu já num existe mais...” (A0rh/1x)

 

f)        Relação entre o número de sílabas das formas singular e plural

 

Nesse grupo, estabelecemos, conforme o fez Viera (1995, p.68), “fatores que controlam a manutenção ou o acréscimo de sílabas na formação do plural dos verbos”. A hipótese subjacente é a de que o acréscimo de sílabas na forma do plural desfavorece o cancelamento da concordância verbal, ou seja, favorece a presença da concordãncia.

 

1)   manutenção do número de sílabas (=)

Exemplo: “Os trabaiadô ricibia ...” (Ae+hu=)

2)   acréscimo de uma sílaba (1)

Exemplo: “Ês faiz u’as cruizinha piquena...” (Aeshv1)

3)   acréscimo de mais de uma sílaba (2)

Exemplo: “Ês fizeru o acero...” (Pezhv2)

 

3. ANÁLISE

 

            3.1 Resultados prévios:

 

A análise que vamos apresentar envolve um total de 246 ocorrências de verbos na 3a pessoa do plural. Nessa primeira abordagem do material coletado verificamos altos índices de cancelamento da regra de concordância verbal na fala dos nativos (analfabetos ou com baixa escolaridade) de Conceição de Ibitipoca – em torno de 89% das ocorrências (219/246).

Abaixo representam os cálculos percentuais do cancelamento da regra nos seis grupos de fatores lingüísticos, antes de fazer a recodificação com a eliminação dos Knockout.

 

3.1.1 Posição do Sujeito em relação ao verbo

 


           

Constatamos que o maior índice (96%) foi para o sujeito zero com referente próximo ao verbo. Conforme nossa hipótese já esperávamos que esse fosse o contexto com maior incidência de ausência de marca. O sujeito zero distante do verbo apresentou o menor índice (66%), isso porque estando o referente do sujeito distante, a concordância verbal é mais necessária para que o falante retome a idéia de pluralidade.

O índice de cancelamento da marca de concordância do sujeito à direita é menor (84%) do que do sujeito à esquerda (88% nos dois casos), embora essa diferença possa não ser significativa deve ser levada em conta uma vez que difere dos dados do português carioca (NARO,1981). Daremos atenção especial a esse dado na amostra constituída para o trabalho de tese.

 

3.1.2 Saliência fônica

 

Como podemos observar, ocorreu knockout com um fator do Nível 1 A (não envolve mudança na qualidade da vogal na forma plural). Considerado o nível de mais baixo grau de saliência fônica (do tipo: “conhece/conhecem”), condiz com o que afirmamos sobre a diferença do material fônico: quanto menor mais difícil de ser percebida, vindo confirmar a hipótese estabelecida. Os outros fatores também seguem a escala proposta por Naro com exceção do último (E) em relação ao penúltimo (F), o que necessitará de um olhar mais atento no nosso trabalho de tese.

 

                        3.1.3  Animacidade do sujeito

 

    Em relação a esse grupo de fatores, os resultados percentuais mostram que o sujeito inanimado é o que mais desfavorece a aplicação da regra (100%), apresentando knockout. Em seguida, aparece o sujeito animado não-humano (93%) e por último, animado humano (88%). Isto já estava previsto na nossa hipótese: o traço semântico animado é discursivamente mais saliente visto que ele se correlaciona à ação do sujeito.

 

3.1.4         Paralelismo – Nível Clausal

 

 

Os resultados obtidos nos grupos (A), (B), (C) e (D) condizem com nossa hipótese, no entanto o grupo (E) não confirma o que foi encontrado em outras pesquisas. Esperávamos que um número como último elemento do SN levasse sua marca de pluralidade para o sujeito, mas conforme já ressaltamos anteriormente, nossa amostra ainda se encontra com poucos dados e por esse motivo esse resultado não é muito confiável: obtivemos apenas duas ocorrências do fator em questão.

 

Paralelismo – Nível discursivo

 

 

Esse grupo de fatores mostrou-se condizente com nossa hipótese. Esperávamos  que a maior ocorrência da concordância fosse com o fator (D) e a menor com o fator (E), uma vez que a influência da marca  de concordância e da não-marca de SV em relação ao próximo SV dentro de uma série funciona sob o mesmo princípio geral do paralelismo: marcas levam a marcas e zeros levam a zeros.

                       

3.1.6 - Relação entre o número de sílabas das formas singular e plural

 

 

Novamente temos um grupo de fatores que apresenta-se em consonância com nossa hipótese. A possibilidade de presença da aplicação da regra de concordância verbal aumenta à medida em que se acrescenta sílaba na forma plural.

 

3.2 Grupos de Fatores Relevantes

 

Passaremos agora para apreciação dos resultados obtidos quando retiramos os knockouts. Dos seis grupos de fatores três foram selecionados pelo programa como relevantes para a aplicação ou não da regra de concordância verbal, são eles:

 

3.2.1. Saliência fônica entre as formas singular e plural

 

 

            Categoria – Saliência Fônica

Ocorrência

Freqüência

P. R.

Envolve acréscimo e mudança da vogal

114/115

99%

.87

Envolve acréscimos de Segmentos da vogal

7/8

87%

.26

Envolve apenas mudança na qualidade da vogal

5/6

83%

.18

Envolve acréscimos de Segmentos s/ mudança vocálica

9/15

60%

.05

Envolve acréscimos de Segmentos e mudança diversa

74/92

80%

.14

TABELA 1: Atuação da variável Saliência Fônica em relação à marca de plural.

 

           

Os resultados da tabela acima confirmam a hipótese de que o nível de saliência fônica na oposição singular/plural dos verbos é significativo para o condicionamento da concordância verbal. O maior índice de cancelamento (.87) ocorre com o fator que envolve apenas mudança da vogal na forma plural. Esse fator é o que apresenta menor diferenciação de material fônico nessa tabela. Ao compararmos o penúltimo fator com o último, observamos uma contradição em relação à hipótese estabelecida para a variável, já que este apresenta maior diferença de material fônico em relação ao anterior, e seu peso relativo é  menor (.05 contra .14), mostrando-se mais favorável à aplicação da regra. No entanto, devemos levar em conta que ainda estamos no início da pesquisa, trabalhando com poucos dados.

 

3.2.2 - Categoria – Paralelismo (Nível Clausal)

 

            Categoria – Paralelismo (Nível Clausal)

Ocorrência

Freqüência

P. R.

Vocábulo isolado no plural

90/104

                            86%

.38

Presença da marca de plural no último elemento do SN

7/3

                            42%

.04

Ausência de marca no último elemento do SN

37/38

                           97%

.85

TABELA 2: Atuação da variável Paralelismo (Nível Clausal) em relação à marca de plural.

 

Observando os pesos relativos, concluímos que a ausência de marca no último elemento do SN é o fator que mais favorece a não aplicação da regra de concordância verbal  e que o contrário, isto é, a presença de marca, é o fator que mais favorece a aplicação, ficando desta forma confirmado a hipótese que norteou esse grupo de fatores, não restando-nos dúvidas sobre a relevância do paralelismo clausal para a compreensão do mecanismo de concordância verbal.

 

3.2.3 – Categoria – Paralelismo (Nível Discursivo)

 

            Categoria – Paralelismo (Nível Discursivo)

Ocorrência

Freqüência

P. R.

SV isolado (ausência de paralelismo)

57/63

90%                                                             

.38

Primeiro SV de uma série

40/45

88%

.35

SV precedido de outro marcado no discurso do entrev.

13/16

81%

.33

SV precedido de outro marcado no discurso do infor.

8/16

50%

.17

SV precedido de outro não-marcado

101/106

95%

.70

TABELA 3: Atuação da variável Paralelismo (Nível Discursivo) em relação à marca de plural.

 

O peso relativo referente (.17) aos verbos precedidos de verbos de 3ª pessoa do plural demonstra a mesma influência já detectada nos trabalhos citados anteriormente. Da mesma forma, os verbos não precedidos de verbos de 3ª pessoa do plural, apresentam maior peso relativo (.70), vindo desta forma confirmar a hipótese do efeito paralelístico, com a qual estamos trabalhando.

 

CONCLUSÃO

 

Constatamos que entre os falantes nativos de Conceição de Ibitipoca, analfabetos ou com baixo grau de escolaridade, a não aplicação da regra variável é quase categórica. Acreditamos que a regra sintática desses falantes ainda apresenta o traço conservador do seu dialeto, por se tratar de um local que ficou em semi-isolamente durante muitos e muitos anos.

Na análise dos dados pudemos comprovar que, dentre os grupos de fatores controlados, um foi o que se mostrou mais relevante para o estabelecimento da norma da regra de concordância verbal na fala de nossos informantes – a saliência fônica, pois esse foi o único grupo de fatores selecionado em todas as rodadas. Esse dado nos revela que tanto a diferenciação do material fônico entre as formas singular quanto a acentuação dos verbos influenciam sobremaneira na aplicação ou no cancelamento da regra variável. Em relação à diferenciação do material fônico, ficou constatado que as chances de aplicação da regra de concordância verbal aumentam à medida que aumenta a quantidade de material fônico que diferencia a forma singular da forma plural.

O paralelismo, tanto no nível clausal quanto no nível discursivo, são grupos de fatores que condicionam a presença ou ausência de concordância, confirmando a hipótese: marcas levam a marcas e zeros levam a zeros.

No trabalho de tese queremos abrir questionamento sobre se ausência de concordância verbal, em grau muito elevado na nossa amostra, pode ser pensada em termos das condições sócio-históricas da formação de Conceição de Ibitipoca, que envolveu índios, escravos e portugueses. Não seria esse um indício de que houve um crioulo no processo de formação do português popular brasileiro, nos locais de maior concentração de negros, e que embora possa não ter sido um crioulo típico e estável mas tenha sido significativo para impulsionar a variação e levar à mudança?

 

REFERÊNCIAS

 

DELGADO, Alexandre Miranda. Memória histórica sobre a cidade de Lima Duarte e seu município. Juiz de Fora: s. n., Publicação comemorativa do centenário da Paróquia de Nossa Senhora das Dores (1859-1959), 1962.

NARO, Anthony J. “The social and structural dimensions of a syntactic change”. Language 57 (1): 63-98, 1981.

_____. Substandart e mudança no português do Brasil. Frankfurt am Main: TFM, pp.139-151, 1998.

NARO, A. J. & SCHERRE, M. “Sobre as origens do português popular do Brasil”. D.E.L.T.A. vol.9, nº especial, 1993:437-454.

_____. & SCHERRE, M. “Sobre as origens do português brasileiro: Crioulização ou Mudança Natural?” In: Papia 11. Brasília: Thesaurus, 2001:40-50.

SCHERRE, M.M.P. Sobre a atuação do princípio da saliência fônica na concordância nominal. In: TRALLO, F. (org.) Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes, 1989:301-32.

_____.Paralelismo formal e cognição. Boletim da Associação Brasileira de Lingüística. Nº 13: 1992:43-53.

______ & NARO. “Duas dimensões do paralelismo verbal no português popular do Brasil”. DELTA. Nº 9 (1), 1993:1-14.

VIEIRA, Maria Elisa Guedes. “Ibitipoca: um caldeirão efervescente”. Trabalho de bacharelado em Ciências Sociais. UFJF, 1988.

VIEIRA, Silva Rodrigues. Concordância verbal: variação em dialetos populares do Norte Fluminense. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado em Língua Portuguesa, 1995.


[1] A Amostra Mobral se compõem de alunos do programa de alfabetização MOBRAL – Movimento brasileiro de Alfabetização, naturais do Rio de Janeiro.

[2] Teodoro Sampaio (apud Delgado, 1962) aponta que o termo Ibitipoca se origina de “ibi” (pedra) e “oca” (casa, gruta), portanto, casa de pedra. Existem ainda outras interpretações para o termo.

[3]Os 2 fatores desprezados neste trabalho, mas considerados por Vieira (1995), são: (i) realização da marca de plural no último elemento do SN sujeito inserido em um sintagma preposicional; e (ii) numeral no último elemento do SN sujeito inserido em um sintagma preposicional.